Texto de Fernando Moreira de Sá e Fotografia de José Magalhães
Existem dias de magia nos quais o Douro acorda envolvido em algodão doce como se fosse obra de um certo mago.
Tudo começa na Foz onde o Douro encontra a morte nas águas geladas do Atlântico.
Um misterioso manto branco acinzentado invade, pé ante pé, a superfície da água do rio desde a Foz até aos limites da velhinha Ponte D. Maria.
Ao longo do despertar do dia avança como se possuindo longos e gordos braços pelas diferentes ruas e ruelas da Alfândega, de Massarelos, de Miragaia, da Ribeira. Não sei se não será um verdadeiro espreguiçar.
Qual manto de Noiva a rastejar por debaixo dos tabuleiros das diferentes pontes que invade. Mesmo se a Ponte da Arrábida aparente desaparecer mas é mais por confusão e fusão de cores. Na Ponte D. Luís parece sustentar ambos os tabuleiros dando uma ilusão de suspensão destes no ar, como flutuando à mercê dos seus humores.
Quem olha desde a Serra do Pilar fica hipnotizado. E tentado. Uma tentação diabólica de se atirar para cima dela como se aquela nuvem enganadora fosse uma gigante almofada que nos leve numa viagem sobre a cidade.
Ao olhar para a nossa direita deparamos com a velha senhora, a inolvidável Ponte D. Maria. Até ele, sempre tão atrevido, se curva perante a sua beleza respeitável e pede licença para passar. Sim, o nevoeiro mágico enviado, quiçá, por Merlin, antes tão indiferente às restantes obras de arte passando por debaixo delas sem pestanejar abranda junto à D. Maria e respeitosamente a cumprimenta e lhe solicita autorização. Por vezes a demora é tal que logo o Rei Sol o impele e o reduz a uma injusta insignificância.
Um rio, a margem aprazível desse rio, um povoado de origem incerta, que haverá de dar lugar ao Portus Cale. Um burgo erguido sobre o agreste morro da Pena Ventosa, açoitado por um vento gélido e abençoado com uma vista deslumbrante. Estenderá as suas ruas até ao rio, tortuosas e labirínticas, plenas de vida e ruído.
Até ao final da Idade Média, o Porto haverá de assumir as características que ainda hoje associamos às suas gentes. Palco de contendas entre o clero, a nobreza e a burguesia, entre as suas muralhas haverá de impor-se a regra de permanência máxima de três dias a qualquer nobre que nela queira pernoitar.
O Porto apoiará incondicionalmente o Mestre de Avis na crise de 1383-1385 e será o berço do infante D. Henrique. Aos apelos patrióticos de apoio à armada de partida para a conquista de Ceuta responderá entregando a totalidade da carne disponível e ficando para si com as tripas, episódio que qualquer portuense vos contará com desenvoltura, jurando, “por esta luz que me alumia”, que foi assim, sem tirar nem pôr, e desprezando qualquer tentativa historiográfica de corrigir esta versão. Tripeiros somos, pois claro, e nesse epíteto resume-se um passado de generosidade e valentia.
"Infante D, Henrique na conquista de Ceuta", de Jorge Colaço ( Estação de S. Bento) - Fotografia de Nuno Tavares
A cidade medieval conhecerá um novo rosto com a intervenção dos Almadas, os grandes urbanistas da cidade, e terá na Torre dos Clérigos, de Nasoni, o seu mais luminoso farol.
Devastada pelas invasões napoleónicas, perderá centenas dos seus cidadãos na terrível tragédia da Ponte das Barcas (de que o nosso colaborador Luís Rocha falará hoje aqui).
Defensora dos ideais do liberalismo, suportará um terrível cerco de dois anos, que deixará a cidade destroçada. O Cerco do Porto (1832-34) valerá à cidade o título, ainda hoje ostentado com orgulho, de Invicta Cidade do Porto, e a homenagem de D. Pedro IV, cujo coração repousa na igreja da Lapa.
O Porto será a primeira cidade a eleger um deputado republicano, José Joaquim Rodrigues de Freitas, e nela eclodirá a Revolta de 31 de Janeiro de 1891, primeira tentativa de implantação de um regime republicano em Portugal (João Machado assina esta tarde no Estrolabio um artigo dedicado ao 31 de Janeiro).
Será palco, a 15 de Maio de 1958, em plena vigência do Estado Novo, de uma extraordinária recepção ao general Humberto Delgado, com a presença de cerca de 200 mil pessoas.
Multidão a aguardar General Humberto Delgado junto à Estação de S. Bento (Foto: www.portoantigo.pt)
As décadas seguintes têm sido marcadas pelo reconhecimento de um Património cultural único (que a UNESCO consagrou em 1996), pela modernização da cidade e da sua área metropolitana, e por uma crescente visibilidade do Porto na Europa e no mundo (nomeadamente em 2001, ano em que o Porto foi Capital Europeia da Cultura).
Mas esta é também ainda a cidade das “ilhas”, onde dezenas de pessoas partilham um núcleo habitacional sem condições mínimas, desprovido de saneamento básico, com uma única casa de banho para todos os moradores. Esta é a cidade dos bairros sociais como o Cerco do Porto ou o Aleixo, verdadeiros guetos onde vivem cerca de 20% dos habitantes do Porto e que têm sido devastados pelo consumo de drogas, pelo alcoolismo, pelo desemprego e a desagregação do tecido familiar. Nos últimos anos, os indicadores revelam que a pobreza no Porto ultrapassa a média nacional e que é neste distrito que se concentra o maior número de beneficiários do Rendimento Mínimo de Inserção.
Bairro do Aleixo (Foto: iol.pt)
Esses dois rostos da cidade – o do cosmopolitismo e o da miséria – convivem diariamente, cruzam-se nas ruas do burgo, e são hoje o retrato do Porto, este Porto que nos exalta e nos comove, mas também nos envergonha e nos faz caminhar pelas ruas de má consciência, perante a miséria envergonhada da nossa gente e a ruína das casas, órfãs de quem as amava.