Sexta-feira, 15 de Outubro de 2010

Fernando Pessoa, Aristóteles e Manuel Bandeira - Arte Poética

Vamos hoje começar a recordar a "Maratona Poética" que organizámos. Poemas e textos sobre a Arte Poética e belíssimos quadros do Adão Cruz. Começamos com um poema de Fernando Pessoa (sob o heterónimo de Bernardo Soares), superiormente dito pelo grande actor brasileiro Paulo Autran. Aristóteles e Manuel Bandeira completam um trio fascinante.



AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.


E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.




Aristóteles
(Séc. IV a.C.)



ORIGEM DA POESIA

Parece haver, em geral, duas causas, e duas causas naturais, na génese da Poesia. Uma é que imitar é uma qualidade congénita nos homens, desde a infância (e nisso diferem dos outros animais, em serem os mais dados à imitação e em adquirirem, por meio dela, os seus primeiros conhecimentos); a outra, que todos apreciam as imitações.

Prova disto é o que se passa na realidade. Daquilo mesmo que vemos com desagrado, apreciamos contemplar a imagem muito exacta, como, por exemplo, as formas dos animais mais desprezíveis e dos cadáveres.

Outro motivo ainda é que aprender é muito agradável, não só aos filósofos, mas aos outros homens igualmente.Porém, curta é a parte que nela têm. Por isso se regozijam, ao verem as imagens, porque têm oportunidade de aprender enquanto observam, e de compreender o que cada uma representa, por exemplo, que este assim e assim é fulano. Se se der o caso de a não terem visto anteriormente, já não é a imitação que provoca o prazer, mas a execução, o colorido, ou qualquer outro motivo neste género.

Ora, como é natural em nós a imitação, a harmonia e o ritmo (pois é evidente que os metros são partes dos ritmos), de início, os que nasceram para isso, progredindo aos poucos, criaram a Poesia, a partir dos seus improvisos.

(“Poética”, 1448 b, tradução de Maria Helena da Rocha Pereira).


Manuel Bandeira

(Recife 1886-Rio de Janeiro 1968)

 

POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação


_________________________________
publicado por Carlos Loures às 08:00
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Quarta-feira, 8 de Setembro de 2010

Maratona poética - Pessoa, Aristóteles e Manuel Bandeira, são os primeiros.



AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.


E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Com este poema de Fernando Pessoa (sob o heterónimo de Bernardo Soares), superiormente dito pelo grande actor brasileiro Paulo Autran, declaramos solenemente aberta a
 I Maratona Poética do Estrolabio

Aristóteles e Manuel Bandeira completam o trio com que  a inauguramos:



Aristóteles
(Séc. IV a.C.)



ORIGEM DA POESIA

Parece haver, em geral, duas causas, e duas causas naturais, na génese da Poesia. Uma é que imitar é uma qualidade congénita nos homens, desde a infância (e nisso diferem dos outros animais, em serem os mais dados à imitação e em adquirirem, por meio dela, os seus primeiros conhecimentos); a outra, que todos apreciam as imitações.

Prova disto é o que se passa na realidade. Daquilo mesmo que vemos com desagrado, apreciamos contemplar a imagem muito exacta, como, por exemplo, as formas dos animais mais desprezíveis e dos cadáveres.

Outro motivo ainda é que aprender é muito agradável, não só aos filósofos, mas aos outros homens igualmente.Porém, curta é a parte que nela têm. Por isso se regozijam, ao verem as imagens, porque têm oportunidade de aprender enquanto observam, e de compreender o que cada uma representa, por exemplo, que este assim e assim é fulano. Se se der o caso de a não terem visto anteriormente, já não é a imitação que provoca o prazer, mas a execução, o colorido, ou qualquer outro motivo neste género.

Ora, como é natural em nós a imitação, a harmonia e o ritmo (pois é evidente que os metros são partes dos ritmos), de início, os que nasceram para isso, progredindo aos poucos, criaram a Poesia, a partir dos seus improvisos.

(“Poética”, 1448 b, tradução de Maria Helena da Rocha Pereira).


Manuel Bandeira

(Recife 1886-Rio de Janeiro 1968)

 

POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação


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Daqui a uma hora, chegam mais três maratonistas - Sílvio Castro, Sophia de Mello Breyner Andresen e Pablo Neruda
publicado por Carlos Loures às 00:00
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Segunda-feira, 6 de Setembro de 2010

A Arte poética - A catacrese

Nota prévia: Aproximando-se a "Maratona Poética", temos vindo a publicar textos sobre poetas e sobre a poesia em geral. Este, de João Machado, é o primeiro que faz um levantamento das teses clássicas sobre a Arte Poética.

João Machado


Desde a antiguidade que se tenta enunciar regras para a arte poética. Mais do que evitar a proliferação de má poesia, procura-se assim descobrir o caminho que permita às pessoas comuns fazerem poesia. Na verdade, esta procura subentende o reconhecimento generalizado da importância da poesia para a vida dos homens. Mais concretamente, para a comunicação entre os homens. Numerosos poetas e pensadores deram o seu contributo neste campo, desde Aristóteles e Horácio Flaco, na antiguidade, até Boileau, Edgar Allan Poe e T. S. Eliot.. entre outros, mais recentemente.

O poeta francês Jean de Royére, simbolista, seguidor de Mallarmé, na introdução a Clartés sur la Poésie, livro de 1925, editado por Albert Messein, disse estar persuadido de que a poesia é uma repetição e uma catacrese, e que esta última é o elemento essencial, a figura fundamental, a alma da poesia. Ora bem, o que é a catacrese?

José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, explica que é um substantivo feminino, que vem do grego katakhrisis, pelo latim catachresis, e que é um tropo pelo qual se estende a significação de uma palavra a uma ideia que tem falta de termo próprio, como em “pernas da cadeira”. Por sua vez, Rocha Lima, professor brasileiro, na sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa (página 490 da edição de 1967), refere que na figura catacrese ocorre o total esquecimento do sentido etimológico das palavras, e que é a última consequência de outra figura, a metáfora.

Rocha Lima recorda-nos ainda que a linguagem figurada, ou tropológica, assenta nas alterações de sentido das palavras, fundamentada no que chama a mais natural das leis psicológicas: a associação de ideias.

Talvez haja exagero na definição de poesia avançada por Royére. Mas é um facto que a poesia, como aliás a literatura em geral, contribui grandemente para a renovação e o enriquecimento da linguagem. A procura e a organização das palavras de modo a transmitir o melhor que possível uma mensagem a um auditório, integram o esforço constante do poeta. Outro aspecto do seu trabalho é, sem dúvida, procurar a musicalidade adequada à sua mensagem. Mas aquilo que o termo catacrese procura exprimir, forma sem dúvida uma base essencial para a arte poética.
publicado por Carlos Loures às 16:30
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Segunda-feira, 30 de Agosto de 2010

Os poetas: ladrões de fogo ou artífices do verbo?

Carlos Loures

Definir a natureza da arte poética, é, como poderemos ver no apreciável painel que vamos expor na nossa “maratona poética”, uma discussão tão antiga quanto a civilização. Platão, Aristóteles, Horácio, Boileau, milhares de filósofos e de poetas discorreram sabiamente sobre este tema. Teremos oportunidade de, nas 24 horas do dia 8 de Setembro, ler 72 textos – poemas, textos poéticos, citações… Uma ampla panorâmica sobre esse tema tão discutido ao longo dos séculos.

“Ladrões de fogo” foi uma designação que usei num texto que publiquei na revista “Pirâmide” , da qual já aqui tenho falado. Nesse texto comparo os poetas a Prometeu. O poeta é um ladrão de fogo, um mago. Pelo poder da palavra cria a beleza para a ofertar aos homens. A comparação faz sentido, é sugestiva, mas talvez haja outra, menos bela, mas não menos verdadeira. Vejamos.

O poeta produz esta magia usando palavras comuns e não palavras mágicas. Esta capacidade de, com palavras usadas no dia a dia, construir um poema, pode conduzir-nos à tal conclusão, complementar da primeira – além de mago, o poeta é um artífice.

A comparação com Prometeu trazendo o fogo do Olimpo para a terra ou, como também já li algures, com Orfeu enfeitiçando a natureza, homens, animais e plantas, com o seu canto melodioso, é muito bonita. Mas equipará-lo a um trabalhador leva-nos a uma imagem , menos “poética” no sentido convencional, mas mais integradora da arte poética no quotidiano.: -o poeta é um artífice. A expressão «artes e ofícios» tem aqui pleno cabimento - o poeta é, portanto, um homem comum, um artista como um sapateiro ou um alfaiate o são. Em vez de cabedal ou de tecido, usa palavras, sentimentos e conceitos como matéria prima. Ofício: poeta. Daria lugar a conversas como esta: - "Ah, sim o Jorge. Olha, foi colocado como poeta na Covilhã".

 Na verdade e humor aparte, a divinização do poeta, isola-o e condena-o ao ostracismo. Ora um poeta, um escritor, um artista deveria ter uma função na sociedade. Como teve. Bem sei que na Pré-História não havia televisão, nem blogues, mas quem, nas sociedades primitivas dispensaria que à noite, acabadas as tarefas diárias, se contassem histórias? Podemos puxar pela imaginação: o fulgor das labaredas das fogueiras cria sombras sinistras nas paredes da caverna. O poeta, o contador de histórias descreve as peripécias da caçada, as crianças aconchegam-se temerosas às mães e as passagens mais excitantes da narrativa são sublinhadas com gritos de medo ou com um rumor de assentimento. Esse contador de histórias, o aedo da Grécia, bardos, jograis, trovadores, tiveram a mesma tarefa de um poeta, ou de um escritor dos nossos dias – efabular a realidade e devolvê-la, valorizada pelo verbo, aos seus protagonistas - os homens comuns.

Vejo, com algum desgosto, persistir um conceito de poesia que nada tem a ver com essa função social, identificando-a com coisas etéreas, devaneios, ideias imprecisas. Ora (e foi isso que tentei dizer com os meus textos anteriores), na minha maneira de ver a poesia nada tem a ver com essa indefinição. Ela  é, tal como o sonho na “Pedra Filosofal” como diz o Gedeão . "uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer” e o poeta, um trabalhador tão necessário como todos os outros. Claro, há grande poesia intimista, que ao dar-nos conta da dor, da angústia do indivíduo que a confessa, nos torna conscientes das nossas próprias dores e angústias. Não estou a querer reduzir o território da poesia.


Não foi por acaso que escolhemos para o arranque da "Maratona Poética" o poema de Fernando Pessoa,
vestindo o seu heterónimo de Bernardo Soares, Autopsicografia. aquele que diz: "O poeta é um fingidor/
Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente... Todos conhecemos esta primeira quadra. Mas há mais duas e, quanto a mim, é na segunda que se encontra a receita poética pessoana: "E os que lêem o que escreve,/Na dor lida sentem bem,/Não as duas que ele teve,/Mas só a que eles não têm."

 Ao fingir as dores que realmente sente o poeta torna quem o lê consciente das dores da Humanidade.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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