Sexta-feira, 3 de Dezembro de 2010

Deus como problema (conclusão)



Adão Cruz

Os que comem tudo e não deixam nada, os que movem os cordéis de todas as marionetas deste mundo, os que fazem a fome para que não lhes falte a fartura têm casas de ouro, férias para descansar de não fazer nada, hospitais de luxo, o céu garantido aqui na terra e lá em cima, nas primeiras filas que o Vaticano sempre lhes reservou durante séculos. No meio deste cenário parece nascer, por vezes, um raio de luz… encarnando o arrependimento divino em pessoas como Leonardo Boff e tantos outros, mas logo surgem da sombra vigilantes cardeais e papas como João Paulo II e Bento XVI, de mãos dadas com as catedrais do dinheiro, a representar uma Igreja retrógrada e absolutista, fortemente entrosada com os poderes opressores, na cruzada contra toda e qualquer Teologia da Libertação, contra toda e qualquer filosofia política de amor, fraternidade e solidariedade para com os condenados da terra.
Não, José Saramago, venha o diabo e escolha. Mas o Deus de cá e o Deus de lá têm-se mostrado bastante diferentes.
Meu caro Saramago a quem muito considero, corroídos o discurso crítico e o cérebro, quase só nos resta, como diz e muito bem, ficarmos todos loucos ou então…acreditar em Deus.
publicado por Carlos Loures às 22:30
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Quinta-feira, 2 de Dezembro de 2010

Deus como problema (6)



Adão Cruz

(Continuação)

Vamos descer das planuras estrelíferas, vamos aproximando, aproximando a lupa, e vamos pousar nesta mão-cheia de terra habitada por uns bichinhos chamados homens. Vamos pensar à sua escala no Deus que eles criaram. Como pode esse Deus do amor e da justiça ter algum crédito quando permitiu que se cometessem, em seu nome, crimes e barbaridades como os da Inquisição, requintada de sanguinário espírito, a partir de altas decisões eclesiásticas como a Inconsutilem Tunicam, a bula Ad Extirpanda e mais tarde, o Santo Ofício, tudo, repito, em nome de Deus e para o serviço de Deus? Como pode aceitar-se um Deus que deixa os seus máximos representantes na terra fazerem alianças e concordatas com o nazismo e o fascismo, transformando-se em seus colaboradores e cúmplices, e elevando Hitler, Mussolini e Salazar, à categoria de confrades e profetas? Não é fácil aceitar-se um Deus justo quando não tem a coragem de aconselhar os seus ministros e servidores a pedir perdão pelo mal que fizeram aos povos do mundo inteiro, ao colocarem-se, nos momentos decisivos para a história da humanidade, ao lado dos ricos, dos poderosos e dos opressores. Permitirá um Deus omnividente que a sua imagem esteja a ser conspurcada e substituída, sempre com a cinzenta aceitação da Igreja, pela imagem do deus dinheiro, do deus da riqueza e da exploração implacável, com religião e liturgia próprias, simbolizando o progresso, a virtude e o bem, mas tornando impossível qualquer ponte entre o povo e os mercados financeiros, entre a justiça social e o sucesso do capital? Que raio de Deus autoriza, à cabeça da sua representação, Papas que perverteram o conteúdo humanista do cristianismo e ajudaram a matar a esperança dos povos numa sociedade sem exploradores nem explorados?
Quem pode chamar Pai, Pai poderoso, a um Deus que permite a entrada de milhões de pessoas, seus filhos, nas câmaras de gás, e não desliga a máquina? Deus estava lá…porque Deus está em toda a parte! Deus dissera: deixem vir a mim os pequeninos. Que graça! Só se forem os meninos ricos, porque os pobres, os perseguidos, os marginais, os das barracas, os famintos, os esfarrapados não têm lugar no amplexo divino. Morreram e morrem milhões de crianças às mãos da fome e da violência, e Deus atafulha as mesas dos que não têm fome e carrega as armas dos que vivem atrás das muralhas e nada têm a recear, a não ser a força da justiça! Não poderia o tal Deus ter dado uma mãozinha aos milhões dos sem-terra do Brasil e aos famintos índios de Chiapas, em vez da opressão, ameaças, sequestros e assassínios perpetrados pela burguesia inatingível? Que pensará esse Deus, gostava eu de saber, ao ver milhões de africanos, afegãos, iraquianos e outros escorraçados da vida nas terras crucificadas, morrer ao peso das bombas e nos braços da fome, ouvindo arrotar de indigestão os abutres que os sugam até ao tutano? Sem forças para erguer os olhos, querem lá eles saber do prolongamento da vida para além da morte, querem lá eles saber do céu e do prémio que os espera?! As guerras multiplicam-se como moscas e fazem correr rios de sangue…sempre…sempre ao sabor dos que mais rezam a Deus! Milhares de mortos, despedaçados, estropiados, violentados, enquanto o mandante bate no peito e reza a Deus, e a Igreja o borrifa de água benta. Terá sido Deus a dar a inteligência, a força e a cultura às grandes potências para terem o desplante de classificar o mundo em primeiro, segundo e terceiro, a fim de melhor escalonarem e planificarem a sua voracidade e rapina? Provavelmente foi, porque as grandes potências abarrotam de igrejas.

