FUTURO
O futuro na minha infância
estava inocente de derrotas e sofrimentos,
simplesmente porque a minha infância
não podia profetizar o futuro.
Sendo futuro embora,
a infância brinca com alegria isenta de manhas,
tomando-o por aliado, amigo, companheiro, irmão.
António Sales
Nota - Por um acidente de última hora, perdeu-se o poema que António Sales escreveu expressamente para esta fotografia do José Magalhães. Estamos há várias horas a tentar contactar este nosso colaborador, mas sem o conseguirmos. Optámos por usar este poema de António Sales que não está relacionado com a fotografia, mas nem por isso deixa de ser uma bom poema. Logo que nos seja possível, publicaremos esta foto e o poema que nela se inspira. Aos dois autores apresentamos os nossos pedidos de desculpa. Às 22:30 teremos um poema de Carlos Loures.
O manto tecido por palavras
aconchega o corpo na viagem do tempo,
embrulhando memórias em folhas de papel.
Gatafunha letras de formas milagrosas
cânticos de humildade
ou vaidade do ser?
Por isso me interrogo no acto de escrever.
Será voo de vertigem de verdades profanas
ou tempestade d’alma
em vésperas de morrer?
António Sales Serenidade
(Adão Cruz)
No coração do tempo
encontro inexplicável quietude
perante uma obra de arte
escutando uma sinfonia
contemplando uma paisagem
que me beija com ternura.
Fico estático.
Um sol interior aquece-me a alma,
um sopro de solidão, sem tristeza,
envolve-me de prazer
uma voz serena
conversa em surdina comigo.
Deixo-me ficar quieto no tempo
como se o tempo fosse
a medida da eternidade
e não a relatividade da passagem.
Algueirão, 02.06.2011
Sobre o concerto que apresentamos a seguir, cuja interpretação privilegia, diz António Victorino d'Almeida no seu livro Músicas das Minha Vida "Parece-me porventura ser o mais belo Concerto de Violino de Toda a História da Música e estou mesmo em crer que Beethoven o assinaria de muito bom grado - ou talvez até o trocasse pelo seu, quem sabe?..."
O caráter hibernou! Deram-lhe uma dose cavalar de antidepressivos e puseram-no a dormir. Está reduzido a pó de caca pelo que as elementares noções de dignidade transformaram-se numa massa untuosa, venal e degradada.
O mundo está dando várias cambalhotas globalizantes em que se mistura na mesma panela o liberalismo económico, o comércio livre e a não menos livre circulação de capitais. O dinheiro, o poder económico, a submissão política, a ambição, as fortunas provocatórias, desumanizam a sociedade. Nesta arena estimula-se a intolerância, o egoísmo, o cinismo, o culto da ganância do poder que pode nem ser, necessariamente, o do dinheiro.
Perante isto interrogo-me: como poderá vir a ser a raça humana no século XXI?
A partir da matriz atual nada se anuncia de bom. Politicamente as nações mais avançadas estão a ser lideradas por indivíduos medíocres e a economia global está fazendo deles seus reféns. Se tivermos uma visão desapaixonada verificamos que, na prática, a maioria dos países estão insolventes. Não é apenas a Irlanda, Grécia e Portugal, mas também a Itália, a Espanha, a Bélgica, os Estados Unidos da América, numa dança de possível junção de mais uns quantos. Quer dizer: vivemos num universo global falido.
Com tais ventos as pessoas encontram-se mais afastadas da reflexão crítica, do pensamento filosófico (no sentido do conhecimento), dos ensinamentos culturais que fortaleçam a massa crítica tornando-as conscientes da realidade e das malfeitorias e conferindo um elevado grau de exigência coisa que nenhum político ou patrão do dinheiro deseja. O saber só trás atritos!
O retrato atual da sociedade não contempla a camaradagem, a verdade, a solidariedade, o sacrifício, a generosidade, a amizade desinteresseira. Mergulha tudo num caldeirão de interesses, acotovelando-se, atropelando-se, traindo quem for preciso para atingir rapidamente os ambiciosos objetivos. É feio! É indigno! Paciência, é preciso ser rico aos 30 anos.
Lamento, mas não acredito que isto esteja melhor lá para 2050. Bem sei que depende do ponto em que nos colocarmos. A velocidade é característica comum à rapidez executiva das ações e ao processo abrasivo da vida. Homens e mulheres serão submetidos a um grau de exigência maior e o convívio pessoal perderá terreno perante o convívio de círculos de amigos via Internet (facebooks, twitters, etc.). O prazer de criar e desfrutar realidades virtuais e representações tridimensionais fornecerá um novo tipo de contacto cibernético com os povos, cidades, pessoas e vida sexual. Segundo uma multiplicidade de formas e atos ao gosto de cada um, epicuristas informáticos viverão na dependência de fabulosos aparelhos gestores de progresso e a rendição à inovação técnica será veloz a fim de alimentar incansavelmente o ego
Neste tsunami tecnológico e opulentamente vaidoso a primazia do espírito, do caráter e dos sentimentos deixarão de fazer sentido e a natureza humana será agredida de uma forma cada vez mais obscena.
O que será enfim perene?
A cultura e a arte sobreviverão como restos de um continente perdido porque são a expressão libertadora do mais secreto intimismo. Estas serão manifestações de eternidade visto que têm perdurado através dos séculos como refúgio espiritual de todas as paixões e tragédias humanas. Por tudo quanto de inovador passa nada substituirá a arte porque só ela nos concede a verdadeira noção de grandeza da vida e do seu mistério.
O “Sentimento trágico da vida” é um dos importantes título do grande pensador espanhol Miguel de Unamuno que morreu em 1936 mas cujo pensamento atravessou todo o século XX e ainda hoje perdura. Foi um homem de poderosa personalidade e rebeldia a quem a Espanha deve não apenas a grandeza cultural mas um grande amor pelo país que o fazia sofrer.
Para Unamuno a razão não significava necessariamente o esclarecimento mas antes a reflexão sobre as múltiplas duvidas que as fronteiras entre o mundo físico e o mundo místico estabelecem, a substância da matéria contraposta à dolorosa dúvida da imortalidade que o ser humano persegue para além de si próprio criando mitos ou procurando formas de expressão que prolonguem o seu nome como se isso fosse a sua existência, conhecedores que somos no nosso tempo diminuto da relatividade de todas as coisas, sobretudo de nós mesmos.
Se procurarmos bem raros se perpetuam no sentido do “eterno” conhecimento terreno, se eternos considerarmos dois ou três milénios, mesmo na herança daqueles que através da arte oferecem a sua expressão mística interior, capaz de criar emoções e despertar sentimentos que perduram por séculos para além das sua vidas, mesmo esses prolongaram-se na sua arte ainda em termos materiais que os suportam e lhe concedem a imortalidade terrena.
Não obstante, a dúvida da imortalidade não se encontra naquilo que de material se deixa na terra após a morte mas no transcendental que ultrapassa a decomposição do corpo a começar por fixar-se no plano da perenidade da alma. Mesmo que a alma, na sua perspectiva abstrata, se prolongue para além do indivíduo ela perde os contornos materiais que a tornavam “visível” conferindo-lhe um sentido super universal porque se o corpo não existe sem alma esta, do meu ponto de vista, não existe sem aquele (não necessariamente o mesmo).
A humana capacidade de amar, sofrer, sentir, interpretar, viver para o prazer ou para o espírito resulta dessa unidade aparentemente antagónica entre a razão da matéria e a idealização do espírito. Não há apenas uma parte mesmo quando o contrário parece evidente pois perdida uma perdida está a outra. Em termos humanos a matéria sem alma não se concebe e a alma sem matéria é uma noção abstracta, um dogma que contraria a razão.
Talvez por isso a teoria da reincarnação venha ganhando força e adeptos porque somos incapazes de aceitar que a vida humana seja exclusivamente material e, com a morte, definitivamente finita. Mesmo acreditando que após a morte a alma se liberta do corpo e sobe ao espaço de uma forma indefinida porque não vê, não ouve, não sente, subsiste a dúvida de que sendo na terra corpo e alma uma unidade, a morte de um não determinaráo eterno desaparecimento do outro.
Chegados aqui a razão conduz ao desenlace trágico que reduz o ser humano à relatividade física da sua existência e á angustiante interrogação daquilo que estará para além da sua existência se algo estará, efectivamente. No fundo, o que a razão resiste em aceitar é o nosso desaparecimento definitivo porque se for assim somos nada e a passagem é curta. E se o for o significado moral e humanista da existência sai desvalorizado e adulterado nas nossas noções eternas de esperança e de futuro. Essa será a angústia destrutiva que a fé, qualquer fé, procura equilibrar.
