Anton Tchekhov O Beijo
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)
(conclusão)
- Aguentáá as bestas! - ouvia-se a ordem sempre que o caminho descia.
Riabóvitch também gritava «aguentáá as bestas!» e temia que o grito lhe rasgasse os sonhos e o trouxesse à realidade...
Ao passarem ao lado de uma grande propriedade, Riabóvitch espreitou pelos gradis do parque. Viu uma comprida alameda, direita como uma régua, coberta de saibro amarelo e marginada de bétulas novinhas... Com a ânsia de um homem levado pelos devaneios, imaginou pequeninos pés femininos a pisarem o chão amarelo e, num repente, desenhou-se-lhe diante dos olhos aquela que o beijara, aquela que ontem, à mesa da ceia, só pudera fantasiar. A imagem colou-se a ele e já não o abandonou.
Pelo meio-dia, vindo da retaguarda, do lado do comboio, soou um grito:
- Atenção! Olhar à esquerda! Senhores oficiais!
Num carro puxado por uma parelha de cavalos brancos, passava o general da brigada. Parou junto da segunda bateria e gritou qualquer coisa que ninguém apanhou. Vários oficiais se aproximaram dele, Riabóvitch também.
- Então? Como vai isso? - saudou o general pestanejando com os olhos vermelhos. - Há doentes?
Depois das respostas, o general, pequeno e magro, mastigou com os lábios, ficou a pensar e disse, por fim, a um dos oficiais:
- O seu boleeiro do cavalo de varal, da terceira peça, tirou a joelheira e pendurou-a, o canalha, no armão dianteiro. Aplique-lhe um castigo.
Levantou os olhos para Riabóvitch e continuou:
- Os tirantes dos seus cavalos parecem-me compridos demais...
Depois de mais algumas observações aborrecidas, o habitual, o general, com um risinho, pôs os olhos em Lobitko.
- O tenente Lobitko está hoje com um ar muito triste -disse. - Tem saudades da Lopukhova, eh? Eh, meus senhores, o tenente Lobitko está com saudades da Lopukhova!
Lopukhova era uma senhora muito alta, assaz corpulenta, passante há muito dos quarenta. O general, que tinha um fraquinho pelas senhoras corpulentas, fossem de que idade fossem, suspeitava desse fraquinho também nos seus oficiais. Os oficiais sorriram respeitosamente. O general, satisfeito com pilhéria tão venenosa, desatou à gargalhada, deu uma palmada nas costas do cocheiro e fez a continência. O coche seguiu para diante...
«Tudo o que sonho agora e se me afigura tão impossível e extraterreno é, no fundo, bastante vulgar - pensava Riabóvitch, olhando as nuvens de poeira que corriam atrás do coche do general. - Sim, vulgaríssimo e vivido por todos... Este general, por exemplo, em tempos também amou, e agora está casado e tem filhos. O capitão Wachter também está casado e é amado, embora tenha uma nuca vermelhusca bem feia e não tenha praticamente cintura... O Salmánov é bruto e demasiado tártaro, mas já teve um romance que culminou em casamento... Eu sou igual a todos eles e hei-de passar pelo mesmo, mais cedo ou mais tarde...»
A ideia de ser um homem vulgar e ter uma vida vulgar alegrou-o e animou-o. Já a desenhava sem receios, a essa vida e às suas felicidades, não restringindo em nada o voo da imaginação...
Quando, pelo anoitecer, a brigada chegou ao destino e os oficiais já descansavam nos abarracamentos, Riabóvitch, Merzliakov e Lobitko sentavam-se em volta de uma arca e jantavam. Merzliakov comia sem pressas e, mastigando vagarosamente, lia a Véstnik Evrópi que equilibrava nos joelhos. Lobitko falava sem parar, sempre a encher o copo de cerveja, e Riabóvitch, com uma neblina na cabeça por um dia inteiro de devaneios, só se calava e bebia. Ao fim de três copos sentiu-se embriagado e mole, com uma vontade insuperável de partilhar com os companheiros a sensação em que vivia.
- Aconteceu-me uma coisa estranha em casa desses Rabbeck... - começou, tentando dar à voz um tom
indiferente e irónico. - Fui até à sala de bilhar...
