Terça-feira, 31 de Maio de 2011
João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799 - 1854). O presente poema integrou Folhas Caídas, colectânea lírica que o poeta fez publicar em 1853.
Pescador da barca bela,
Onde vás pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela ...
Mas cautela,
Ó pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador.
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!
Sábado, 19 de Fevereiro de 2011
Sílvio Castro
Almeida Garrett é, quase certamente, o primeiro romântico na literatura portuguesa que incorpora a uma inicial predisposição individualista determinada consciência política. Daí a sua particular importância no quadro do Romantismo social português, para o qual traz marcantes contribuições.
Escritor de evidente formação árcade e iluminista, ele assiste à passagem do tempo setecentista, marcado particularmente pela política cultural do regime pombalino, àquele oitocentista, começado pelas crises institucionais que principiam com o reinado de D. Maria I, se alarga com a invasão napoleônica, o fim da mesma, a revolução de 1820 e a fase do “vintismo”, até chegar às lutas fraticidas culminadas com a vitória de D. Pedro IV e correspondente restauração de uma certa estabilidade nacional.
O jovem Garret, partindo de suas raízes neo-clássicas, vive intensamente o período da revolução liberal e da passagem àquela outra, do Romantismo, revelando-se extremo partecipante de ambas e, consequentemente, sempre traduzindo uma personalidade fortemente capaz de ação política e de criatividade artística. Serão essas qualidades que lhe permitirão absorver as novidades internacionais do novo tempo romântico, ao qual dá uma contribuição historicamente essencial, inaugurando-o na literatura portuguesa com a publicação, em 1825, de seu poema Camões.
Nos versos do Camões, ainda que mais ligado às lições românticas inglesas,
Garrett traduz em maneira coerente a tópica “Nação“, e derivadas, próprias da doutrina schleguiana. A idéia de “Pátria“, enquanto valor sentimental, de grande intensidade civil, com o poema garrettiano entra a fazer parte da essencialidade do Romantismo nacional.
Filho da alta burguezia, o autor de Adozinda revela, entretanto, desde sua juventude, ideais revolucionários nascidos de clara personalidade forjada nas lições do Liberalismo mais avançado. Ainda aqui, nas manifestações de seu alto espírito liberal, Garrett traduz a sua inicial formação árcade. O mesmo Iluminismo setecentista que o conduz à prática literária, serve-lhe de guia na formação de sua personalidade política.
O Liberalismo garrettiano é constantemente atento e revolucionário. Nos momentos mais dramáticos da vida do país, nas primeiras décadas do difícil século XIX, logo depois dos atormentados tempos napoleônicos, o civismo ativo de Garrett sabe manifestar-se de forma tal a marcar a história do pensamento político português. O seu espírito de participação demonstra excepcional exemplo na sua Carta de guia para eleitores em que se trata da opinião pública, das qualidades para deputado e do modo de as conhecer, feita para orientação do eleitor partecipante ao pleito de 1826, em plena efervecência dos novos tempos de D. Pedro IV.
O ativismo político de Garrett, encontra um seu correspondente literário nas páginas inovadoras de as Viagens na Minha Terra. Nessas páginas marcantes da literatura portuguesa, umas das tópicas mais típicas do Romantismo internacional, a da “questão da língua”, aliada aos conceitos de “Pátria” e de “Nação”, se traduz em uma obra-prima. A tópica é manifestada de modos diversos nas várias literaturas nacionais, conforme às correspondentes condições linguísticas: fortemente distinta no Manzoni dos Promessi Sposi, produto de uma decidida escolha por uma das muitas expressões dialetais da península itálica, ao par de quanto não fosse a comedida ação linguística da operação garrettiana, ou da ainda mais medida operação da prosa de José de Alencar, no Romantismo brasileiro. Ainda que quase somente limitada a um uso estilisticamente literário da linguagem oral e da fala popular portuguesa, com rápidas ousadias no plano lexical, as Viagens demonstram uma consciente modernização da língua em confronto com as pedagógicas fixações promulgadas pela não-indiscutível reforma pombalina:
“Também são chegados os outros companheiros; o sino dá o último rebate. Partimos.
Numa regata de vapores o nosso barco não ganhava de-certo o prémio. E se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns ístmicos ou olímpicos para êste gênero de carreiras – e se para elas houver algum Píndaro ansioso de correr, em estrofes e antistrofes, atrás do vencedor que vai coroar de seus hinos imortais – não cabe nem um triste minguado épodo a êste cansado corredor de Vila-nova. É um barco sério e sisudo que se não mete nessas andanças.”
Quarta-feira, 16 de Fevereiro de 2011
João Machado
Em 6 de Maio de 1843 Almeida Garrett, numa conferência do Conservatório Real de Lisboa, leu uma memória que girava à volta da apresentação da peça Frei Luís de Sousa, estreada nesse ano, num espectáculo de natureza privada, e publicada no ano seguinte. Na memória Almeida Garrett diz, a dada altura:
"Nem pareça que estou dando grandes palavras a pequenas coisas: o drama é a expressão literária mais verdadeira do estado da sociedade: a sociedade de hoje ainda se não sabe o que é: o drama ainda se não sabe o que é: a literatura actual é a palavra, é o verbo, ainda balbuciante, de uma sociedade indefinida, e contudo já influe sobre ela; é, como disse, a sua expressão, mas reflecte a modificar os pensamentos que a produziram".
Almeida Garrett fez várias notas em relação a esta memória. Reproduzo a seguir uma, elaborada em relação ao trecho acima transcrito:
"Esta contínua e recíproca influência da literatura sobre a sociedade, e da sociedade sobre a literatura, é um dos fenómenos mais dignos da observação do filósofo e do político. Quando a história for verdadeiramente o que deve ser - e já tende para isso - há de falar menos em batalhas, em datas de nascimentos, casamentos e mortes de príncipes, e mais na legislação, nos costumes e na literatura dos povos. - Quem vier a escrever e a estudar a história deste nosso século nem a entenderá nem a fará entender decerto, se o não fizer pelos livros dos sábios, dos poetas, dos moralistas que caracterizam a época, e são ao mesmo tempo causa e efeito de seus mais graves sucessos.
Nossos bárbaros avoengos não conheciam outro poder senão a força - a força material; daí não historiaram senão dela. As rapsódias de história legislativa e literária que algum adepto redigia, mais por curiosidade ou por espírito de classe do que por outra coisa, não eram obras populares, nem foram nunca havidas por tais, nem por quem as escrevia, nem por quem as lia. Assim tão difícil é hoje o trabalho de ligar e comparar umas histórias com outras para achar a história nacional. Mas deve ser muito estúpido o que não vir melhor a história de D. Manuel em Gil Vicente do que em Damião de Góis, e a de el-rei D. José nas leis do Marquês de Pombal e nos escritos de José de Seabra do que nas gazetas do tempo, ou ainda nas próprias memórias mais íntimas de seus amigos e inimigos.
Nas obras de Chateaubriand e de Guizot, de Delavigne e Lamartine, nas de Vítor Hugo e até de George Sand, nas de Lamennais e de Cousin está o século dezanove com todas as suas tímidas saudades do passado, seus terrores do futuro, sua desanimada incredulidade no presente. Falo da França porque é o coração da Europa: de Lisboa a São Petersburgo, daí ao Rio de Janeiro e a Washington, os membros todos do grande corpo social dali recebem e para ali refluem os mesmos acidentes da vida".
Reproduzi estes textos das Doutrinas de Estética Literária, de uma edição dos Textos Literários, publicada em 1961, com prefácio e notas de Agostinho da Silva. Não reproduzi algumas notas feitas por este, bastante explicativas, mas não indispensáveis para mostrar a actualidades destes escritos de Garrett.
Domingo, 14 de Novembro de 2010
(Continuação)António Gomes Marques
VAo falar do Teatro Português e do Teatro em Portugal indispensável se torna falar dos textos (ou será que devemos dizer «pré-textos»?).
Quando se aborda este tema, logo se perceberá a razão por que faço esta distinção: Teatro Português – Teatro em Portugal. De facto, a larga maioria dos textos representados nos palcos portugueses ou nos espaços onde se dão as representações não são de autores portugueses.

Será que haverá muitas pessoas no nosso país que a si mesmas tenham posto esta questão? Há já muito tempo, coloquei-a a um homem do teatro português e a resposta que obtive deixou-me a pensar, de tal maneira que ainda hoje tendo a dar-lhe razão, embora a isso, por enquanto, não tenha chegado. Eis o que me foi dito: «Oh, António, encenar autores portugueses levanta um problema complicado, é muito difícil ver primeiro as suas peças lá fora!» Deixo a pergunta a todos vós: será que aquele homem de teatro tinha razão? É evidente que aquela afirmação peca por exagero e hoje já vai havendo companhias a apresentar peças de autores portugueses e encenadas por portugueses; poucas, é certo, mas já vai acontecendo. Mas não resisto a deixar a provocação, que me dá um certo gozo.
Ainda outra provocação, esta bem mais apropriada. Não caberia ao Ministério da Cultura criar condições para que as estruturas apoiadas fossem levadas a incluir na sua programação textos de autores portugueses? Note-se que recuso a imposição, mas há «mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau», como costuma dizer o povo português.
No n.º 1 do artigo 18.º do Decreto-Lei que venho referindo, que trata de apoios complementares, diz-se:
O Ministro da Cultura fixa anualmente, sob proposta do IA, uma verba para apoios complementares à actividade artística principal nas áreas definidas no n.º 1 do artigo 1.º, aos criadores singulares para a edição e formação artística, e às entidades de criação para a edição, formação artística e reequipamento.
Ou seja, quase podemos dizer que só falta na legislação privilegiar como apoio complementar o levar à cena de textos de autores portugueses ou até, o que não me chocaria, textos de autores de língua portuguesa. Nenhuma estrutura teatral ficaria obrigada a encenar estes textos, mas tinham assim mais uma opção de ver aumentado o apoio do Ministério da Cultura.
Sei que alguns perguntarão. «Mas onde estão esses textos?» É chegado o momento de voltar a Almeida Garrett, que escreveu o que hoje ainda, infelizmente, se justifica escrever:
Os leitores e os espectadores de hoje querem pasto mais forte, menos condimentado e mais substancial; é povo, quer verdade. Dai-lhe a verdade do passado no romance e no drama histórico – no drama e na novela da actualidade oferecei-lhe o espelho em que se mire a si e ao seu tempo, a sociedade que lhe está por cima, abaixo, ao seu nível – e o povo há-de aplaudir, porque entende: é preciso entender para apreciar e gostar.
Procurai pois bem nos textos publicados, que são até muitos, e nos textos que esperam, ao menos, publicação e verão que encontrarão alguns textos com as características de que fala Garrett e muitas razões para levar alguns à cena. A prática daí resultante contribuirá também para melhores textos, mais ricos tecnicamente, e, no fim, todos ficaremos a ganhar, a começar pelo Teatro Português. E, quanto a mim, não haveria mais necessidade de invocar a actualidade de Almeida Garrett se se fizesse o que aqui preconizo.
É um facto que a larga maioria dos textos levados à cena no nosso país é de origem estrangeira. É um direito que assiste às estruturas e, graças a esse trabalho, têm-se visto alguns bons espectáculos servidos por textos de autores contemporâneos, alguns dos quais ainda jovens; no entanto, gostaria de ver os grandes textos do teatro mundial a ser representados com mais assiduidade em Portugal. Claro, bem sei, alguns desses grandes textos exigem encenações dispendiosas e grandes actores, mas, caramba, não será possível representar, por exemplo, Shakespeare sem grandes cenários? É evidente que tal exigiria excelentes actores e não menos excelentes encenadores, assim como bons técnicos, nomeadamente bons técnicos de luzes. Não será possível juntar uns e outros na cena portuguesa? Claro que sim, que os há, tornando-se apenas necessário que haja menos capelinhas e mais cooperação.
Sobre o teatro lírico não tenho muito para dizer, culpa minha, dado não o acompanhar com tanta atenção como à restante actividade teatral portuguesa. No entanto, com a nomeação de Mário Vieira de Carvalho para Secretário de Estado da Cultura, fiquei mais esperançoso e, naturalmente, mais atento.
Apesar de um pouco distanciado, sempre foi minha convicção de que os interesses instalados nesta área teatral necessitavam de quem fosse capaz de os enfrentar e de definir um rumo, menos elitista do que aquele que os referidos interesses sempre impuseram, nascendo em mim alguma expectativa aquando da nomeação daquele musicólogo.
Não serei, pelas razões já apontadas, o melhor dos críticos; no entanto, com as alterações que Mário Vieira de Carvalho conseguiu imprimir, naturalmente com o apoio da então Ministra Isabel Pires de Lima, julgo estar em condições de poder dizer que alguns indicadores justificaram aquela expectativa. O Teatro Nacional de S. Carlos conquistou novos públicos graças ao trabalho do novo Director Artístico, Christoph Dammann, não me parecendo que a qualidade artística tenha diminuído, conhecendo-se apenas reacções negativas dos melómanos que com o TNSC tinham uma «relação centenária», como a actual Ministra da Cultura referiu, representativos daqueles interesses de que acima falo, naturalmente preocupados com a possibilidade de os novos públicos conquistados não terem possibilidade de usar os mesmos perfumes. Vou referir apenas alguns dos números relacionados com a actividade daquele Director Artístico do Teatro Nacional de S. Carlos, que permitem alguma reflexão:
Temporada 2006/2007 n.º total de espectadores: 31.402
Temporada 2007/2008 n.º total de espectadores: 47.036
Temporada 2008/2009 n.º total de espectadores: 74.348
Outro número fundamental para melhor se ajuizar acerca das alterações conseguidas é relativo ao orçamento, o qual diminuiu, entre 2007 e 2009, 1,6 milhões de euros, recordando que o orçamento do TNSC foi, em euros, de 5,8 milhões em 2007, de 4,8 milhões em 2008 e de 4,2 milhões em 2009.