Unamuno disse “já não empreendo nada que possa durar”, talvez porque durar é sempre relativo pois nada pode durar eternamente. Para conseguir ultrapassar o desespero do nada tivemos de criar formas abstractas que nos transportam a um todo universal, a uma mundividência para além do concreto e representada pelo dogma da fé que suporta a nossa vontade de infinitude.
Este tema é também ele infinito para o bem de todos. Algumas vezes, antes de adormecer conjeturo sobre ele sem que chegue, obviamente, a qualquer conclusão. Apesar das minhas dúvidas, sempre que o abordo aproximo-me um pouco mais das interrogações da matéria que, esta sim, desaparecerá comigo para sempre.
Todos os dias deparamos com situações que conferem às relações sociais um carácter materializado por interesses desprovidos do mínimo de pudor e de carácter. Desde a criminalidade quotidiana em que bandidos vão para casa apesar de vítimas irem para o hospital, aos crimes de colarinho branco em que políticos, empresários, gente bem sucedida, chafurdam em negócios nas off-shores metendo milhões de euros ao bolso com ar tranquilo; os voluntários que ajudam nos mais diversos trabalhos sem pedir nada em troca até que alguém lhes dê um pontapé no cu. A sociedade actual elevou à mais alta potência a mentira, a ingratidão e a hipocrisia, desenvolvendo uma substancial quantidade de anti-corpos cuja missão é anular indivíduos tornando-os seres passivos de umbigo farto.
O sujeito idealista, generoso, pronto a sacrificar prazeres e afirmar a sua personalidade contra hierarquias estabelecidas está reduzido a pó de caca (mesmo dentro dos partidos políticos) se não respeitar normas de elogio e concordância que estabelecem o coro da glória venal. Discordar é blasfémia, recorrer à inteligência do eu (sem maiúscula) é ousadia, mostrar lucidez é vaidade, possuir capacidade de realização acima dos chefes é descaramento. A montanha é mais fácil de subir montado nas costas dos outros do que no esforço de si próprio.
Esta forma pouco recomendável de fazer carreira abençoando os amigos, acolhendo os compadres e pagando os favores leva à “moralização” de um Estado leproso que tudo contamina em nome de uma economia global assente no magnífico milagre do liberalismo das leis do mercado livre. O dinheiro, o poder económico, a do poder político, o cinismo, a majestosa importância da riqueza são factores provocatórios e desumanizantes da sociedade. Tal estado de coisas desperta a intolerância, o egoísmo, o culto individualista no pior sentido do termo.
Orgulho e arrogância colocam as suas máscaras. Escondem-se ambições e hegemonias antigas sob novas aparências. O réptil continua réptil, o imbecil continua imbecil, o oportunista continua oportunista. A mesquinhez humana – mais antiga do que a prostituição – conquista o estatuto da razão que a justifica na malha dos interesses instalados.
Um conto inédito de António Sales
(já publicado no Estrolabio em Julho do ano passado)
Jeremias Palonso da Silva é pobre, quer dizer, está socialmente situado na escala hierárquica dos pobres. É pobre mas não miserável, ou seja não se encontra abaixo da linha insustentável da pobreza. Todavia, esta situação não foi determinada por azares da vida ou despedimento compulsivo o que também seria um azar.
Jeremias Palonso da Silva é pobre por opção. Esquisito, não é! Sendo economista era natural que “beneficiasse” das condições normais de qualquer cidadão pronto a ganhar a vida para casar, ter filhos, alimentar a família, pagar a escola, os livros, a casa, os electrodomésticos, a mobília, plasmas, computadores wireless, automóvel, férias, impostos, coisas que obrigam qualquer sujeito a ter 2 ou 3 empregos, fazer horas extraordinárias, comer mal, não acompanhar o crescimento das crianças, criar úlceras duodenais, esquecer-se da mulher e apanhar um par de cornos, pagar ao estado um balúrdio de IRS, ter uma depressão e cair redondo no sofá do psiquiatra antes de lhe dar o AVC da praxe.
Por acaso ou deliberadamente (foi coisa que não consegui tirar a limpo), Jeremias Palonso escapou a esta malha porque é solteiro, não tem filhos o que representa economia superior a um totoloto, como se imagina. Nestas condições só obedece às suas próprias exigências. Faz bem o que sabe, impecável nas suas tarefas e nem ganha mal para as exigências da sua vida. Ao entardecer de um dia molhado e ventoso o chefe chamou-o para lhe anunciar, com um sorriso, que iria ser promovido. Aumento e mordomias de automóvel novo, telemóvel última geração, 500 euros mensais para o cartão de credito e ajudas de custo em deslocações dentro ou fora do país. Fora do país Dr. Bento? Isso mesmo meu caro, um director das relações exteriores não era certamente para ali ficar como um escriturário. Passaria aos quadros superiores da empresa.