(Continua).
publicado por Carlos Loures às 16:30
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Segunda-feira, 29 de Novembro de 2010

Deus como problema (4)




Adão Cruz

Saramago não contou, mas pela mais comum das evidências científicas reconhece que no “Universo há mais de 400 mil milhões de galáxias e que cada uma delas contém mais de 400 mil milhões de estrelas”. O Universo está, com efeito, infinitamente pejado de misteriosas estruturações materiais das quais conhecemos um minúsculo infinitésimo. São provavelmente aos biliões, por exemplo, as estruturas materiais irradiantes cuja essência e complexidade ultrapassam todos os limites da imaginação humana.

Ao descobrirmos os raios X, os raios Gama, os raios Laser, tão reais como os meus dedos, não desvendamos mais do que uma ínfima molécula deste Universo espalhado por milhões de anos-luz. As estrelas são, provavelmente, aos triliões, e cada uma delas constitui, certamente, o centro de um sistema solar imensamente maior do que o nosso, o qual, sendo dos mais pequenos, faz da terra uma pedrinha nas mãos duma criança. A terra é muito menos do que um pequeníssimo grão de poeira no seio do Universo, e o Homem, essa infinitesimal partícula considera-se, numa ridícula e paranóica postura, o ser mais perfeito, a obra-prima, a criação por excelência, como se tal fosse racionalmente compreensível e aceitável.


“Postos aqui sem saber porquê nem para quê”, diz Saramago, “tivemos de inventar tudo. Também inventámos Deus, mas esse não saiu das nossas cabeças, permaneceu lá dentro, como factor de vida algumas vezes, como instrumento de morte quase sempre. A esse Deus não podemos arrancá-lo dentro das nossas cabeças, não o podem fazer nem mesmo os próprios ateus, mas ao menos discutamo-lo”. É isso que sempre tenho procurado fazer, e faço-o neste momento, dizendo a Saramago que Ele entrou na minha cabeça à força da destruição da razão e do entendimento, perpetrada por mentes ignorantes e retrógradas que assaltaram a minha infância e adolescência, mas nesta altura, à custa de muita luta e sofrimento, já não existe dentro da minha cabeça.

Negando os limites da sua própria natureza e da sua imaginação, o Homem assume-se como centro do Universo e inventa um Deus, seu Pai, cuja ontológica preocupação máxima, permanente e eterna, é a salvação da alma deste ridículo micróbio, desprezando todos os outros seres cuja diferença está, apenas, num número inferior de neurónios! Admitindo absurdamente a pré-existência de tal Deus, a sua revelação exclusiva ao animal-homem, repito, apenas porque os neurónios deste são mais numerosos do que os do cão ou do macaco, faz rir.

Consideram os cientistas, após as últimas fotografias das sondas que foram até Marte, que este planeta deve ter contido muita água e provavelmente vida, há milhares de milhões de anos. Se assim for…que vida? Animais com mais ou menos neurónios do que o Homem? Sem neurónios mas com outro substrato da razão que não imaginamos? Outros seres, estruturas materiais desconhecidas, mas, eventualmente, muito mais complexas do que o Homem? Sendo Deus sempre o mesmo – Deus é Uno e Universal – onde estará a alma dos marcianos? No céu? No inferno? Não a tinham? Coube-lhes a pouca sorte de lá não terem chegado os missionários e todos os bons pregadores da fé e do império a tempo de os salvar?

