Quarta-feira, 2 de Junho de 2010
Manuela DegerineCapítulo VIIEtapa 3, da Azambuja a Vila Franca
Segunda parte
A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era; mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há-de ser, não sei.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
Miro mais uma vez a mochila tentando encontrar uma solução. Ao fim de algum tempo, que terá sido curto, parecendo muito demorado, ocorre-me que posso coser a alça. Ainda bem que trago agulha e linhas... Meia hora de costura à beira do campo, sentada em cima de um saco de plástico, por o lugar me parecer sujo; aproveito para reforçar também a outra alça. E prossigo o caminho.
Mais à frente tenho dúvidas quanto ao trajecto. Parece-me que saí do caminho, sigo à periferia de um campo, através de uma vegetação alta, porém continuo em frente – o caminho para Reguengo deve também orientar-se naquela direcção e a caminhada entre silvas e roseiras bravas não me desagrada. De facto, quando chego à estrada, logo vejo a primeira seta amarela num poste: ah!
Em Reguengo paro na fonte para encher as garrafas, vem uma mulher falar comigo, onde vai a menina, assim sozinha, vai com Deus, é verdade, mas não tem medo? Uma enfermeira foi assaltada e violada à saída do hospital Amadora-Sintra. E uma rapariga da região também foi raptada junto à estação da Azambuja. Eu, digo-lhe a verdade, até de ir à Valada tenho medo. Fixo a interlocutora perguntando aos meus botões se haverá tantos bandidos que a desejem violar e assaltar, mesmo no caminho para a Valada, que dista dois quilómetros de Reguengo; mas agradeço o cuidado.
A partir de Reguengo, durante quase vinte quilómetros, o meu trajecto acompanha um dique. Chego a Valada às onze e meia. Surpreende-me o apetite que sinto. Sento-me num parque, à sombra, entre o dique e a praia fluvial, como a sanduíche colossal que me prepararam no restaurante onde ontem jantei, como mais bolachas vitaminadas, como laranjas, nozes e figos, acabo com o chocolate preto e, agora vim prevenida, até faço um chá sumptuoso da Mariage Frères numa garrafa de plástico... Consigo parar o banquete antes da indigestão. Sigo para Porto de Muge.
Nestas minhas andanças, caminhar é um prazer, a verdadeira dificuldade, o suplício máximo está no calor. Em Valada voltei a encher as garrafas todas, três litros de água, que bebo nos três quilómetros até Porto de Muge. Não posso deixar esta localidade sem voltar a enchê-las pois a seguir atravesso um território de catorze quilómetros não habitados. Um sol de crestar, de derreter, de estrugir, de esturricar... Passa um homem de bicicleta com um balde de marmelos, pergunto se há algures uma fonte, ele explica-me onde, mais adiante, depois exclama, num espanto sincero: Vai sozinha! Vá com Deus!
Compreendo a crítica dos leitores. No entanto a piedade pela peregrina não me incomoda, não me sinto sequer hipócrita, inserida numa estrutura que não me é afinal alheia. A fé que arrasta os peregrinos para Fátima ou Santiago não me parece muito distinta da loucura me faz caminhar neste inferno: a curiosidade.
Acompanho o dique por uma estrada poeirenta, a vegetação do talude encontra-se branca de pó, eu cobri-me em Porto de Muge com uma camada de protector solar, quando passa um tractor, uma carrinha, uma camioneta, o que é frequente, a poeira cola-se ao creme: devo parecer um palhaço branco. Vou bebendo a água, a mochila deixa de pesar, os pés não me doem; se não estivesse calor, sentiria gosto na caminhada mas, com esta temperatura, sofro.
Avisto, a certa altura, um grupo de jornaleiros a arrancar e queimar plantas num campo; os quais me fitam com um espanto muito evidente. Se vissem passar uma marciana não fariam outra cara. Qual a razão deste pasmo? A imprudência de uma mulher neste descampado? A insensatez de me expor sem necessidade ao calor? Talvez ambas as coisas. Observo os homens que conduzem tractores e camionetas: parecem-me honestos trabalhadores. Dizem boa tarde e seguem em frente. Embora o caminho seja de facto isolado, à beira de campos imensos, não sinto medo nenhum.