Com a nova política definida pela actual Ministra da Cultura para o teatro lírico, quanto é que o Estado vai passar a pagar por cada espectador?
Com o novo Director Artístico, Martin André (contra o qual nada me move e não é ele que agora critico, o que posso vir a fazer mais tarde, embora não o deseje), espero que o trabalho positivo que aquele teatro lírico vinha desenvolvendo não tenha retrocessos. Talvez a Ministra não dure o tempo suficiente para destruir uma obra positiva que naquele teatro se vinha implantando.
(Continua)
Sexta-feira, 12 de Novembro de 2010
IComeço por fazer uma declaração: não vivo do teatro, nem espero vir a viver! E continuo com uma pergunta que, várias vezes, tenho feito a mim mesmo: seria mais feliz se do teatro vivesse? Não sei a resposta certa, mas uma certeza eu tenho: em Portugal, a trabalhar no teatro, dificilmente viveria como vivo.
Gosto de fazer o que tenho feito ao longo de várias décadas para ganhar a vida, como é uso dizer-se, mas talvez gostasse mais de fazer teatro!
Concluindo esta questão, presto a minha homenagem àqueles que ao teatro se têm dedicado no nosso país, fazendo disso profissão e que, naturalmente, tiveram mais coragem do que eu para prescindirem de algumas facilidades que outra profissão melhor remunerada lhes poderia proporcionar.
Uma outra questão, que é para mim fundamental, tem a ver com a razão que originou a minha paixão pelo teatro e que só consigo justificar com o facto de o teatro conter todos os meios de expressão artística, sejam musicais, pictóricos, plásticos e até arquitectónicos. Com tais meios de expressão, o teatro torna-se uma arte total, capaz de representar uma universalidade de temas que têm a ver com o homem e com o mundo.
Haverá quem pense o teatro, essencialmente, como a arte do actor, o que, hoje, não me custa a aceitar. Se tivesse oportunidade de ser encenador, julgo que procuraria fazer um teatro em que predominaria a luz branca e o preto das cortinas, evidenciando sobretudo a representação do actor, para a qual procuraria chamar a atenção do espectador. Mas deixemos o sonho, que necessitaria de uma outra explicação que não cabe agora aqui.
Há ainda, para além de muitos outros, dois aspectos fundamentais que me apaixonam: o teatro é fruto de um trabalho colectivo, até mesmo com um encenador autoritário, e é uma arte que não dispensa o público. Distingue-se particularmente do cinema, pela renovação constante de espectáculo para espectáculo, ou seja, no teatro não há dois espectáculos iguais, mais diferente ainda se assistirmos a um mesmo texto em épocas diferentes, se esse mesmo texto for interpretado por diferentes encenadores e diferentes actores (isto também pode acontecer no cinema), é um espectáculo em que basta a mudança dos públicos que a ele assiste para se estar perante um espectáculo renovado. É um espectáculo que, para se concretizar, exige uma rigorosa investigação e posterior experimentação, até pela consciência que se deve ter de que se trata de uma arte em que a sua necessária unidade está permanentemente ameaçada.
IIComo intitulei esta comunicação de «Teatro em Portugal / Teatro Português», vou agora falar do fazer teatro em Portugal.
Dizia Almeida Garrett: «Teatro: Livro dos que não têm livros». No Portugal de hoje, em várias zonas do país, particularmente no interior do país, poder-se-ia continuar a utilizar tal expressão; no entanto, penso que se está na situação de poder dizer-se que os portugueses aí residentes têm acesso a quaisquer tipos de livros, sendo hoje mais fácil encontrar um livro numa biblioteca municipal do que assistir a um espectáculo de teatro, o que me parece dar uma ideia do que é o teatro em Portugal.
Antes e depois do 25 de Abril, durante 10/15 anos após esta data, foi o teatro de amadores que colmatou esta falta de teatro em muitos dos concelhos do país, estando o teatro profissional, sobretudo por razões económicas, confinado a algumas das maiores cidades do país, não tendo valor estatístico, por tão poucas, as companhias que tentaram remar contra a maré e as autarquias, salvo raríssimas excepções, também não se mostraram muito interessadas em levar o teatro ao povo. «… é povo, quer verdade», escreveu Garrett, o que para alguns políticos do nosso país não deixa de ser assustador. E será talvez o momento de voltarmos aos ensinamentos de Almeida Garrett, particularmente ao que ele escreveu na Memória ao Conservatório Real.
Poderia continuar a citar Almeida Garrett com a certeza de que não há melhores palavras para explicitar o drama que continua a viver o teatro em Portugal, quando são passados quase 156 anos sobre a sua morte (9/Dez/1854). Ainda há bem pouco tempo pude verificar como as suas propostas incomodaram muita gente responsável pela administração de um projecto intermunicipal em que participei.
Ora, a arte efémera que é o espectáculo de teatro obriga a que as produções sejam particularmente cuidadas, já que o espectáculo de teatro se alimenta do instante e vive do entusiasmo sempre novo. Para isso, os criadores conseguiram no apoio político municipal e sobretudo estatal o suporte económico para implantar os seus variados projectos, todos discutíveis, excelentes uns, bons outros e também alguns medíocres. A seguir ao 25 de Abril pensou-se «agora é que é!», tudo levando a crer que se tinham juntado as vontades indispensáveis para que o sonho se tornasse realidade.
É o momento para perguntar: que realidade temos nós, portugueses, vivido no que ao teatro respeita?
Em alguns dos programas para as legislativas, os dois principais partidos propunham-se atingir a meta de 1% do Orçamento de Estado para a cultura, o que era o retomar de uma meta antiga fixada pelo PS, mas nunca conseguida. Na verdade, houve um Governo PS que, em 2002, atingiu os 0,7%, mas, por exemplo, em 2005, os 0,6% aprovados representavam, em termos absolutos, um montante para a cultura inferior ao de 2001: 285 milhões de euros contra 294 e, agora, ao que parece, não chega a 0,35%. Quando há que fazer cortes, logo os vários Governos se têm lembrado de cortar no orçamento previsto para a Cultura, quer nas despesas de funcionamento, quer nas verbas previstas para o investimento. A vergonha do que recentemente se passou no Ministério da Cultura, com a justificação da crise que vivemos, que vale para tudo, é bem elucidativa do que pensam os governantes portugueses sobre o necessário desenvolvimento cultural do país, apesar da confissão de José Sócrates, após o fim da última legislatura, quando disse que um dos seus erros havia sido o não ter investido mais na cultura (as palavras não terão sido estas, mas o sentido foi este).