Contou, em muito pormenor, a história do beijo e, um minuto passado, já se calava... Num minuto pôde contar tudo, e ficou terrivelmente espantado por ter precisado de tão pouco tempo. Parecia-lhe que podia falar daquele beijo até ao amanhecer. Ouvindo a história, Lobitko, que mentia muito e como tal não acreditava em ninguém, olhou para ele com desconfiança e soltou uma risadinha. Merzliakov ergueu as sobrancelhas e, sem desviar os olhos da VéstnikEvrópi, sentenciou:
- Só Deus sabe o que isso é!... Atirar-se ao pescoço de alguém sem lhe chamar primeiro pelo nome... Uma psicopata qualquer.
- Sim, deve ser psicopata... - concordou Riabóvitch.
- A mim aconteceu-me uma vez o raio de um caso semelhante... - disse Lobitko, fazendo olhos de susto. - Foi no ano passado, eu ia para Kovno... Compro bilhete de segunda classe... A carruagem está cheia como um ovo, é impossível dormir. Dou cinquenta copeques ao hospedeiro... Ele pega-me na bagagem e leva-me para um compartimento... Deito-me, cubro-me com um cobertor... Escuro como breu, estão a ver? Então, faço
um movimento com a mão e sinto um cotovelo... Abro os olhos e, imaginem só, é uma mulher! Olhos negros, lábios vermelhos como salmão, do bom, as narinas a arfarem com paixão, os seios ali, como uns...
- Desculpe lá - interrompeu-o com calma Merzliakov - quanto aos peitos, muito bem, eu compreendo, mas como podia ver-lhe os lábios se estava escuro?
Lobitko esquivou-se rindo desdenhosamente da falta de esperteza de Merzliakov. Riabóvitch sentiu-se melindrado. Afastou-se da arca, deitou-se e deu-se a palavra de honra de nunca mais entrar em confidências.
Anton Tchehkov O Beijo
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)
(continuação)
- Adoro a sua casa! - disse Riabóvitch ajeitando os óculos.
A generala sorriu, contou que a casa já fora do pai dela, depois quis saber dos paizinhos dele, se ainda eram vivos, há quanto tempo prestava serviço, por que estava tão magro... Elucidada, seguiu o seu caminho, e Riabóvitch ficou-se a sorrir, ainda mais carinhosamente depois desta conversa, a pensar que estava rodeado de excelentes pessoas...
Durante o jantar, Riabóvitch comia automaticamente tudo o que lhe serviam, bebia e, sem ouvir nada nem ninguém, tentava explicar a si mesmo a aventura ainda fresca... Uma aventura misteriosa e romanesca, mas, afinal, facilmente explicável. Pelos vistos, uma menina ou uma senhora marcara encontro com alguém no quarto escuro, estaria há muito tempo à espera e, de excitação nervosa, tomou Riabóvitch pelo seu herói, situação tanto mais provável quanto Riabóvitch, ao atravessar o quarto, parou pensativo, com ar de quem também estava à espera... Assim explicava Riabóvitch, para si, o beijo recebido.
«Quem será ela? - pensava, observando os rostos femininos. - Tem de ser jovem, porque as velhas não vão a encontros destes. E intelectual, sentia-se pelo roçagar do vestido, pelo cheiro, pela voz...»
Parou o olhar na menina lilás e gostou dela; tinha ombros e braços bonitos, um rosto inteligente, excelente voz. Riabóvitch, olhando-a, gostaria que fosse ela a do beijo, e nenhuma outra... Mas ela riu-se, e a risada saiu-lhe falsa, e franziu o nariz comprido que lhe pareceu, a ele, como de velha; transferiu então o olhar para a loira do vestido preto. Era mais nova, mais simples e mais sincera, tinha têmporas encantadoras e bebericava do cálice num jeito muito bonito. Agora, Riabóvitch gostava que fosse aquela. Mas não tardou a achar-lhe o rosto achatado e passou os olhos para a vizinha dela...
«É difícil adivinhar - devaneava. - Se for buscar à de lilás apenas os ombros e os braços, acrescentar as têmporas e a testa da loira, os olhos da que está à esquerda do Lobitko, então...»
Fez a adição mental e obteve a imagem da menina que o tinha beijado, a imagem desejada, mas que não encontrava ali naquela mesa...
Findo o jantar, os convidados, satisfeitos e um tanto ébrios, começaram a agradecer e a despedir-se. Os donos da casa mais uma vez se desculparam por não poderem alojá-los nessa noite.
- Meus senhores, estou muito, mas muito feliz por terem estado esta noite em minha casa! - dizia o general, desta vez com toda a sinceridade (na verdade, as pessoas costumam ser infinitamente mais sinceras e bondosas na despedida das visitas do que quando as recebem). - Muitíssimo feliz! E serão bem-vindos no caminho de volta! Estejam à vontade, nada de cerimónias! Para onde vão? E querem ir pelo caminho de cima? Não, não, atravessem o parque, vão pelo de baixo: é mais perto.
Os oficiais saíram para o parque. Depois das luzes ofuscantes e do barulho, o jardim pareceu-lhes muito silencioso escuro. Caminharam calados até ao portão. Iam meio embriagados, alegres, satisfeitos, mas o choque da escuridão e do silêncio tornou-os por um minuto melancólicos. A cada um deles terá passado pela mente, como a Riabóvitch, o mesmo pensamento: chegará também o tempo de eles, quais Rabbeck, terem uma casa grande, uma família, um parque? Poderão também eles, um dia, mesmo sem serem sinceros, amimar as pessoas, saciá-las, emborrachá-las, alegrá-las?
Mal passaram o portão desataram a falar todos ao mesmo tempo, a rir alto e sem motivo. Seguiam agora por uma vereda que descia para o rio e depois corria juntinho à água, contornando arbustos ribeirinhos, regos de água, salgueiros pendentes sobre o rio. Quase se não via o carreiro nem a margem, e na outra banda tudo mergulhava em trevas. Aqui e ali reflectiam-se estrelas na água escura; tremeluziam, alastravam - único sinal de que o rio ia veloz. Tudo era calma. Na outra margem gemiam, sonolentas, as galinholas; deste lado, num dos arbustos, sem medo da chusma de oficiais, um rouxinol trilava desenfreadamente. Os homens pararam ao pé do arbusto, abanaram-no, mas o rouxinol cantava perdidamente.
Anton Tchekhov O Beijo
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)
Anton Tchekhov nasceu em 1860, na cidade de Taganrog, no Sul da Rússia.
Morreu aos quarenta e quatro anos, no fim de catorze anos de tuberculose.
Formou-se em Medicina em Moscovo, sustentando ao mesmo tempo a família - pais e
cinco irmãos - com a publicação de numerosos contos humorísticos para jornais
e revistas. Logo em 1887 ganhou o Prémio Pushkhin da Academia Russa
e grande popularidade com a sua segunda antologia de contos.
Hoje mais conhecido como autor de peças de teatro tão marcantes como
"As Três Irmãs "ou o Tio Vânia", obras da última parte da sua vida breve,
Anton Tchekhov foi um dos contistas mais inovadores e influentes de sempre.
Algumas das suas reflexões sobre o conto, dispersas por cartas e comentários, antecipam de
várias décadas o que é hoje relativamente do domínio comum neste género literário.
"O beijo", publicado em 1887, é um dos seus primeiros contos.
Às oito da noite do dia vinte de Maio, as seis baterias da brigada de artilharia de reserva N., em marcha para o acampamento, fizeram alto para pernoitar na aldeia de Mestétchki. No auge da barafunda, enquanto uns oficiais se atarefavam em volta dos canhões e outros, na praça, num magote encostado à cerca da igreja, se entendiam com o quartel-mestre sobre o aboletamento, surgiu por trás da igreja um cavaleiro à civil montado num cavalo invulgar. Era um baio malhado, pequeno e raboto, de pescoço lindo, que não andava a direito, mas ladeava em passinhos curtos de dança como se estivessem a chicotear-lhe as pernas. Chegado ao pé dos oficiais, o cavaleiro ergueu o chapéu e disse:
- Sua Senhoria o tenente-general e proprietário von Rabbeck manda convidar os senhores oficiais para tomarem chá lá em casa, agora mesmo...
O cavalo fez uma vénia, dançou e recuou ladeando; o cavaleiro voltou a erguer o chapéu e, num instante, desapareceu mais o cavalo por trás da igreja.
- Raios o partam - resmungava-se entre os oficiais, que se puseram a caminho dos alojamentos. - Apetece é dormir, e vem este von Rabbeck com o chá dele! Já se sabe que rico chá vai ser!
Todos os oficiais das seis baterias recordavam nitidamente um caso do ano passado, durante as manobras, em que eles, juntamente com os oficiais de um regimento de cossacos, tinham sido convidados da mesma maneira para o chá, por um conde, também proprietário rural e militar na reserva; o conde fora hospitaleiro e simpático, serviu-lhes o jantar e bebidas e não os deixou ir para onde estavam aboletados, fê-los dormir em sua casa. Tudo bem, até óptimo, não fora o homem ter-se, infelizmente, alegrado de mais com a visita dos jovens. Toda a noite falou, até ao amanhecer contou à rapaziada os episódios do seu belo passado, passeou-os pelos aposentos, mostrou-lhes telas caras, gravuras antigas, armas raras, leu-lhes cartas que personalidades altamente colocadas lhe tinham endereçado, e os oficiais extenuados ouviam, olhavam e, na ânsia de uma cama, bocejavam à socapa nas mangas; quando, finalmente, o anfitrião os largou já não eram horas de dormir.
Não será igual, este Rabbeck? Seja ou não seja, nada a fazer. Os oficiais mudaram de roupa, aprontaram-se e foram em bando à procura do solar do Rabbeck. Na praça, perto da igreja, tinham-lhes dito que se podia chegar à propriedade por dois caminhos: o de baixo - descer, por trás da igreja, até ao rio, marginá-lo até ao parque e, do parque, qualquer alameda os levava ao destino; o de cima - a partir da igreja, seguir a direito pelo caminho que, uns quinhentos metros mais à frente, dava para os celeiros da propriedade. Escolheram o de cima.
Decorreu em 8 de Fevereiro, na Biblioteca Municipal Fernando Piteira Santos, na Amadora, um debate sobre «Anton Tchekhov – nos 151 anos do seu nascimento», iniciativa enquadrada na animação pretendida pelo Vereador da Cultura da Autarquia para aquele espaço, no qual de pode visitar uma pequena exposição alusiva ao autor russo.
Convidados pelo José Peixoto, Director do «Teatro dos Aloés», a tecer algumas palavras sobre o dramaturgo foram o Rui Mendes, o Mário Jacques, o Rui Pina Coelho e eu próprio.
Eis o texto da minha comunicação:
O José Peixoto pediu-me para ocupar o vosso tempo por 10 minutos, aceitando eu falar na minha condição de amador de teatro, que espero contribua para o que considero mais importante nestes debates: o diálogo com todos os presentes.
Começo por dizer o que, na opinião de alguns de vós, não passa de uma barbaridade: quando se fala do maior autor de teatro é costume dizer-se que é William Shakespeare, mas eu logo digo que, para mim, é Anton Tchekhov.
Claro que aceitar que há um autor que é o maior, já é controverso, dizer o que eu digo sê-lo-á ainda mais para muitos de vós.
Não nego que a forma como Shakespeare trata as paixões humanas não seja genial, mas eu sinto Tchekhov muito mais próximo de mim e, por isso, digo o que digo.
Lembro o primeiro contacto que com a sua obra tive, graças à publicação no Porto de «6 Peças em 1 Acto» e depois de «2 Peças em 1 Acto», publicação essa que o Mário Jacques também terá acompanhado; lembro a solução que esta publicação trouxe aos grupos de teatro de amadores, de cujas representações, muitas delas más, se salvavam as palavras do nosso autor e que, por isso, nunca foi tempo perdido o que gastei a assistir a muitas delas. Havia a ideia falsa de que era fácil representar qualquer destas curtas peças, mas sobre o quão difícil é interpretar qualquer das personagens destes textos que fale outro companheiro desta mesa, o Rui Mendes, de que recordo a sua interpretação de «Os Malefícios do Tabaco», com a qualidade a que sempre nos habituou.
Lembro também os grandes textos, tendo-me apaixonado pelo primeiro que li, «A Gaivota», em que aqueles amores desencontrados –A apaixonado por B, B apaixonada por C, e assim acontecendo o mesmo com outras das personagens, é de uma genialidade que nunca encontrei noutros autores. Sente-se a vida palpitar. Foi, lembremos, no ensaio desta peça, levada à cena pelo Teatro de Arte de Moscovo, que o nosso autor viria a conhecer a sua futura mulher, Olga Leonardovna Knipper, que desempenhava o papel de Arkadina. Anton Tchekhov tinha-a visto representar a czarina Irina, personagem da peça de Tolstoi, «O Czar Fedor Joanovitch», tendo-a considerado espantosa.
Depois de ver Olga Knipper no papel de Irina, escreveu numa sua carta a Suvorine: «Achei essa Irina esplêndida, uma voz, uma nobreza, uma sensibilidade – tudo tão admirável que produz como que um prurido no fundo da garganta… Ela está acima de todas as outras. Se continuasse em Moscovo, ter-me-ia apaixonado por essa Irina…», o que acabou por acontecer, a paixão nasceu nos dois e acabaram casados.
No teatro de Tchekhov não há heróis, o que muito contribuiu para a minha paixão pelo seu teatro e pelos seus contos, não menos geniais. Para além daquela ausência de heróis, o diálogo interior das suas personagens, diálogo esse que nos é dado por palavras que apenas são importantes não para a arte cénica mas para nos mostrar esse diálogo interior, onde também o silêncio que se segue às palavras, são parte fundamental deste teatro. Só este silêncio nos diz mais do que muitas palavras que outros autores escrevem. Caracterizo também este teatro pela sua aparente ausência de acção.
Por tudo isto, considero que a sua representação constitui um grande desafio para qualquer actor ou actriz, sem esquecer que todas as personagens são fundamentais, como fundamental é, no «Cerejal», a fala final do velho criado de 87 anos, Firs, quando verifica que já todos partiram e o deixaram fechado dentro de casa. Representar bem aquele silêncio que o teatro de Tchekhov exige é um desafio dos mais exigentes e, se conseguida essa representação, podemos dizer que estamos perante um grande actor ou actriz.
Escreveu Elsa Triolet, em «A Vida de Anton Tchekhov»: «As grandes peças de Tchekhov foram para o teatro russo um acontecimento tão considerável, que requerem um estudo especial. Elas transgrediam todas as regras da dramaturgia do seu tempo; introduziam na cena a vida quotidiana, as pessoas simples, a linguagem de todos os dias; obrigavam o encenador e os intérpretes a abandonar o que o teatro tinha de teatral, as suas convenções habituais… O diálogo de Tchekhov possui uma particularidade a que é uso chamar-se o seu “antetexto”, espécie de corrente submarina que passa, silenciosa, por detrás das palavras pronunciadas em voz alta. Esse antetexto, exprimindo os sentimentos e pensamentos e outras vezes simplesmente inábeis e arbitrárias, palavras como nos surgem na vida – esse antetexto dá às peças de Tchekhov a sua profundidade, uma terceira dimensão. Com a ajuda do actor, Tchekhov fá-lo entender ao público e é o antetexto que mantém os espectadores em suspenso, não obstante a ausência de «intriga», de acção. Teatro de atmosfera, se se quiser, teatro do inefável, o qual não é todavia um fim em si: Tchekhov mostra-nos os motivos dessa inefabilidade russa do fim dos anos 90. Nessa época, em que já qualquer coisa começava a «troar», Tchekhov apurava o ouvido, principiava a crer, a esperar e a manifestar nas suas peças a sua crença e a sua esperança.»
Nas personagens de Tchekhov, digo agora eu, encontro também o que ele viu na representação de Olga Knipper a que atrás me refiro: nobreza e sensibilidade, quer falemos dessa peça genial que é «Tio Vânia», esse drama da vida que continuava a passar, vida que tem forçosamente de continuar, como claramente demonstra a última cena com tio e sobrinha, ou de «A Gaivota», ou de «As Três Irmãs», ou de qualquer outro dos seus textos, incluindo as suas peças em um acto.
Um outro objectivo de Tchekhov foi bem conseguido: com o seu teatro e com os seus contos, somos convidados a olhar para bem dentro de nós e, ao fazê-lo, podemos verificar como vivemos mal, o que nos deve conduzir a construir uma outra vida que seja melhor.
Permitam-me um conselho que a idade já me consente: leiam e vejam o teatro de Tchekhov, leiam os seus contos, olhem para dentro de vós e sejam felizes!
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