As minhas botas chegam acima do tornozelo e parecerem bem fechadas porém, a certa altura, uma pedra minúscula, quase um grão de areia, consegue entrar por cima, entre a bota e a perna direita. Uma regra é que, apenas sentimos algo, devemos de imediato parar e verificar, contudo eu não vejo por perto sombra nem espaço onde, molhada com me encontro, me sente sem ficar enlameada; guardo para mais tarde a busca da pedra. Avanço mais dois ou três quilómetros, continuo sem poder poisar a mochila, também molhada, assentar um saco de plástico, onde me apoiar; atravesso um deserto poeirento. Quando me forço a fazê-lo, é tarde demais: tenho uma bolha na planta do pé direito.
E agora?
Terça-feira, 1 de Junho de 2010
Manuela DegerineCapítulo VIEtapa 3, da Azambuja a Vila Franca
Primeira parteO pinhal da Azambuja mudou-se.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
Saio dos bombeiros às seis e meia da manhã. Prevejo um dia de caminhada através do campo – se não me perder. A aventura de ontem impõe-me esta regra que, daqui em diante, respeitarei com rigor: logo que me sentir perdida, retrocedo até ao ponto em encontrei a última indicação certa e segura.
A etapa de hoje é de trinta e dois quilómetros. Para já: são dez até Reguengo. Atravesso para o outro lado da estação, avanço à beira de uma estrada sossegada, passo numa ponte, encontro o caminho arenoso com a ajuda de setas amarelas que mãos caridosas, diria quase carinhosas, sem vandalismo, pintaram nos postes de electricidade. Este caminho não pareceria desagradável, não fora o rio malcheiroso que o acompanha... Aliás rio malcheiroso tornou-se nesta região um pleonasmo. Se há água, na melhor das hipóteses, tem que ser mal-cheirosa e, em muitos lugares, como ontem, na estrada para Castanheira do Ribatejo, nem se pode já chamar água àquilo: no espaço onde devia correr água grudou-se uma pasta negra como o petróleo. O caminho alarga-se, piso um pavimento com grandes lajes de pedra, entre canviais. Avisto uma quinta. Surgem os primeiros campos de tomate mais ou menos apanhado. Poder-se-iam encher camiões com o tomate e os marmelos que, ao longo do dia, vejo abandonados pelos campos ou à beira do caminho. O resto são canaviais. O pinhal?... É evidente que também não se mudou para aqui.
A temperatura é fresca, o entusiasmo grande, o bem-estar intenso, sinto a mochila leve, tudo corre pelo melhor até ao momento em que, após hora e meia de caminhada, começo a sentir sede. Poiso a mochila, bebo água, como as primeiras bolachas vitaminadas, mais um pedaço de chocolate preto. Volto a pôr às costas a mochila, porém escorrega-me uma alça, fica todo o peso suspenso na outra – que se parte. Não a alça propriamente, que aguenta muito mais peso, mas o parafuso que a unia ao saco. Fito a mochila com a maior perplexidade. Não é possível... Outro defeito do equipamento? Outra traição das técnicas experimentadas em laboratórios? Peço a esta mochila duas únicas qualidades, ser leve e resistente, avaliei todos os pormenores excepto este, não desconfiei da qualidade dos metais. E agora? Se com as duas alças e o cinto, o peso bem distribuído e assente nas ancas, eu tenho dificuldade em transportar o meu fardo – como é que posso continuar? Abandono as bagagens? E o que visto nos próximos dias, onde durmo, o que bebo?...
Angústia crescente. Que fazer?
Segunda-feira, 31 de Maio de 2010
Manuela DegerineCapítulo VEtapa 2, de Alverca à AzambujaSegunda parte: AzambujaAí está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visíveis sinais de vida, asseadas e com ar de conforto as suas casas.Almeida Garrett, Viagens na Minha TerraO que farás, leitor aventureiro, se a imprudência te conduzir a este extremo? Após um balanço muito rápido, já que a solução é urgente, eu concluo que me não resta outro recurso: peço boleia. Parece um risco mas, comparado com os camiões, um risco sensato. Estendo o polegar, três minutos depois pára um carro, vejo um rapaz com aspecto correcto, pergunto se vai para a Azambuja – ele chama-se Dmytro e tem os olhos verdes. Oferece-me uma água neste café da Azambuja.