António Sales
O manto tecido por palavras
aconchega o corpo na viagem do tempo,
embrulhando memórias em folhas de papel.
Gatafunha letras de formas milagrosas
cânticos de humildade
ou vaidade do ser?
Por isso me interrogo no acto de escrever.
Será voo de vertigem de verdades profanas
ou tempestade d’alma
em vésperas de morrer?
Há um silêncio de sossego sentado nas mesas brancas que adornam o respirar da noite no planalto imenso e húmido a libertar o ameno aroma da natureza. Mesas brancas que embelezam o luar; Mesas, muitas mesas, enfeitam o luar, imensas mesas sólidas, firmes, limpas e imaculadas. Mesas redondas, quadradas, retangulares, redondas a representarem a confluência das forças telúricas e o conhecimento instintivo, quadradas a significarem a passagem deste à consciência e à iniciação intelectual, retangulares configurando a tábua mística da revelação.
O arco da lua enquadra a infância com o carinho das vozes pequeninas, cantantes, a soletrarem o pensamento solto pelo ritual dos gestos e vai, alegremente, conquistando a luz da consciência. Não é a idade de ouro dos alquimistas mas a da origem transportando consigo o segredo de vidas ancestrais guardado na estrela que atravessa o cosmos para aqui repousar com o seu brilho diamantino a iluminar os caminhos da existência. Na poeira levantada pelas charruas que rasgam sulcos na alma das gentes perdem-se recordações da beleza e do amor que foram o berço da serenidade inicial. Deixa-se para trás o bosque maravilhoso das brincadeiras participadas pelos anjos protetores de modo a navegarmos pelo rio da aventura de cujas águas surgirá a deusa mensageira, senhora do obscuro domínio dos sentidos, para anunciar o fim da divina harmonia e o começo da peregrinação cármica.
Sentado à única mesa onde cintila a chama vermelha de uma vela como se fora luz de sangue ou desejo de pecado a ferir a alma de incertezas, encontro-me só, imóvel, trespassado por indolência intemporal suspensa na rama da inquietação. Guardei-me de branco (camisa, sapatos e fato), cor imaculada e serena, para este encontro dominado pela imponderabilidade de um astronauta a rascunhar hipérboles na cápsula do amor onde colho os frutos que conferem razão ao sonho e regam utopias entre beijos sublimes. Em planura de neve aguardo o corpo amado sem a vileza dos pensamentos que desconcertam a mente com o viscoso arrebatamento do prazer.
Distante e difusa, pequena e etérea, recorta-se no espaço a silhueta feminina transportando consigo a lira de Orpheu cujos acordes têm o privilégio de provocar o encantamento dos astros. Aguardo a proximidade do seu corpo onírico incitando o poema que rompe o percurso iniciático da juventude na descoberta dos segredos do mundo. Há um tempo infinito espero esta mulher imaginada pelos poderes da mente e submersa por ocultas quanto inexplicáveis sensações anunciadas quando me encontrei pela primeira vez com a palavra amor e a procurei desvendar letra após letra até chegar a este lugar isolado dos excrementos do mundo.
É uma infinita linha de silêncio
onde nos encontramos sem falar.
Tão fina que repousa sobre o tempo
o resto da vida a partilhar.
Névoa de memórias ressequidas
na longínqua quietude do olhar.
Crepúsculo azul de frustrações escondidas,
agonia dessa infinita linha a expirar.
António Sales
Rasguei o corpo
nas silvas do destino,
na rota do meu norte alimentei
fantasmas depressivos.
Embrulhei-me em tormentos
de dor demencial
sepultados sob doentias mágoas
da hora original
Rezei aos deuses
a concessão de fé na alegria
antes de cruzar os caminhos da morte.
Respondeu-me o silêncio
opaco e indiferente.
Protestei agastado:
Eu quero a alegria
tenho direito a ela.
sou gente como os outros
ando faminto dela.
Se queres o esplendor da absolvição
fecunda-a no teu espírito
semeia-a no teu ser.
Arranca ervas daninhas da submissão
e abre espaços de cor
no exílio cinzento do teu coração.
Mistérios
António Sales
Do céu cai chuva
nas vidraças
a neve imaculada
o relâmpado de luz petrificada
o vento que devasta
o sol que ilumina.
Às vezes caiem estrelas
outras são cometas.
O lixo dos satélites
as bombas do deus Marte
de morte arrasadora e fome farta.
Só não caem flores
leves, perfumadas.
Nuvens pequeninas
fofas, delicadas.
Podiam cair sons
de notas musicais,
os anjos a tocarem peças celestiais.
Nesta pureza mística
das almas condenadas
há no brilho comovido dos seus olhos
um devaneio onírico a soletrar.
Pureza
Hoje caiem flores do céu.
Flutuam
brancas como a paz
e depositam na terra
a pureza mística
do seu aroma.
Ofício de viver
António Sales
A peregrinação da vida
é palio de constante penitência,
paixão e ímpio sacrifício
a transitar no tempo sem lugar.
Salmo de inconfessadas solidões.
promessa de pecados dolorosos,
rosário de penas húmidas choradas.
Céu de pedra carregado
e esperanças sepultadas.
A Rendição do Tempo
António Sales
No poluído rio do pensamento,
espaço sem estrelas
seco e desgrenhado,
mergulham urubus
procurando despojos de ilusões.
longos, dormentes, os dias existem
queimados pelo tédio de existirem
no lodo dos sentidos.
Silêncio apavorado só de o ser,
vítima desta espera de abandono,
tempo de horas calcinadas
a cada instante do futuro sepultadas.
(conclusão)
No dia 29 de Outubro de 1965 regressaste à pátria. Manhã radiante de sol aquela em que, de um avião da Varig, descarregaram a urna com os teus restos mortais no Aeroporto da Portela. Definitivamente separavas-te do Brasil esse país sobre o qual, nas costas de um documento de caixa da casa Magazine Mesbla, do Rio de Janeiro, deixaste este apontamento a lápis: «Quanto a escrúpulos não foram com êles que progrediram as cidades do sul da Bahia, que se rasgaram as estradas, plantaram-se as fazendas, criou-se o comércio, construiu-se o porto, elevaram-se os edifícios, fundaram-se jornais, exportou-se cacau para o mundo inteiro. Foi com tiros e tocaias, com falsas escrituras e medições inventadas, com mortes e crimes, com jagunços e aventureiros, com prostitutas e jogadores. Com sangue e muita coragem» (BNL – espólio de AB – cota 12/883), palavras que, embora não pareça, significam amor por aquela nação.
Seja, enfim, como escreveste! Mas doze anos e dois meses após a tua partida aqui chegam os teus ossos reduzidos ao nada das tábuas de um caixão. Começa, então, o derradeiro acto do teu drama oficialmente encenado pelos representantes (ali presentes) do ministério dos Negócios Estrangeiros, da Educação Nacional, do Instituto de Alta Cultura, alguns familiares e amigos, que acidentalmente tomaram conhecimento, e dois ou três jornalistas. Diz o Diário Popular, da tarde desse dia, que depois das formalidades alfandegárias o féretro seguiria para a Igreja da Encarnação, etapa fúnebre inexistente pois ficou na alfândega entre embrulhos, malas e utensílios à espera de despacho para um cemitério, conforme noticiava o Diário de Notícias do dia 30: «Os despojos de António Botto foram sepultados no Cemitério dos Prazeres [onde repousam] ao lado de Fernando Pessoa, de João Villaret e de outros amigos de toda a vida», para sempre supunha o repórter na sua boa fé. Afinal não tinha havido igreja nem sequer enterro pois à tarde, na primeira página, o Diário Popular tratava de informar os leitores que o funeral continuava «por não se fazer» tendo apenas saído da alfândega do aeroporto «para ficar à guarda de um cemitério lisboeta». Tão depressa se entendessem as diversas entidades seriam organizadas cerimónias fúnebres com «o expressivo nacional que o grande lírico do amor indiscutivelmente merece». Sermão? Missa cantada? Bandeira nacional? Discursos e condecorações? Uma incógnita para um programa que começava mal.
Demoraram um ano e treze dias a organizar essas cerimónias. Não rias, por favor, peço-te! De certo modo terás razão, pois significava que regressavas em força e mais uma vez, como aliás era de tua natureza, disposto a provocar o escândalo. Bom, o desrespeito pela tua memória a todos indignava. Sobre a tua pessoa desapareceram as notícias e das ossadas nem rasto. Há quem diga que te atiraram para uma arrecadação do cemitério, outros - por decoro - concedem-te o direito a um gavetão anónimo e alguns dão como referência vaga uma “ausência” em parte incerta. Com o tempo a história tornou-se absurda e começou a dar origem a pressões que colocavam a ridículo as três representações oficiais (Ó Botto, até depois de morto eras incómodo!). Mas não de todo foste esquecido. Amigos teus como o Aníbal Contreiras, Mário Azenha e José Galhardo, presidente da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais, não deram tréguas às autoridades forçando-as a uma decisão definitiva.