Quando a terra ficar assim deserta como Marte – do que não duvido, a avaliar pelo grau de destruição presente nos nossos dias – e ao fim de milhões de anos chegarem aqui os habitantes de outra galáxia, adivinharão a existência de um punhado de almas bem-aventuradas chilreando eternamente na imensidão do paraíso, e de outro punhado gemendo nas profundezas do inferno? Nascido, revelado ou realizado em tão microscópico cérebro, tal Deus universalmente omnipotente, omnividente e omnisciente nunca poderia existir, pois ao primeiro sopro de vida geraria, de imediato, a sua auto-destruição, através de uma incompatível e absurda auto-subestimação divina decorrente de tão inglória e mesquinha concepção.

(Continua).
publicado por Carlos Loures às 22:30
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Sábado, 20 de Novembro de 2010

Deus como problema (3)



Adão Cruz

Por que razão o Papa apelou aos muçulmanos “para que recusem rancores, intolerância e violência como via para suster a propagação do terrorismo e frenar a vaga de fanatismo cruel que põe em causa o progresso e a paz”, e não apelou aos cristãos do lado de cá para pararem as agressões, os assassínios, os assaltos e as invasões? A evidência é demasiado evidente para ser contornada e camuflada.

Quando Saramago fala “nos motivos de natureza política, económica, social, psicológica, estratégica e até moral em que se presume terem ganho raízes os movimentos islamistas agressivos, motivos que levaram à colocação de bombas transportadas às costas em mochilas, e que foram suficientes para que os alicerces da nossa tão luminosa civilização estremecessem e abrissem fendas, criando o mais extremo terror”, só mostra que os pés desta civilização não só são, realmente, de barro, como perderam a mais sólida base de apoio, a mais segura das seguranças, o sentido do Direito, da Moral e da Justiça. Por isso eu não concordo muito com José Saramago quando dá a entender que o problema do Deus de lá e o problema do Deus de cá, o deles e o ocidental são idênticos. Penso que o não são, sobretudo nos tempos que correm. Aquilo que o Deus de cá permite é muito mais terrível, cruel, injusto e sanguinário. Já não falo em Hiroshima e nos muitos Vietnams, ou no quase milhão de vítimas do Iraque, mas lembro apenas, como exemplo, o que se passou no tenebroso massacre de Faluja e no selvagem, bárbaro, irracional e desumano esmagamento de Gaza, que nem os próprios algozes conseguem calar.



“Ainda não consegui que alguém que não acredita no prolongamento da vida para além da morte me desse um argumento válido para ser bom para o meu semelhante”. Isto diz o tal meu amigo, que insiste no prémio, no prémio à dimensão da imaginação humana, porque não pode ser outra, um prémio que consiste na ausência de dor, de sofrimento, de fome, de frio, eventualmente com música celestial, um novo género de música infalivelmente feita de notas iguais às de cá, porque não concebemos outras, por enquanto, possivelmente com asas para dar umas voltas pelos céus do céu, e para os mais cultos que exigem um toque transcendental, a felicidade eterna de estar, finalmente, na magnífica presença de Deus, sorridente e afável, nunca mais temido nem ameaçador, porque, entrados no céu é trigo limpo, nunca mais de lá saímos. O prémio que é indispensável receber além da morte para que seja paga e justificada a procura do equilíbrio da justiça e da verdade da vida!

Apesar das diferenças entre o Deus de cá e o Deus de lá, e dos diferentes prémios celestiais post-mortem, parece que nem dum lado nem doutro o facto de se acreditar no céu consegue argumentos válidos para se ser bom para o seu semelhante. A vida e a história mostram-no frontalmente. Julgo que nesta civilização do petróleo a que Saramago alude, com poços cheios para uns, e para outros apenas a gotícula para o isqueiro, o amigo a que atrás me refiro já está desfasado.

O prolongamento da vida para além da morte, em que acreditam ou fingem que acreditam os únicos que, a seu ver, lhe podem dar um argumento para se ser bom para o semelhante, pouco os incomoda. É certo que a maior parte dos que acreditam não têm poços de petróleo. Mas os que têm poços de petróleo não deixam de louvar e agradecer a Deus e de fingir que acreditam no prémio celestial. Os que não acreditam, os que, a seu ver, não têm argumentos para se ser bom e solidário, são os que mais proclamam que a lastimável situação deste mundo não engana a mais singela das evidências e sempre lutaram e deram a vida para que se saiba que essa mesma situação decorre, exactamente, não da bondade mas da crueldade dos que, em nome de Deus, fazem a guerra e sempre mataram em nome da paz.

(Continua).


(ilustração de Javier de Juan-Creix)


publicado por Carlos Loures às 19:30
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