Almeida Garrett dedica o terceiro capítulo das suas Viagens à descrição do café, que não pode ser clássica, por estar fora de moda, devera ser romântica, o que não convém, por o romantismo de 1843 não ser verosímil, invoca por isso a fé de Boileau: a verdade. Nada, nada, verdade e mais verdade. Encontro-me aqui em simétrica posição. Também devera, seguindo a elegância do meu tempo, pôr aqui um rap, espalhar seringas no chão, convidar traficantes guest star, iá, lançar tags nas paredes, animar tudo com palavrões... Ficava o café da Azambuja digno do CCB. Todavia... Na verdade quase nada o distingue, nem sequer o mau gosto, da maioria dos cafés de Lisboa. Demorei eu tanto para aqui chegar... Andei tantos quilómetros a pé... Corri tantos riscos... Ficam os leitores desiludidos? Eu também. Bebo uma Água das Pedras com a rodela de limão. Para me consolar. Sabe-me bem. Única particularidade: há moscas. Moscas que picam e que ninguém consegue enxotar.
Abrigo-me no estereótipo do peregrino, conto a Dmytro que vou para Fátima, ele não me acha peregrina como as outras, faço perguntas para disfarçar a mentira, ele explica como vive na minha terra, a brutalidade dos patrões, a diferença entre o salário prometido e o salário pago, a hostilidade audível, embora intermitente, volta para a tua terra; os portugueses parecem-lhe mais individualistas do que os ucranianos. Percebo, por detrás do que ele conta, desequilíbrios da sociedade portuguesa, os milhares de licenciados sem emprego, a falta de mão-de-obra qualificada. Os ucranianos trabalham em Portugal com os mais rudes e ignorantes: isto deve dar uma estranha perspectiva dos portugueses. Almeida Garrett queixava-se de viver num tempo de barões, eu vivo no dos construtores, dos empresários, netos bastardos daqueles; estas palavras ganharam sentido pejorativo e sabemos todos porquê. Até hoje eu só associava o Carregado à primeira linha de caminho de ferro, aquela cuja construção Almeida Garrett objurgava, nos caminhos-de-ferro dos barões é que eu juro não andar, agora a esta imagem juntaram-se, por um lado, os esgotos espessos de mau-cheiro, os monstros denominados camiões e, por outro, a gentileza séria de um ucraniano.
Almeida Garrett criticava um progresso que endividava o país e ameaçava sete séculos de cultura – hoje trata-se da sobrevivência física neste espaço. Uma sociedade sem peões é uma sociedade degradada de múltiplos pontos de vista, mais poluída, mais violenta, menos solidária: uma sociedade na qual não apetece viver. Oiço os leitores inquirirem se o meu ideal de vida são as viagens a pé... Não: mas parecem-me um indicador fiável. Claro que, na azáfama de todos os dias, eu apanho o comboio, apanho o metro, apanho autocarros, apanho táxis, apanho aviões – vivo no século XXI. Todavia, para neste século continuarmos a viver, é urgente modificar alguns dos nossos hábitos e corrigir muitos dos nossos erros. Os portugueses circulam de carro porque os transportes públicos são insuficientes, porque as autarquias não lhes preservam espaço para a caminhada; e, quando falo de caminhada, não me refiro a cem metros em qualquer parque mas à possibilidade de ir a pé trabalhar, fazer compras ou acompanhar os filhos – à vida quotidiana. Nas cidades portuguesas que eu conheço não há passeios, excepto nos centros, perto da câmara ou da junta; e, mesmo quando os há, têm carros estacionados, o peão é obrigado a fazer ziguezagues, subir e descer do passeio, expondo-se a ser atropelado. As consequências são múltiplas, passam pela obesidade da população e chegam à monomania da rádio, a única do mundo que quase só fala de trânsito: alma doente num corpo doente.