É minha convicção que a cultura é um dos itens fundamentais do desenvolvimento de qualquer país, mas desse a cultura votos e outro galo cantaria. É o momento de lembrar a esses liberais ansiosos por ocupar o poder, sempre a atirar-nos números para cima, que o sector da cultura, em Portugal, representa já 2,8% do PIB, prova clara do seu dinamismo e das potencialidades que mostra para o futuro. O próprio crescimento do emprego nas actividades culturais deveria fazer-nos pensar, sobretudo aos governantes. Este dinamismo não acontece apenas em Portugal, acontece também na União Europeia, como acontecerá noutros continentes, o que me parece demonstrar que não se trata de um fenómeno conjuntural.
O desenvolvimento cultural de um país é também sinónimo de desenvolvimento de qualificações, de que o nosso país tão carecido anda. Basta atentar nas qualificações que eram exigidas para a maioria dos empregos que se tem vindo a perder e nas qualificações que se exigem para os empregos que se vão criando e logo se concluirá pela necessidade de tal desenvolvimento cultural.
Claro que o Estado, através de todos os Governos, lá vai dando algum dinheiro para a cultura, nomeadamente para apoio ao teatro.
Que é insuficiente, todo o mundo o diz, mas interessa saber como esse pouco é distribuído.
Considero também que a tarefa dos vários titulares do Ministério da Cultura não é fácil e, das conversas que tive com alguns deles, disso fiquei consciente.
A cultura, pelo menos no nosso país, é propensa à criação de vários lóbis e o teatro não foge ao que já parece ser uma regra, péssima regra que contribui ainda mais para a incorrecta distribuição dos poucos dinheiros para os vários apoios.
*- Comunicação ao I Congresso sobre o Estado do Teatro em Portugal
Quarta-feira, 18 de Agosto de 2010
Sílvio CastroAo contrário de quanto sucede com Soares de Passos, ninguém, e não só em Portugal, se colocará contra a afirmação de que João de Deus é um dos mais representativos poetas do romantismo social português. Paradoxalmente, em aparência, o subjetivismo lírico presente em tantos poemas do autor de Ramos de flores, lirismo embebido de vida recolhida diretamente do quotidiano e traduzida numa linguagem que retoma o melhor ritmo da tradição lirica nacional, esse lirismo profundamente individualista, mas ao mesmo tempo de ressonâncias universais, não obscura a face partecipante do poeta. Desde a apoteose pública em Lisboa que foram os funerais de João de Deus, falecido no dia 11 de Janeiro de 1896, estando o poeta por completar os seus sessenta e seis anos, Portugal o considera como um doce, mas firme herói civil.
A partir diretamente da linguagem poemática, o lirismo de João de Deus é simples e direto. A simplicidade resulta da consciência do autor de que os sentimentos, ainda os mais pessoais, podem ser transmitido diretamente ao seu leitor sem necessidade de altos recursos retóricos. Mas no fundo o resultado alcançado por essa linguagem se faz igualmente um grandíssimo resultado de uma retórica expressiva. João de Deus produz uma poesia que recorda sempre o ritmo das falas existenciais. A ingenuidade percebida a partir delas não é a tradução de uma simplicidade conceitual do poema, mas a percepção de um ritmo poemático que se faz reconhecer comum a todos. Assim é quando o poeta se debruça sobre o seu direto sentimento amoroso ou quando se faz cantor em procura da tradução do sentido maior do ser individual:
Os olhos sempre que os pus
Fitos nos astros do dia
(Parece que se introduz
Tanta luz na fantasia...)
Sabem o que acontecia?
Fechava os olhos e via
Do mesmo modo essa luz.
Assim foi certa visão
Que tive por meus pecados!
Nunca uma breve impressão
Em meus olhos descuidados
Deu tamanhos resultados...
Que é vê-la de olhos fechados,
Ainda no coração!
(“Sol íntimo”)Esta mesma simplicidade encontramos na tradução que o poeta dá ao seu sentimento religioso, expresso liricamente em maneira tal a confundir-se com o de todo o mundo; ainda que, em circunstâncias e testemunhos diretamente pessoais do mesmo sentimento, o poeta adote uma ortodoxia católica quase paradoxal. Como acontece no momento da comemoração de Antero de Quental, uma das grandes admirações do poeta, com a publicação de um livro com testemunhos dos amigos. João de Deus se recusa participar na homenagem de um suicídio. Somente os pedidos dos confrades mais íntimos, o leva a contribuir com um belíssimo poema-epitáfio que faz parte do magnífico volume que é o Anthero de Quental – In Memorian.
A grande consciência de linguagem usada por João de Deus nos seus poemas, tanto naqueles da mais profunda subjetividade individual, quanto nos muitos de sentida participação com o mundo e com o “outro”, leva o poeta a uma de suas maiores criações, a Cartilha maternal, de 1876.
A poesia de João de Deus, principalmente naqueles poemas que passam do Flores do Campo (1868), ao Campo de Flores (1893), constituem um amplo e revelador sistema de metalinguagem. Este sistema encontrará na Cartilha maternal sua consequência lógica. Daí a surpreendente modernidade da pedagogia que caracterizou as últimas ações públicas de João de Deus. As crianças portuguesas, por diversas gerações, puderam aprender a língua já renovada por Garrett e muitas vezes compreendê-la e usá-la em diversos planos de linguagem. Possivelmente dela se originam alguns dos fatores que formam a ironia do falar de muitos portugueses. Ironia que o gênio de João de Deus traduzia principalmente nas suas composições satíricas, como em “Último suspiro”:
“Fui a semana passada
Visitar o hospital,
E vi numa enfermaria
O pobre de Portugal;"
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Domingo, 15 de Agosto de 2010
Sílvio CastroAlmeida Garrett é, quase certamente, o primeiro romântico na literatura portuguesa que incorpora a uma inicial predisposição individualista determinada consciência política. Daí a sua particular importância no quadro do Romantismo social português, para o qual traz marcantes contribuições.
Escritor de evidente formação árcade e iluminista, ele assiste à passagem do tempo setecentista, marcado particularmente pela política cultural do regime pombalino, àquele oitocentista, começado pelas crises institucionais que principiam com o reinado de D. Maria I, se alarga com a invasão napoleônica, o fim da mesma, a revolução de 1820 e a fase do “vintismo”, até chegar às lutas fraticidas culminadas com a vitória de D. Pedro IV e correspondente restauração de uma certa estabilidade nacional.
O jovem Garret, partindo de suas raízes neo-clássicas, vive intensamente
o período da revolução liberal e da passagem àquela outra, do Romantismo, revelando-se extremo partecipante de ambas e, consequentemente, sempre traduzindo uma personalidade fortemente capaz de ação política e de criatividade artística. Serão essas qualidades que lhe permitirão absorver as novidades internacionais do novo tempo romântico, ao qual dá uma contribuição historicamente essencial, inaugurando-o na literatura portuguesa com a publicação, em 1825, de seu poema Camões.
Nos versos do Camões, ainda que mais ligado às lições românticas inglesas,
Garrett traduz em maneira coerente a tópica “Nação“, e derivadas, próprias da doutrina schleguiana. A idéia de “Pátria“, enquanto valor sentimental, de grande intensidade civil, com o poema garrettiano entra a fazer parte da essencialidade do Romantismo nacional.
Filho da alta burguezia, o autor de Adozinda revela, entretanto, desde sua juventude, ideais revolucionários nascidos de clara personalidade forjada nas lições do Liberalismo mais avançado. Ainda aqui, nas manifestações de seu alto espírito liberal, Garrett traduz a sua inicial formação árcade. O mesmo Iluminismo setecentista que o conduz à prática literária, serve-lhe de guia na formação de sua personalidade política.
O Liberalismo garrettiano é constantemente atento e revolucionário. Nos momentos mais dramáticos da vida do país, nas primeiras décadas do difícil século XIX, logo depois dos atormentados tempos napoleônicos, o civismo ativo de Garrett sabe manifestar-se de forma tal a marcar a história do pensamento político português. O seu espírito de participação demonstra excepcional exemplo na sua Carta de guia para eleitores em que se trata da opinião pública, das qualidades para deputado e do modo de as conhecer, feita para orientação do eleitor partecipante ao pleito de 1826, em plena efervecência dos novos tempos de D. Pedro IV.
O ativismo político de Garrett, encontra um seu correspondente literário nas páginas inovadoras de as Viagens na Minha Terra. Nessas páginas marcantes da literatura portuguesa, umas das tópicas mais típicas do Romantismo internacional, a da “questão da língua”, aliada aos conceitos de “Pátria” e de “Nação”, se traduz em uma obra-prima. A tópica é manifestada de modos diversos nas várias literaturas nacionais, conforme às correspondentes condições linguísticas: fortemente distinta no Manzoni dos Promessi Sposi, produto de uma decidida escolha por uma das muitas expressões dialetais da península itálica, ao par de quanto não fosse a comedida ação linguística da operação garrettiana, ou da ainda mais medida operação da prosa de José de Alencar, no Romantismo brasileiro. Ainda que quase somente limitada a um uso estilisticamente literário da linguagem oral e da fala popular portuguesa, com rápidas ousadias no plano lexical, as Viagens demonstram uma consciente modernização da língua em confronto com as pedagógicas fixações promulgadas pela não-indiscutível reforma pombalina:
“Também são chegados os outros companheiros; o sino dá o último rebate. Partimos.
Numa regata de vapores o nosso barco não ganhava de-certo o prémio. E se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns ístmicos ou olímpicos para êste gênero de carreiras – e se para elas houver algum Píndaro ansioso de correr, em estrofes e antistrofes, atrás do vencedor que vai coroar de seus hinos imortais – não cabe nem um triste minguado épodo a êste cansado corredor de Vila-nova. É um barco sério e sisudo que se não mete nessas andanças.”
Sábado, 5 de Junho de 2010
Manuela DegerineCapítulo XEtapa 4: Chegada a Santarém
Bem sei quem era Camões, e quem sou eu.
Almeida Garrett, Viagens na Minha TerraQuinta-feira, 22 de Outubro de 2009, incerta quanto ao tempo, não pus o despertador a tocar. Acordo às sete horas, vou à janela ver: a rua e as grades da varanda encontram-se molhadas mas parece-me que, neste momento, não chove. Tal circunstância reforça a esperança – talvez a chuva não persista. Saio de casa às oito e meia, apanho o metro para o Oriente e o comboio para Santarém.
Previ caminhar vinte e um quilómetros até Arneiro das Milhariças. Começo a subir a encosta que na última vez desci, vejo a vegetação molhada de chuva recente, porém o sol brilha radiante, como radiante eu subo. Dormi bem e sinto-me disponível para novas descobertas.
Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett conta a peregrinação do autor a Santarém – porém esta viagem é o que as Viagens menos contam. No capítulo XXIX o autor defende-se das expectativas: Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas Viagens, se te falto, sem o querer, a promessas que julgaste ver nesse título, mas que eu não fiz decerto. Querias talvez que te contasse, marco a marco, as léguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e larguras dos edifícios? algarismo por algarismo, as datas de sua fundação? que te resumisse a história de cada pedra, de cada ruína?... Almeida Garrett escrevia numa época em que a literatura europeia, após A Viagem Sentimental de Sterne e Tiago, o Fatalista de Diderot, praticava a digressão com arte e malícia.
Estas digressões das Viagens deliciaram-me desde a primeira leitura mas não aos outros alunos da minha turma; e torturaram sucessivas gerações de alunos obrigados pelos programas a lerem-nas numa idade em que, na sua maioria, não tinham adquirido os conhecimentos necessários para, nem digo as apreciarem, ao menos as compreenderem. Uma amiga minha, a Isabel, na primeira leitura, pensava até que o A. em, por exemplo, Faz o A. modestamente o seu próprio elogio, significava o Almeida... Claro: tínhamos dezasseis anos.
Longe de mim insinuar que tais programas eram demasiado exigentes. Os programas devem ser sempre exigentes. Devem ser sempre ambiciosos. Devem sempre obrigar-nos a interrogar, a procurar – a aprender. Devem surpreender-nos sempre. A falta de exigência nos programas é uma forma de desprezo: assenta na convicção de que a caixeira só existe para se sentar em frente da caixa, não tem uma vida interior, uma sensibilidade, uma compreensão, uma memória e portanto, para ser caixeira de supermercado, só precisa de conhecer as notas e as moedas do euro. Sinto-me contente por ter sido formada numa época em que os programas obrigavam a ler integralmente as Viagens, quer mais tarde eu me tornasse escritora, quer fosse mulher da limpeza, em que os programas contavam com a minha inteligência, em que apostavam na minha capacidade para entrar no pacto da leitura. E todos os meus colegas, mesmo aqueles que gemiam com a leitura de Os Maias, tantas páginas, cresceram nelas incomparavelmente mais do que os alunos de hoje com os documentos que agora lhes apresentam. Apenas um exemplo: participei numa reunião de formação dos assistentes durante a qual um folheto da McDonald’s do Brasil era proposto como documento pedagógico para o ensino do português língua estrangeira em França. (No comment.)
Faço a presente digressão pelo ensino para afinal aqui declarar que, tal como Almeida Garrett, também não faço a descrição pormenorizada de Santarém. Estas Novas Viagens contam um percurso pedestre de Lisboa a Santiago de Compostela, atravessam um Portugal que só pode ser visto desta maneira – a pé. Não vou por isso descrever-te, leitor curioso, os monumentos de Santarém; que tu conheces. Os quais eu aliás desta vez também não vi. Visitei-os noutras ocasiões em que aqui cheguei de carro. E hei-de revê-los quando aqui voltar.
O objectivo da viagem é agora outro: atravessar o Portugal que existe para além das cidades e das auto-estradas. (Almeida Garrett lembrou que havia Portugal fora do triângulo situado entre o Chiado, a Rua do Ouro e o Teatro de S. Carlos.)
E, como Almeida Garrett não passou para além de Santarém, entro agora, digamos... numa terra incógnita da literatura.
Vamos juntos descobri-la.
Quinta-feira, 3 de Junho de 2010
Manuela DegerineCapítulo VIIIEtapa 3, da Azambuja a Vila Franca
Terceira parteSubimos, a bom trotar das mulinhas, a empinada ladeira.
Almeida Garrett, Viagens na Minha TerraPassa das de três e meia, o calor, a partir de agora, começa a abrandar, o saco tornou-se leve – mas o pé dói-me cada vez mais. Abandono o dique, atravesso uma planície muito vasta cuja horizontalidade e cujas distâncias me impressionam. Deve ser grandioso caminhar aqui no Inverno ou na Primavera. Não, esta luz e este calor não me convêm...
Há quatro anos, numa viagem pelos Açores, extasiei-me a cada passo – e dei tantos – com aquele campo da minha terra: tão florido, ameno e asseado. Até agora, na região de Lisboa, atravessei um campo muito sujo; aqui parece-me enfim um pouco mais limpo.
Antes de chegar a Omnia, efeitos do calor e da dor no pé, começo a andar à toa. Primeiro engano-me num caminho sem engano possível, vou parar a uma casa particular, onde um rapaz e um senhor elegantes, pai e filho provavelmente, me recebem com urbanidade – não têm o aspecto, o cão, o medo e a linguagem dos rurais. Despeço-me lamentando que ninguém me conte a história daquela casa e daqueles dois habitantes; eu neste momento sinto-me cansada demais para a inventar. Poucos metros mais adiante, paro para tirar da mochila outro pacote de bolachas, penduro o bordão numa cerca, deixo-o lá esquecido e só reparo na subida para Santarém: dois quilómetros para um lado, dois quilómetros para o outro, como se os trinta e dois da jornada não bastassem. Recupero o bordão.
Apesar da experiência na primeira etapa, o bordão continuava a parecer-me inútil e incómodo... Na verdade não me conseguia imaginar a bater num cão – mesmo feroz. Ora em Porto de Muge, lança-se um na minha direcção, eu levanto a arma, o bicho dá meia volta. E agora, há pouco, numa vinha, corre um pastor alemão atrás de mim, pêlo e dentes assassinos, eu mostro o bordão, já mais confiante; e de imediato a fera se vai embora. Ignorava esta magia do bordão!
Recomeço a subida. Vejo, pela primeira vez, à beira da estrada, um fio de água sem cor nem cheiro na qual cresce até agrião. Chego a Santarém. Onde faço idas e voltas numa indecisão que não me é habitual. Entro num Centro Comercial, bebo um sumo de papaia. A coxear. Busco os bombeiros, que estão lá para baixo, a quilómetro e meio daqui. Mais vale eu procurar um hotel. O pé direito doi-me cada vez mais. Que hipóteses tenho de poder amanhã caminhar vinte e um quilómetros até Arneiro das Milharicas?
Concordo contigo, leitor atento, há um cansaço a partir do qual se torna perigoso teimar, é nestas ocasiões que se partem pernas ou se perdem objectos necessários, chaves, telemóveis ou documentos. Tens razão. Prefiro parar agora. Mais vale sarar a bolha do pé e, na próxima ocasião, prosseguir as minhas viagens.
Caminho ainda até à estação de Santarém e sento-me por fim num comboio que hoje me parece de um luxo quase fabuloso.
Quarta-feira, 2 de Junho de 2010
Manuela DegerineCapítulo VIIEtapa 3, da Azambuja a Vila Franca
Segunda parte
A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era; mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há-de ser, não sei.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
Miro mais uma vez a mochila tentando encontrar uma solução. Ao fim de algum tempo, que terá sido curto, parecendo muito demorado, ocorre-me que posso coser a alça. Ainda bem que trago agulha e linhas... Meia hora de costura à beira do campo, sentada em cima de um saco de plástico, por o lugar me parecer sujo; aproveito para reforçar também a outra alça. E prossigo o caminho.
Mais à frente tenho dúvidas quanto ao trajecto. Parece-me que saí do caminho, sigo à periferia de um campo, através de uma vegetação alta, porém continuo em frente – o caminho para Reguengo deve também orientar-se naquela direcção e a caminhada entre silvas e roseiras bravas não me desagrada. De facto, quando chego à estrada, logo vejo a primeira seta amarela num poste: ah!
Em Reguengo paro na fonte para encher as garrafas, vem uma mulher falar comigo, onde vai a menina, assim sozinha, vai com Deus, é verdade, mas não tem medo? Uma enfermeira foi assaltada e violada à saída do hospital Amadora-Sintra. E uma rapariga da região também foi raptada junto à estação da Azambuja. Eu, digo-lhe a verdade, até de ir à Valada tenho medo. Fixo a interlocutora perguntando aos meus botões se haverá tantos bandidos que a desejem violar e assaltar, mesmo no caminho para a Valada, que dista dois quilómetros de Reguengo; mas agradeço o cuidado.
A partir de Reguengo, durante quase vinte quilómetros, o meu trajecto acompanha um dique. Chego a Valada às onze e meia. Surpreende-me o apetite que sinto. Sento-me num parque, à sombra, entre o dique e a praia fluvial, como a sanduíche colossal que me prepararam no restaurante onde ontem jantei, como mais bolachas vitaminadas, como laranjas, nozes e figos, acabo com o chocolate preto e, agora vim prevenida, até faço um chá sumptuoso da Mariage Frères numa garrafa de plástico... Consigo parar o banquete antes da indigestão. Sigo para Porto de Muge.
