Já aqui falámos de Edmundo Bettencourt que, segundo José Afonso, foi «o maior cantor de fado de Coimbra de todos os tempos». Há outros três nomes a referir - Augusto Hilário, António Menando e Artur Paredes. Augusto Hilário (1864-1896)
Segundo estudiosos da canção coimbrã, terá sido Hilário quem lançou as bases para o tão característico estilo interpretativo que viria depois a ser seguido por Menano e Bettencourt e que ainda hoje é usado pelos actuais cantores. Uma forma de escandir os versos, empregando o português-padrão que é orgulho da cidade.
Estudante de Medicina. frequentava os locais de boémia, acompanhava-se á guitarra, escrevia as letras para os seus fados, embora tenha musicado poetas do seu tempo, tais como Guerra Junqueiro, António Nobre, João de Deus ou Teixeira de Pascoaes.
Teria uma voz que seria de barítono ou de tenor. Existem as duas versões e não há como provar uma ou outra, pois embora se pense que gravou um cilindro Edison com a sua voz em 1894, tal registo não chegou aos nossos dias. Essa imprecisão adensou o mito.
A sua fama chegou a Lisboa. Referindo uma uma homenagem ao poeta João de Deus, no Teatro D. Maria de Lisboa, em 1895, na qual Hilário cantou o Fado Serenata do Hylário, diz a notícia de O Primeiro de Janeiro: " O Hylário, o querido boémio das serenatas alegres e doidejantes, improvisou durante o sarau esta quadra (...) e seguidamente ajoelhou e atirou (...) a sua mágica guitarra que ainda vibrava (...). Os espectadores pediram mais trovas".
Ouçamos o fado Hilário cantado por Alberto Ribeiro:
António Menano(1895-1969)
António Menano foi outro mítico cantor do fado de Coimbra, considerado por muitos um "segundo Hilário". Vinte anos após a morte do "grande Hilário", a canção coimbrã atravessava um período de relativo apagamento. Com Menano inaugurou-se uma verdadeira década de ouro.
Estrou-se em 1915, num espectáculo em Aveiro. O êxito foi tão grande que foi de imediato convidado para solista e ensaiador do Orfeão Académico. Em 1923 o Orfeão e Menano fizeram uma digressão por Espanha e em 1924 por França. Em Paris, Menano foi acompanhado por Artur Paredes. Em 1929, actuou perante a família real espanhola durante a Exposição Ibero-Americana de Sevilha. Há gravações suas feitas em Lisboa, Paris e Berlim. Vamos ouvir uma dessas gravações históricas - "Menina e Moça".
Artur Paredes (1899-1980)
Um dos pilares da renovação da canção coimbrã, era um futrica - um empregado bancário!Constituiu um grupo de Fados de Coimbra : Roseiro Boavida, Aires Abreu, Edmundo Bettencourt e o próprio Artur Paredes. No ano de 1925 foi com a Tuna Académica da Universidade de Coimbra numa triunfal digressão pelo Brasil. Natural de Coimbra, Artur Paredes era filho do guitarrista Gonçalo Paredes e foi um elemento preponderante na chamada "década de ouro" do fado coimbrão, pois a uma evolução na qualidade dos temas e na colocação das vozes, correspondeu uma transformação na guitarra de Coimbra. E Artur Paredes não transformou - revolucionou ao promover a guitarra de Coimbra e pondo de parte a chamada Guitarra Toeira de Coimbra.
Ensinou o muito que sabia a seu filho e Carlos Paredes prolongou a magia da giuitarra de Coimbra criada por seu pai. Podemos ouvir "Variações de Artur Paredes" , por Carlos Paredes, em 1992, num espectáculo no Teatro São Luiz em Lisboa.
O chamado fado de Coimbra não parece ter uma genealogia comum com o de Lisboa. De comum, apenas a designação genérica de fado. Enquanto o fado de Lisboa, com origens mergulhadas em brumosas explicações, o coimbrão é um fenómeno mais recente, surgido na segunda metade do século XIX, em pleno Romantismo literário, movimento que indelevelmente marca os versos que veicula. Muito ligado à "Velha Academia", é cantado apenas por homens (as mulheres não frequentavam a Universidade), envergando o tradicional traje académico. É acompanhado por uma guitarra portuguesa e por uma guitarra clássica, também chamada “viola.