As gerações que os antecederam transmitiram aos nossos pais a região de Lisboa, que agora atravesso, semelhante à que Almeida Garrett conheceu – em menos de cinquenta anos tornou-se uma lixeira, águas fedorentas, ares envenenados, campos cobertos de lixo. Transmitiremos isto às gerações futuras. Não nos podemos orgulhar deste progresso.
Informaram-me que os bombeiros voluntários dão abrigo aos peregrinos jacobeus; quero saber em que condições. O acolhimento é franco e caloroso. Mostram-me a sala de festas onde se encontram vinte e um colchões dispostos em três pilhas. Limpos. Indicam-me uma casa de banho. Igualmente limpa. Para tomar duche cumpre avisar, por os duches se situarem numa camarata masculina. Coloco o saco-cama em cima da pilha mais baixa de colchões, ponho no caixote as embalagens dos biscoitos e chocolates que, ao longo do dia, fui comendo, vou à casa de banho lavar a mochila que, por eu ter transpirado litros de suor, começa a exalar um odor desagradável; ponho-a a secar pendurada entre duas cadeiras. Quando digo que desejo tomar duche, colam um cartaz na porta da camarata: Cuidado, senhora no duche. Respeito, discrição e simpatia.
Escrevo um pouco, enquanto descanso, depois saio para ver a Azambuja que, até aqui, não passava de uma estação no trajecto entre Tomar e Oriente, isto é, quase no fim da viagem: um sinal para arrumar os livros ou o portátil. Descubro, com alguma surpresa, uma terra bem preservada. A amabilidade dos moradores, que dizem boa tarde, quando passo, manifesta um relacionamento sereno e harmonioso. A rua principal encontra-se embandeirada, um evento denominado Arte ao Vento, que lhe acrescenta um aspecto festivo. Subo e desço. Admiro as casas brancas com barras coloridas. Observo um ninho de cegonhas no parque. Entro na igreja barroca: talha dourada e azulejos de cor azul, branca e amarela. Converso com um seleiro numa loja-atelier. Como arroz de pato num restaurante.
Caminhei não menos de vinte quilómetros; não me doem os pés. Deito-me cedo. Durmo nove horas e meia.
Domingo, 30 de Maio de 2010
Manuela DegerineCapítulo IVEtapa 2, de Alverca à AzambujaPrimeira parte: de Alverca ao CarregadoSomos chegados ao triste desembarcadoiro de Vila Nova da Rainha, que é o mais feio pedaço de terra aluvial em que ainda poisei os pés. O sol arde como ainda não ardeu este ano.Almeida Garrett, Viagens na Minha TerraTodos os técnicos da caminhada insistem nesta regra: nenhum caminhante deve transportar mais de dez por cento do seu peso. Ora eu, com um metro e cinquenta e sete de altura, raro ultrapasso os quarenta e sete quilos. Não convém por conseguinte levar mais de quatro quilos e meio, o que transforma a escolha de uma mochila num problema de resolução complexa: as mais ergonómicas e práticas, com bolsas múltiplas e fechos em todas as direcções, chegam a pesar dois quilos e meio... Após ensaios demorados e dilemas duvidosos, optei por uma muito simples, um saco impermeável com duas alças e um cinto para o prender nas ancas, ganhando no peso, perdendo na funcionalidade pois, quando preciso de algo, água, maçã, protector solar, tenho que tirar a mochila, poisá-la, abri-la e procurar. Para facilitar esta busca, reparti a impedimenta em quatro embalagens de plástico, de cores distintas, a roupa, a higiene, a comida, o saco-cama, o que reduz o risco de os objectos, como é seu costume, se camuflarem no fundo da mochila no instante em que são com urgência necessários... Tenho, para além disto, uma bolsa-cinto onde coloco lenços, telemóvel, caneta, bloco (minúsculo), mapa (dobrado)... Não é o ideal mas paciência: adapto-me.