Na verdade eles não sabiam o que fazer contigo. Não tinham vagas onde prantar os teus ossos. Molestados com a situação chamaram a Câmara para os ajudar e o município decidiu conferir-te, não uma medalha pelos bons serviços poéticos prestados à cidade, mas um gavetão escondido no cemitério do Alto de S. João. Escrevia o Diário Popular sobre esta tua aventura póstuma: «Perseguido na vida - uma vida de malfadado destino - António Botto sofre ainda, depois de morto, esperando - como que esquecido - mais de um ano por uma derradeira morada...»(Diário Popular, Lisboa 11.11.1966).
No dia de S. Martinho de 1966 - tu que nunca foste um pândego dos copos - lá recolheste à morada que te deram com a modéstia de quem havia escrito «Da vida não quero nada / De tudo me hei-de esquecer...». Começou a cerimónia no grande portão oriental numa manhã de «um sol ático brilhando sobre as colinas de Lisboa», de acordo com um descritivo jornalístico e como, certamente, terias desejado. A tua urna seguiu acompanhada pelas tais autoridades em ar solene, escritores, intelectuais, gente do teatro, familiares e um reduzido número de admiradores e amigos, alguns dos quais bateram-se incansavelmente por um funeral digno. Depositaram-te no gavetão 1952 da rua 17, escondido por detrás de altos jazigos, com a singeleza da inscrição «À memória do poeta António Thomaz Boto», com um só tê, respeitando o que havias pedido numa carta endereçada do Brasil a George Lucas, a propósito de mais uma edição de Canções: «Não ponham Boto com dois tês, já me pesam» ( Maria da Conceição Azevedo dos Santos Fernandes – Dissertação de mestrado em Literaturas Comparadas Portuguesa e Francesa, séculos XIX e XX – António Botto, Vida e Obra Lisboa 1994). Uma prova de humildade que jamais havias tido.
O teu drama encerrava-se, enfim, na singularidade do título de O Século Ilustrado: «Um poeta arquivado numa gaveta» quando, dizia, gostarias de ter ficado no talhão dos artistas no Cemitério dos Prazeres. Esta não era efectivamente a terra prometida mas a de um destino amargo que nem a morte te soube dar com a dignidade merecida. «Quero morrer em beleza», pediste numa das tuas canções, mas não foi possível António, desculpa lá.
Fim
_____________________
Nota dos coordenadores: O texto de "António Botto no Brasil", foi expressamente preparado para o nosso blogue. Estrolabio agradece a António Augusto Sales, felicita-o pela criação de uma obra de excelência e pela sua generosidade de no-la ceder.
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A Julieta do Beco das Cruzes
Aos arrancos, lá vai ela
Despedir-se do amante
Nesta manhã de Janeiro!
Coitada, morre por ele!
- Foi o seu primeiro amor
E será o derradeiro
Todas as tardes, risonha,
Ela falava com ele
Num beco escuro de Alfama.
Era ali que ela morava;
- Até que uma noite foram
Pernoitar na mesma cama.
Estou a vê-la cingida
Ao corpo delgado e quente
Desse esbelto carpinteiro!
E vejo-a, dias depois,
Nervosa, afastar-se dele
Chamando-lhe: trapaceiro.
Mais tarde ia procurá-lo
À oficina e chorosa
Seguia-o sem que ele a visse;
E naquela perdição
Adoeceu porque um dia
Com outra o viu – mas, sorriu-se;
Soube-lhe bem ser «mulher»
Do homem que apenas teve
Um desejo passageiro!
Mas, agora – cruel preço!
Dos olhos fez duas fontes
E do amor um cativeiro
Adoeceu gravemente,
Nunca mais saíu à rua,
Sempre a tossir e a sofrer…
E era a mãe que, mendigando,
De porta em porta arranjava
Qualquer coisa pra viver.
Hoje, constou-lhe que a Guerra
O chamara para as linhas
Do combate – e combalida,
Vai ao embarque levar-lhe
No silêncio de um olhar
Os restos da sua vida.
In “Canções” – “Baionetas da Morte” – livro sétimo – ed. Círculo de Leitores, Lx. 1978
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