Nestas minhas andanças, caminhar é um prazer, a verdadeira dificuldade, o suplício máximo está no calor. Em Valada voltei a encher as garrafas todas, três litros de água, que bebo nos três quilómetros até Porto de Muge. Não posso deixar esta localidade sem voltar a enchê-las pois a seguir atravesso um território de catorze quilómetros não habitados. Um sol de crestar, de derreter, de estrugir, de esturricar... Passa um homem de bicicleta com um balde de marmelos, pergunto se há algures uma fonte, ele explica-me onde, mais adiante, depois exclama, num espanto sincero: Vai sozinha! Vá com Deus!
Compreendo a crítica dos leitores. No entanto a piedade pela peregrina não me incomoda, não me sinto sequer hipócrita, inserida numa estrutura que não me é afinal alheia. A fé que arrasta os peregrinos para Fátima ou Santiago não me parece muito distinta da loucura me faz caminhar neste inferno: a curiosidade.
Acompanho o dique por uma estrada poeirenta, a vegetação do talude encontra-se branca de pó, eu cobri-me em Porto de Muge com uma camada de protector solar, quando passa um tractor, uma carrinha, uma camioneta, o que é frequente, a poeira cola-se ao creme: devo parecer um palhaço branco. Vou bebendo a água, a mochila deixa de pesar, os pés não me doem; se não estivesse calor, sentiria gosto na caminhada mas, com esta temperatura, sofro.
Avisto, a certa altura, um grupo de jornaleiros a arrancar e queimar plantas num campo; os quais me fitam com um espanto muito evidente. Se vissem passar uma marciana não fariam outra cara. Qual a razão deste pasmo? A imprudência de uma mulher neste descampado? A insensatez de me expor sem necessidade ao calor? Talvez ambas as coisas. Observo os homens que conduzem tractores e camionetas: parecem-me honestos trabalhadores. Dizem boa tarde e seguem em frente. Embora o caminho seja de facto isolado, à beira de campos imensos, não sinto medo nenhum.
As minhas botas chegam acima do tornozelo e parecerem bem fechadas porém, a certa altura, uma pedra minúscula, quase um grão de areia, consegue entrar por cima, entre a bota e a perna direita. Uma regra é que, apenas sentimos algo, devemos de imediato parar e verificar, contudo eu não vejo por perto sombra nem espaço onde, molhada com me encontro, me sente sem ficar enlameada; guardo para mais tarde a busca da pedra. Avanço mais dois ou três quilómetros, continuo sem poder poisar a mochila, também molhada, assentar um saco de plástico, onde me apoiar; atravesso um deserto poeirento. Quando me forço a fazê-lo, é tarde demais: tenho uma bolha na planta do pé direito.
E agora?
Terça-feira, 1 de Junho de 2010
Manuela DegerineCapítulo VIEtapa 3, da Azambuja a Vila Franca
Primeira parteO pinhal da Azambuja mudou-se.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
Saio dos bombeiros às seis e meia da manhã. Prevejo um dia de caminhada através do campo – se não me perder. A aventura de ontem impõe-me esta regra que, daqui em diante, respeitarei com rigor: logo que me sentir perdida, retrocedo até ao ponto em encontrei a última indicação certa e segura.
A etapa de hoje é de trinta e dois quilómetros. Para já: são dez até Reguengo. Atravesso para o outro lado da estação, avanço à beira de uma estrada sossegada, passo numa ponte, encontro o caminho arenoso com a ajuda de setas amarelas que mãos caridosas, diria quase carinhosas, sem vandalismo, pintaram nos postes de electricidade. Este caminho não pareceria desagradável, não fora o rio malcheiroso que o acompanha... Aliás rio malcheiroso tornou-se nesta região um pleonasmo. Se há água, na melhor das hipóteses, tem que ser mal-cheirosa e, em muitos lugares, como ontem, na estrada para Castanheira do Ribatejo, nem se pode já chamar água àquilo: no espaço onde devia correr água grudou-se uma pasta negra como o petróleo. O caminho alarga-se, piso um pavimento com grandes lajes de pedra, entre canviais. Avisto uma quinta. Surgem os primeiros campos de tomate mais ou menos apanhado. Poder-se-iam encher camiões com o tomate e os marmelos que, ao longo do dia, vejo abandonados pelos campos ou à beira do caminho. O resto são canaviais. O pinhal?... É evidente que também não se mudou para aqui.
A temperatura é fresca, o entusiasmo grande, o bem-estar intenso, sinto a mochila leve, tudo corre pelo melhor até ao momento em que, após hora e meia de caminhada, começo a sentir sede. Poiso a mochila, bebo água, como as primeiras bolachas vitaminadas, mais um pedaço de chocolate preto. Volto a pôr às costas a mochila, porém escorrega-me uma alça, fica todo o peso suspenso na outra – que se parte. Não a alça propriamente, que aguenta muito mais peso, mas o parafuso que a unia ao saco. Fito a mochila com a maior perplexidade. Não é possível... Outro defeito do equipamento? Outra traição das técnicas experimentadas em laboratórios? Peço a esta mochila duas únicas qualidades, ser leve e resistente, avaliei todos os pormenores excepto este, não desconfiei da qualidade dos metais. E agora? Se com as duas alças e o cinto, o peso bem distribuído e assente nas ancas, eu tenho dificuldade em transportar o meu fardo – como é que posso continuar? Abandono as bagagens? E o que visto nos próximos dias, onde durmo, o que bebo?...
Angústia crescente. Que fazer?
Segunda-feira, 31 de Maio de 2010
Manuela DegerineCapítulo VEtapa 2, de Alverca à AzambujaSegunda parte: AzambujaAí está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visíveis sinais de vida, asseadas e com ar de conforto as suas casas.Almeida Garrett, Viagens na Minha TerraO que farás, leitor aventureiro, se a imprudência te conduzir a este extremo? Após um balanço muito rápido, já que a solução é urgente, eu concluo que me não resta outro recurso: peço boleia. Parece um risco mas, comparado com os camiões, um risco sensato. Estendo o polegar, três minutos depois pára um carro, vejo um rapaz com aspecto correcto, pergunto se vai para a Azambuja – ele chama-se Dmytro e tem os olhos verdes. Oferece-me uma água neste café da Azambuja.