Saio de casa às seis horas de quinta-feira 24 de Setembro e, logo à saída do prédio, recebo um sinal do Espírito Santo, que me desliza pelo cabelo e é aparado pelo braço direito. A primeira reacção é de repugnância, malditos pombos, apanho alguma salmonela, vale não vale a pena voltar a casa, limpo o braço, apalpo o cabelo, que não parece sujo, opto por prosseguir. Sinal fasto ou nefasto? Rio-me. Sinto-me leve, apesar da mochila. E bem disposta.
Apanho o comboio para Alverca, ponto final da primeira etapa, atravesso a localidade, passo uma escola, um estádio, sucessivas zonas industriais. O percurso torna-se agradável a partir de Alhandra graças a um habitante que, vendo-me avançar na direcção da N10, me aconselha o Caminho Ribeirinho para Vila Franca – um espaço magnífico à beira do Tejo, quatro quilómetros que parecem curtos, Tejo, ar, luz, plantas, a ponte, ciclistas, corredores e muitos caminhantes. Um francês ter-me-ia olhado sem reagir, vai para a N10, estúpida opção, o problema é dela; este homem, que me chama para indicar o melhor caminho, manifesta uma das facetas que mais aprecio nos portugueses. Tal qualidade corre, no entanto, o risco desaparecer por via da crescente violência urbana; e, desde que comecei as minhas viagens, aprendi já a medir a insegurança na proporção inversa deste civismo.
Chego às dez horas a Vila Franca, começo a sentir o peso da mochila, sento-me no parque, entre o rio e a estação, à sombra, para refrescar, o calor chega já aos trinta graus, parece-me, como uma sanduíche, nozes, figos, uma banana, bolachas vitaminadas: o movimento abriu-me o apetite. Falta-me caminhar quase vinte quilómetros até à Azambuja. Saindo de Vila Franca encontro-me, uma vez mais, numa zona semi-rural, semi-industrial, sem urbanismo nem urbanidade, lixo, fábricas, vacas a pastar, caminho à beira da estrada, não há passeio, uma vez mais, contudo, poucos metros adiante, vejo casas com paredes brancas, roupa estendida, vasos de flores, humanidade teimosa num mundo de brutos, continua a não haver passeio, que municipalidades são estas, apenas uma ponte aérea para os peões não serem todos os dias espalmados, acabo por chegar a uma estrada mais calma, entalada entre a zona industrial, um esgoto malcheiroso e a linha do caminho de ferro. Passo a estação de Castanheira do Ribatejo, chego à do Carregado. Faz cada vez mais calor. No primeiro restaurante como uma sopa de feijão verde – deliciosa. Compro outra garrafa de água. E continuo.
O objectivo é seguir na direcção de Vila Nova da Rainha para chegar à Azambuja pela N3. Interessa-me ver Vila Nova da Rainha, onde Almeida Garrett desembarcou, vindo num vapor do Terreiro do Paço; e presumo que seja possível caminhar à beira da N3. Pois... Não sei como é, leitor perplexo, talvez consequência do calor, que me atordoa, do decorrente cansaço, que me surpreende, qualquer lei da física estabelecerá a relação entre a temperatura do ar e o peso das mochilas, o da minha, embora eu tenha bebido os dois litros de água, parece aumentar, devia encontrar uma ponte que não vejo, pergunto a sucessivos passantes, a Azambuja é por ali, vire à direita, sempre em frente, perdi as setas amarelas do Caminho de Santiago, encontro-me à beira de uma estrada sem berma, devera retornar, procurar as setas, alguma falhei, o calor e a mochila comprimem-me a inteligência, voltar atrás, redobrar a caminhada, teimo pensando que será assim durante alguns metros, mais adiante voltarei a encontrá-las, todavia quanto mais avanço, maior o perigo, há meio metro entre o muro e os camiões, não me atrevo a atravessar, avançar é loucura certa, recuar também, por que diabos me meti nisto, a minha terra perdeu a brandura, a cortesia, afabilidade do caminhar, devera eu seguir o Caminho francês, de Le Puy-en-Velay a Santiago de Compostela, mil e seiscentos quilómetros turísticos, protegidos e acompanhados.
Como é que eu vou sair daqui?