Mark Twain Cartas da Terra - A Arca (continuação)
(tradução de Miguel Batista)
No terceiro dia, por volta do meio-dia, descobriu-se que tinha ficado uma mosca para trás. A viagem de regresso revelou-se longa e difícil, por conta da falta de uma carta de marear e de uma bússola, e devido à configuração alterada de todas as costas, pois a subida constante da água tinha submergido alguns dos pontos de referência mais baixos e dado um aspecto pouco familiar aos mais altos; mas, ao fim de dezasseis dias de zelosa e fiel busca, a mosca foi enfim encontrada e recebida a bordo com hinos de louvor e gratidão, com a Família entretanto descoberta, em sinal de reverência pela sua origem divina. Estava cansada e moída, e tinha sofrido um pouco por causa do tempo, mas, fora isso, encontrava-se em bom estado. Os homens e as suas famílias haviam morrido de fome em cumes de montanha áridos, mas a ela não faltara alimento, com os inumeráveis cadáveres a fornecerem-no numa fétida e pútrida riqueza. A ave sagrada foi deste modo providencialmente preservada.
Providencialmente. É esta a palavra. Porque a mosca não tinha sido deixada para trás por acaso. Não, a mão da Providência andava ali metida. Não há acasos. Todas as coisas que acontecem, acontecem com uma finalidade. Estão previstas desde o princípio dos tempos, estão destinadas desde o princípio dos tempos. Desde a aurora da Criação que o Senhor tinha previsto que Noé, alarmado e confuso com a invasão dos prodigiosos fósseis oficiais, fugiria prematuramente para o mar desprovido de uma determinada doença de enorme valor. Estaria na posse de todas as outras doenças e poderia distribuí-las entre as novas raças de homens, à medida que elas fossem aparecendo no mundo, mas faltar-lhe-ia a melhor de todas: a febre tifóide, uma doença que, quando as circunstâncias são especialmente favoráveis, tem a capacidade de destruir completamente um paciente, sem o matar -, pois pode voltar a pô-lo de pé com uma longa vida dentro de si, ainda que surdo, mudo, cego, aleijado e idiota. A mosca-doméstica é o seu principal disseminador e é mais competente e calamitosamente eficaz do que todos os demais distribuidores do temível flagelo juntos. E, portanto, por predestinação desde o princípio dos tempos, esta mosca foi deixada para trás para procurar um cadáver tifóide e se alimentar da sua corrupção e infeccionar as suas pernas com germes e transmiti-los ao mundo repovoado como sua actividade permanente. Daquela única mosca, nas épocas que desde então transcorreram, milhares de milhões de leitos de doença foram abastecidos, milhares de milhões de corpos destruídos foram enviados para cambalear pela Terra, e milhares de milhões de cemitérios foram reforçados com mortos.
É deveras difícil compreender o temperamento do Deus da Bíblia; é uma tal confusão de contradições, de instabilidades aguadas e firmezas de ferro; de princípios abstractos e santarrões feitos de palavras e de outros, concretos e infernais, feitos de actos; de bondades fugazes que o arrependimento converteu em permanentes malignidades.
Contudo, quando após muita perplexidade se alcança a chave do Seu temperamento, ao menos chega-se enfim a uma espécie de compreensão do mesmo. Com uma franqueza assaz bizarra e juvenil e surpreendente, foi Ele próprio a fornecer essa chave. É ciúme!
Espero que isto vos faça ficar de boca aberta. Estais cientes - pois já vos contei isso numa carta anterior — de que, entre os seres humanos, o ciúme é declaradamente considerado uma fraqueza; uma imagem de marca de espíritos mesquinhos; uma propriedade de todos os espíritos mesquinhos; todavia, uma propriedade da qual até o mais mesquinho de todos se envergonha - e, quando acusado da sua posse, mentirosamente a negará e, melindrado, tomará a acusação como um insulto.
Ciúme. Não o esqueceis, tende-o presente. É a chave. Com ela, ireis em parte compreender Deus à medida que formos avançando; sem ela, ninguém O pode compreender. Como vos disse, Ele próprio ergueu abertamente esta chave para que todos a vissem. E Ele diz ingenuamente, com franqueza e sem sugestão de embaraço: «Eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus ciumento.»
Estais a ver, é só outra maneira de dizer: «Eu, o Senhor vosso Deus, sou um Deus mesquinho - um Deus mesquinho, e irritável com coisas pequenas.»
Mark Twain Cartas da Terra - A Arca
(tradução de Miguel Batista)
(e Noé encheu o barco...a arca)
CARTA V
Noé começou a reunir animais. Era para haver um casal de toda e qualquer criatura que andasse ou rastejasse, nadasse ou voasse, no mundo da natureza animada. Temos de tentar adivinhar quanto tempo levou a reunir todas as criaturas e quanto é que isso custou, uma vez que não há registo dessas minúcias. Quando Símaco tratou dos preparativos para iniciar o seu jovem filho na vida adulta na Roma Imperial, enviou homens à Ásia, a África e a toda a parte para reunirem animais para os combates na arena. Demorou aos homens três anos a acumular os animais e a trazê-los até Roma. E tratava-se tão-somente de quadrúpedes e jacarés, como compreendereis; não havia cá aves, cobras, rãs, minhocas, piolhos, ratos, pulgas, carraças, lagartas, aranhas, moscas-domésticas, mosquitos — só puros e simples quadrúpedes e jacarés, e nenhum quadrúpede que não fosse de combate. Não obstante, é como eu disse: levou três anos a reuni-los, e o custo dos animais e do transporte e do salário dos homens totalizou quatro milhões e quinhentos mil dólares.
Quantos animais eram? Não sabemos. Mas eram menos de cinco mil, pois esse foi o maior número jamais reunido para aqueles espectáculos romanos, e foi Tito, e não Símaco, que fez essa colectânea. Comparados com a empreitada de Noé, não passavam de museus miúdos. Só de aves e animais terrestres e criaturas de água doce, ele tinha de reunir cento e quarenta e seis mil espécies, além de para cima de dois milhões de tipos de insectos.
Milhares e milhares destes bichos são muito difíceis de apanhar, e, se Noé não tivesse desistido e parado, ainda hoje estaria de roda daquilo, como costumava dizer Levítico. Contudo, não quero com isto dizer que ele renunciou; não, ele não o fez. Reuniu todas as criaturas para as quais tinha espaço e então é que parou.
Se ele estivesse a par de todos os requisitos desde o início, teria ficado desde logo ciente de que o que era necessário era uma frota de arcas. Mas ele não sabia quantas espécies de criaturas havia, tal como o seu Chefe não sabia. Por isso não tinha nenhum canguru, nenhum opossum, e nenhum monstro-de-gila, e nenhum ornitorrinco, e faltava-lhe um sem-número de outras bênçãos indispensáveis que um Criador amoroso proporcionara ao homem e das quais depois se esquecera, visto que elas há muito haviam deambulado para um lado deste mundo que ele nunca vira e de cujos afazeres não estava ao corrente. E, por conseguinte, só por um triz é que todas elas não se afogaram.
Só escaparam por acaso. Não havia água que chegasse para tudo. Só tinha sido fornecida a suficiente para inundar um pequeno canto do globo — o resto do globo não era então conhecido, e julgava-se que fosse inexistente.
Contudo, aquilo que real e final e definitivamente fez com que Noé decidisse parar, tendo já espécies suficientes para fins puramente comerciais, deixando assim que as outras se extinguissem, foi um incidente ocorrido nos últimos dias: um forasteiro agitado chegou trazendo notícias extremamente alarmantes. Disse que estivera a acampar no meio de algumas montanhas e vales, a cerca de mil quilómetros de distância, e que ali vira uma coisa prodigiosa: estava à beira de um precipício com vista para um extenso vale onde divisou um mar de estranha vida animal, negro e encapelado, a aproximar-se. Passado pouco tempo, as criaturas passaram por ele, debatendo-se, lutando, bulhando, guinchando, bufando — uma imensa e horrível mole de
carne tumultuosa! Preguiças do tamanho de elefantes; rãs do tamanho de vacas; um megatério e o seu harém, inacreditavelmente gigantescos; sáurios e sáurios e sáurios, grupo após grupo, família após família, espécie após espécie — com trinta metros de comprimento, dez metros de altura, e duas vezes mais conflituosos: um deles deu uma pancada com a cauda num touro de Durham, perfeitamente inculpado, e mandou-o ao ar, com um assobio, a uma altura de quase cem metros, e ele caiu ao pés do homem com um gemido e deixou de existir. O homem disse que esses prodigiosos animais tinham ouvido falar da arca e vinham a caminho. Vinham para se salvarem do dilúvio. E não vinham em casal, vinham todos: eles não sabiam que os passageiros estavam limitados a casais, disse o homem, e, de qualquer modo, também se estariam a marimbar para as regras — iriam zarpar naquela Arca, ou alguém ia ter de lhes explicar porquê. O homem disse que a Arca não aguentaria nem metade deles — e, além disso, eles vinham com fome e devorariam tudo o que lhes aparecesse à frente, incluindo a colecção de animais e a família.
Todos estes factos foram suprimidos do relato bíblico. Não encontrareis uma alusão que seja a eles por lá. A cena inteira foi abafada. Nem sequer os nomes daquelas enormes criaturas são mencionados. Isto mostra-vos que, quando alguém deixa uma lacuna repreensível num contrato, pode ser tão desonesto em relação a isso em Bíblias como noutro sítio qualquer. Aqueles poderosos animais seriam de inestimável valor para o homem nos dias de hoje, nos quais o transporte é tão solicitado e tão caro, mas todos eles estão perdidos para ele. Todos eles perdidos, e por culpa de Noé. Afogaram-se todos. Alguns deles já há oito milhões de anos.
Muito bem, então o estranho contou o que tinha para contar, e Noé viu que tinha de se ir embora antes de os monstros chegarem. Teria zarpado de imediato, mas os estofadores e os decoradores da sala de estar da mosca-doméstica ainda tinham alguns acabamentos para fazer, o que o fez perder um dia. Perdeu-se outro dia a pôr as moscas a bordo, pois havia sessenta e oito mil milhões delas, e a Divindade ainda estava com receio de que não fossem suficientes. Perdeu-se outro dia a estivar quarenta toneladas de porcaria para sustento das moscas.
Depois disso, enfim Noé zarpou — e foi mesmo na altura certa, pois a Arca tinha acabado de desaparecer no horizonte, quando os monstros chegaram e juntaram os seus lamentos aos da multidão de pais e mães chorosos e de criancinhas assustadas que, debaixo da chuva torrencial, se agarravam às rochas batidas pelas ondas e faziam ascender preces suplicantes a um Ser Todo-Justo e Todo-Clemente e Todo-Compassivo que nunca respondera a qualquer prece desde que aqueles rochedos haviam sido construídos, grão após grão tirado das areias, e que continuaria sem responder a nenhuma, quando as eras fizessem com que eles se desmoronassem e voltassem a ser areia.
(in Cartas da Terra, Bertrand Editora)
por Mark Twain
Noé e a sua família foram salvos — se é que se pode chamar a isso uma vantagem. Pus o se aí no meio pela razão de que nunca houve uma pessoa inteligente com sessenta anos de idade que aquiescesse a viver novamente a sua vida. A sua ou a de outra pessoa.
A família foi salva, sim, mas não estava cómoda, pois estavam todos cheios de micróbios. Cheios até às orelhas; gordos deles; obesos deles; distendidos como balões. Era um estado desagradável, mas não podia ser evitado, já que era preciso salvar micróbios suficientes para abastecer as futuras raças do homem com doenças desoladoras, e não havia senão oito pessoas a bordo para servirem de hotéis para eles. Os micróbios eram de longe a parte mais importante da carga da Arca, e a parte em relação à qual o Criador se sentia mais ansioso e com a qual estava mais enfeitiçado. Tinham de ter boa alimentação e quartos agradáveis.
Havia germes tifóides, e germes da cólera, e germes da hidrofobia, e germes do trismo, e germes da consumpção, e germes da peste negra, e algumas centenas de outros aristocratas, criações especialmente preciosas, áureas portadoras do amor de Deus pelo homem, bem-aventuradas dádivas do enfeitiçado para os Seus filhos — e todos eles tinham de ser sumptuosamente alojados e ricamente recebidos. Estavam instalados nos locais de melhor qualidade que os interiores da Família podiam fornecer: nos pulmões, no coração, no cérebro, nos rins, no sangue, nas tripas. Sobretudo nas tripas. O grande intestino era o ponto de reunião favorito. Era aí que se juntavam, aos milhares de milhões, e que trabalhavam e se alimentavam, e se enroscavam, e cantavam hinos de louvor e acção de graças — e à noite, quando tudo ficava silencioso, podia ouvir-se o seu suave murmúrio. O intestino grosso era efectivamente o seu céu. Atulharam-no por completo — fizeram com que ficasse rígido como o anel de um tubo de gás. Sentiam orgulho nisto. O seu principal hino fazia-lhe uma contentada referência:
Prisão de ventre, oh, prisão de ventre
O som rejubilante proclamará
Até que a mais remota entranha do homem
Louve o nome do seu Criador.
Os incómodos proporcionados pela Arca eram muitos e variados. A Família tinha de viver mesmo na presença dos múltiplos animais e respirar o tormentoso fedor que eles faziam, e ser emouquecida dia e noite pelo estrépito trovejante que os seus rugidos e guinchos produziam — e, a juntar a estes intoleráveis incómodos, era um sítio especialmente penoso para as senhoras, que não podiam olhar em nenhuma direcção sem verem uns quantos milhares de criaturas envolvidas em tarefas de multiplicação e satisfação. E depois havia as moscas. A praga voava para todo o lado e perseguia a Família o dia inteiro. Eram os primeiros animais a levantar-se, de manhã, e os últimos a deitar-se, à noite. Mas não podiam ser mortos, não podiam ser feridos, eram sagrados, a sua origem era divina, eram os animais de estimação especiais do Criador, os seus mais-que-tudo.
Em breve, as outras criaturas começaram a ser distribuídas aqui e ali sobre a Terra, dispersas: os tigres foram para a índia, os leões e os elefantes para o deserto vacante e os lugares secretos da selva, as aves para as ilimitadas regiões de espaço vazio, os insectos para um ou para outro clima, consoante a natureza e as necessidades —, mas a mosca? Ela não tem nacionalidade - todos os climas são a sua casa, todo o globo é a sua província, todas as criaturas que respiram são a sua presa, e para todas elas ela é um flagelo e um inferno.
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