Os cantores ditos “clássicos”, históricos foram, entre outros, Augusto Hilário, António Menano e Edmundo Bettencourt, ao qual dedicámos um artigo. Em meados deo século XX, o fado de Coimbra, tradicional e nostálgico, começou a transportar letras contestatárias relativamente ao regime ditatorial. José Afonso e Adriano Correia de Oliveira foram dois desses cantores de intervenção. Poetas ligados aos movimentos neo-realistas foram musicados e interpretados no inconfundível estilo coimbrão de fados e baladas.
Exemplo dessa renovação do fado e da balada é esta "Trova do Vento que Passa", poema de Manuel Alegre (APraça da Canção) com música composta por Adriano Correia de Oliveira, e aqui cantada por Magina Pedro num espectáculo da Casa das Artes em vila Nova de Famalicão:
Conheci Edmundo de Bettencourt numa tertúlia, uma das muitas que existiam em Lisboa. Reunia esta nos fins de tarde no café Restauração da Rua 1º de Dezembro, no centro de Lisboa. Paravam por ali, além do jurista, poeta e cantor madeirense, o Alfredo Margarido (1928-2010), que viria a ser professor da Sorbonne e que faleceu recentemente, o Manuel de Castro (1934-1971), um grande poeta quase desconhecido, às vezes, outro madeirense célebre, o Herberto Hélder. Mais raramente o Renato Ribeiro, com a sua mulher a Fernanda Barreira. Ocasionalmente, algum «imigrante» vindo do Gelo – era só atravessar a rua e andar meia dúzia de metros.
Edmundo Bettencourt, para além de notável poeta e ímpar cantor do fado de Coimbra, era uma pessoa afável, muito cordial, com memórias muito interessantes do seu tempo de estudante - foi ele que me chamou a atenção para os "históricos" do fado coimbrão - o Augusto Hilário e o António Menano, do mago da guitarra , o Artur Paredes. Falou-me do Luís Goes e de um nome que, na altura, nada me disse - José Afonso - que, na sua opinião, viiria a ser o cantor. Dada a sua modéstia, "esqueceu-se" de referir um histórico incontornável que se chamava Edmundo de Bettencourt. Foi quando andava a organizar o terceiro número da revista «Pirâmide». Os dois primeiros números tinham reunido gente do «Gelo». Este terceiro, juntou colaboração de frequentadores da tertúlia do Restauração (embora tivesse também um poema inédito do argentino Rodolfo Alonso. E outro, igualmente escrito para a revista, do castelhano Ángel Crespo (1926-1995) que, anos depois, além de consagrado poeta, se converteria num dos principais pessoanos de língua castelhana. Edmundo Bettencourt colaborou com seis poemas, então inéditos, dos quais publico aqui um datado de 1954: «O Segredo e o Mistério». Os poemas eram acompanhados por um retrato do poeta, desenho inédito de Mário de Oliveira, que podemos ver acima.
Eis um desses poemas:
O Segredo e o Mistério
Mistérios a pouco e pouco vão morrendo e extenuados de vigília os anjos são afinal a sussurrantes sibilinas vozes que desvendam adivinham segredos atrás de sentinelas cuja ferocidade é uma ironia de ternura…
Na palidez da luz cercando uma velha cabeça a quem um sono de embrião já tolda os olhos sorriem enigmáticos os sonhos.
Edmundo de Bettencourt nasceu em 1899 no Funchal. Quando estudante de Direito em Coimbra, fez parte da chamada «Geração de Oiro», onde pontificava o grande António Menano e o não menos virtuoso Artur Paredes, pai de Carlos Paredes.
José Afonso, o tal rapaz que iria «dar muito que falar», no dizer de Edmundo de Bettencourt, pagou-lhe a profecia considerando Bettencourt o maior cantor de fado de Coimbra de todos os tempos. As suas canções eram acompanhadas pela guitarra de Paredes. Além do fado coimbrão, cantou também canções do folclore da Beira-Baixa, como «Senhora do Almortão».
Como escritor, fez parte do grupo da revista «Presença». Em 1999, quando passava o centenário do seu nascimento, saiu uma antologia – «Poemas de Edmundo de Bettencourt», prefaciada e organizada por Herberto Hélder.
Ouçamos agora uma das mais conhecidas composições de Edmundo de Bettencourt, Saudades de Coimbra. Canta José Afonso: