Conhecemos cinco dos seis projectos apresentados ao Marquês para reconstruir Lisboa. O sexto desapareceu, o quinto foi construído. Como ainda hoje se pode ver, o motivo principal é que as construções obedeceram a rígidas regras, três fachadas, três andares, o rés-do-chão para lojas e cavalariças, o primeiro andar com varanda e o segundo e terceiro com amplas janelas todas iguais. Tudo o que se vê hoje fora destas regras, como o famoso quarto andar (serviu para compensar alguns proprietários das decisões arbitrárias do velho Marquês) não são originais.
A primeira ideia foi construir Lisboa na área de Belém, mas depois ganhou a reconstrução sobre as próprias ruínas da cidade. Esta reconstrução permitiu abrir amplas avenidas e ruas, o famoso xadrez da baixa de Lisboa. E se não tivesse aconteciso o terramoto como seria hoje Lisboa? Podemos dar conta de cidades medievais que permaneceram, mas a que mais me chamou a atenção é o centro da cidade de York, no norte da Escócia, com as suas casas de madeira exíguas, as suas ruas estreitas a desaguarem no amplo largo defronte da velha Catedral.
Lisboa, teria crescido ao longo do rio Tejo para sul e para norte ou teria, como aconteceu, crescido em cima das ribeiras que são hoje a avenida de Ceuta em Alcântara, a avenida da Liberdade e a avenida Almirante Reis? Estas três avenidas são o traçado mais lógico, em qualquer circunstância, pois é certa a existência do Alto da Ajuda, onde o rei fez construir a real barraca, o bairro Alto, Mouraria e Alfama. As listas de passageiros e tripulantes dos navios das descobertas não deixam margem para dúvidas que aqueles bairros já eram povoados. Ora este povoamento exige que a ligação entre bairros se fizesse à custa das ribeiras, como aconteceu.
Resta o xadrez da baixa de Lisboa que, obviamente, não existiria. Mas que mudanças os fogos, a degradação e as novas construções introduziriam na malha urbana? O que é certo é que o Terreiro do Paço já existia mas não com o presente perfil e grandeza. Sem a actual dimensão não serviria de "âncora" para a existência da Praça da Figueira (onde já existia o Hospital de Todos os Santos, e a ainda existente Igreja de S. Domingos) e, muito menos, para a dimensão da actual Praça do Rossio.
Tudo indica que a Lisboa sem terramoto, se estenderia de modo semelhante ao actual, mas sem a monumentalidade da sua baixa que, contudo, seria muito diferente, objecto de reconstruções várias ao longo dos séculos.
Mas o mais certo é que lhe teria acontecido o mesmo que a Londres, por exemplo, devorada por fogos imensos que permitiram, tal como o terramoto, a reconstrução a regra e esquadro.
No quadro de um projecto institucional de erradicação dos bairros de lata, no período pós-25 de Abril, tive ocasião de contactar núcleos de cabo-verdianos que viviam em bairros da então chamada «cintura industrial de Lisboa» - particularmente na Pedreira dos Húngaros (Algés), nas Marianas (Parede) e no Bairro do Fim do Mundo (Cascais). Fiz muitos amigos e pude constatar, por um lado o apego que aqueles imigrantes mantinham à sua terra e, por outro, a quase total ausência de instrumentos culturais que alimentassem esse amor. Com o escritor Manuel Ferreira, do qual fui amigo desde1964, pois conhecemo-nos durante o II Encontro da Imprensa Cultural, realizado em Cascais, por diversas vezes comentámos essa circunstância que na altura era gritante e que hoje em dia está relativamente superada ou, pelo menos, mitigada.
No decurso de um projecto editorial em que ambos estávamos envolvidos, falámos por diversas vezes em Cabo-Verde e na sua cultura. Foi incentivado por estas trocas de impressões que visitei pela primeira vez o arquipélago e pude confirmar, não só a ideia com que ficara pelo contacto directo com os imigrantes, como também o que Manuel Ferreira me dizia sobre a singularidade das gentes cabo-verdianas e do valor ímpar da sua cultura. Com vista a um trabalho que talvez consiga realizar - uma história concisa da literatura cabo-verdiana, tenho algumas notas tomadas, entre elas a que hoje aqui transcrevo. Eis a primeira.
Durante o período colonial, só no século XX a literatura cabo-verdiana surge com a expressão de uma identidade própria, em ruptura explícita com os modelos europeus até então seguidos, nomeadamente os de matriz portuguesa. Sobretudo com a obra e com a acção de Eugénio Tavares, as temáticas, quer as da poesia, quer as da novelística, passam a relacionar-se com a vivência cabo-verdiana – a insularidade, a seca, a fome e a consequente emigração, para a metrópole ou para outros países. Eugénio de Paula Tavares (Brava, 1867-1930), foi, na realidade, o grande impulsionador da cultura autóctone - a publicação de jornais e revistas por sua iniciativa ou com colaboração sua, foram decisivos na criação de uma consciência cultural cabo-verdiana. Desde o Alvorada, editado nos Estados Unidos entre 1900 e 1917 até ao A Voz de Cabo Verde, publicado na Praia entre 1911 e 1916, houve mais de uma dezena de publicações que editou ou em que colaborou assiduamente. O papel das revistas no despertar da consciência cultural do País, foi enorme. Foi o caso das revistas Claridade (1936-1960) e Certeza (1944). Em 1958 começa a publicar-se o Suplemento Cultural; em 1977 saem o suplemento Sèló e a revista Raízes.
Claridade destaca-se das demais. Os principais autores revelados nesta revista são, entre outros: Jorge Barbosa, António Pedro, Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes da Silva), Manuel Lopes. O cariz neo-realista da Certeza – Guilherme Rocheteau, Tomaz Martins, Nuno Miranda, Arnaldo França, António Nunes, Aguinaldo Fonseca. O papel desempenhado por Claridade no despertar da cultura nacional, transcende em muito as fronteiras da literatura. Pode dizer-se que há um «antes» e um «depois» da Claridade, O Suplemento Cultural também acrescenta ao acordar da consciência de uma identidade cultural, algo de muito importante – o conceito de nação substituindo o de região ou província ultramarina – Gabriel Mariano, Onésimo Silveira, Ovídio Martins, Terêncio Anahory, Yolanda Morazzo. Não pode ser ignorado o papel da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, como ponto de encontro de muitos dos futuros intelectuais (e dirigentes políticos) dos PALOPs e, consequentemente, como motor de criação de movimentos independentistas e crisol do despertar de correntes literárias autónomas e libertas da matriz cultural portuguesa. Foram muitos e importantes os intelectuais cabo-verdianos que passaram pela Casa dos Estudantes do Império.
Irei, em pequenas doses, transcrevendo notas sobre este tema que tanto me apaixona, o da literatura cabo-verdiana.
Sublinhando as palavras do Luís Moreira, apresentamos uma interpretação de Menino do Bairro Negro, de José Afonso, interpretado pelo coro misto Ançãble, de Cabeceiras de Basto, num arranjo de Joaquim dos Santos. Zeca Afonso compôs esta canção inspirando-se na vida dos meninos de um bairro degradado – o Barredo, no Porto. Fruto do começo da Guerra Colonial e da emigração forçada, as maiores cidades do País iam vendo crescer nas suas periferias bairros de lata. Esta composição, tão bem interpretada por este coro, molestou particularmente as consciências. A intenção do Zeca não seria outra.