Almeida Garrett dedica o terceiro capítulo das suas Viagens à descrição do café, que não pode ser clássica, por estar fora de moda, devera ser romântica, o que não convém, por o romantismo de 1843 não ser verosímil, invoca por isso a fé de Boileau: a verdade. Nada, nada, verdade e mais verdade. Encontro-me aqui em simétrica posição. Também devera, seguindo a elegância do meu tempo, pôr aqui um rap, espalhar seringas no chão, convidar traficantes guest star, iá, lançar tags nas paredes, animar tudo com palavrões... Ficava o café da Azambuja digno do CCB. Todavia... Na verdade quase nada o distingue, nem sequer o mau gosto, da maioria dos cafés de Lisboa. Demorei eu tanto para aqui chegar... Andei tantos quilómetros a pé... Corri tantos riscos... Ficam os leitores desiludidos? Eu também. Bebo uma Água das Pedras com a rodela de limão. Para me consolar. Sabe-me bem. Única particularidade: há moscas. Moscas que picam e que ninguém consegue enxotar.
Abrigo-me no estereótipo do peregrino, conto a Dmytro que vou para Fátima, ele não me acha peregrina como as outras, faço perguntas para disfarçar a mentira, ele explica como vive na minha terra, a brutalidade dos patrões, a diferença entre o salário prometido e o salário pago, a hostilidade audível, embora intermitente, volta para a tua terra; os portugueses parecem-lhe mais individualistas do que os ucranianos. Percebo, por detrás do que ele conta, desequilíbrios da sociedade portuguesa, os milhares de licenciados sem emprego, a falta de mão-de-obra qualificada. Os ucranianos trabalham em Portugal com os mais rudes e ignorantes: isto deve dar uma estranha perspectiva dos portugueses. Almeida Garrett queixava-se de viver num tempo de barões, eu vivo no dos construtores, dos empresários, netos bastardos daqueles; estas palavras ganharam sentido pejorativo e sabemos todos porquê. Até hoje eu só associava o Carregado à primeira linha de caminho de ferro, aquela cuja construção Almeida Garrett objurgava, nos caminhos-de-ferro dos barões é que eu juro não andar, agora a esta imagem juntaram-se, por um lado, os esgotos espessos de mau-cheiro, os monstros denominados camiões e, por outro, a gentileza séria de um ucraniano.
Almeida Garrett criticava um progresso que endividava o país e ameaçava sete séculos de cultura – hoje trata-se da sobrevivência física neste espaço. Uma sociedade sem peões é uma sociedade degradada de múltiplos pontos de vista, mais poluída, mais violenta, menos solidária: uma sociedade na qual não apetece viver. Oiço os leitores inquirirem se o meu ideal de vida são as viagens a pé... Não: mas parecem-me um indicador fiável. Claro que, na azáfama de todos os dias, eu apanho o comboio, apanho o metro, apanho autocarros, apanho táxis, apanho aviões – vivo no século XXI. Todavia, para neste século continuarmos a viver, é urgente modificar alguns dos nossos hábitos e corrigir muitos dos nossos erros. Os portugueses circulam de carro porque os transportes públicos são insuficientes, porque as autarquias não lhes preservam espaço para a caminhada; e, quando falo de caminhada, não me refiro a cem metros em qualquer parque mas à possibilidade de ir a pé trabalhar, fazer compras ou acompanhar os filhos – à vida quotidiana. Nas cidades portuguesas que eu conheço não há passeios, excepto nos centros, perto da câmara ou da junta; e, mesmo quando os há, têm carros estacionados, o peão é obrigado a fazer ziguezagues, subir e descer do passeio, expondo-se a ser atropelado. As consequências são múltiplas, passam pela obesidade da população e chegam à monomania da rádio, a única do mundo que quase só fala de trânsito: alma doente num corpo doente.
As gerações que os antecederam transmitiram aos nossos pais a região de Lisboa, que agora atravesso, semelhante à que Almeida Garrett conheceu – em menos de cinquenta anos tornou-se uma lixeira, águas fedorentas, ares envenenados, campos cobertos de lixo. Transmitiremos isto às gerações futuras. Não nos podemos orgulhar deste progresso.
Informaram-me que os bombeiros voluntários dão abrigo aos peregrinos jacobeus; quero saber em que condições. O acolhimento é franco e caloroso. Mostram-me a sala de festas onde se encontram vinte e um colchões dispostos em três pilhas. Limpos. Indicam-me uma casa de banho. Igualmente limpa. Para tomar duche cumpre avisar, por os duches se situarem numa camarata masculina. Coloco o saco-cama em cima da pilha mais baixa de colchões, ponho no caixote as embalagens dos biscoitos e chocolates que, ao longo do dia, fui comendo, vou à casa de banho lavar a mochila que, por eu ter transpirado litros de suor, começa a exalar um odor desagradável; ponho-a a secar pendurada entre duas cadeiras. Quando digo que desejo tomar duche, colam um cartaz na porta da camarata: Cuidado, senhora no duche. Respeito, discrição e simpatia.
Escrevo um pouco, enquanto descanso, depois saio para ver a Azambuja que, até aqui, não passava de uma estação no trajecto entre Tomar e Oriente, isto é, quase no fim da viagem: um sinal para arrumar os livros ou o portátil. Descubro, com alguma surpresa, uma terra bem preservada. A amabilidade dos moradores, que dizem boa tarde, quando passo, manifesta um relacionamento sereno e harmonioso. A rua principal encontra-se embandeirada, um evento denominado Arte ao Vento, que lhe acrescenta um aspecto festivo. Subo e desço. Admiro as casas brancas com barras coloridas. Observo um ninho de cegonhas no parque. Entro na igreja barroca: talha dourada e azulejos de cor azul, branca e amarela. Converso com um seleiro numa loja-atelier. Como arroz de pato num restaurante.
Caminhei não menos de vinte quilómetros; não me doem os pés. Deito-me cedo. Durmo nove horas e meia.
Domingo, 30 de Maio de 2010
Manuela DegerineCapítulo IVEtapa 2, de Alverca à AzambujaPrimeira parte: de Alverca ao CarregadoSomos chegados ao triste desembarcadoiro de Vila Nova da Rainha, que é o mais feio pedaço de terra aluvial em que ainda poisei os pés. O sol arde como ainda não ardeu este ano.Almeida Garrett, Viagens na Minha TerraTodos os técnicos da caminhada insistem nesta regra: nenhum caminhante deve transportar mais de dez por cento do seu peso. Ora eu, com um metro e cinquenta e sete de altura, raro ultrapasso os quarenta e sete quilos. Não convém por conseguinte levar mais de quatro quilos e meio, o que transforma a escolha de uma mochila num problema de resolução complexa: as mais ergonómicas e práticas, com bolsas múltiplas e fechos em todas as direcções, chegam a pesar dois quilos e meio... Após ensaios demorados e dilemas duvidosos, optei por uma muito simples, um saco impermeável com duas alças e um cinto para o prender nas ancas, ganhando no peso, perdendo na funcionalidade pois, quando preciso de algo, água, maçã, protector solar, tenho que tirar a mochila, poisá-la, abri-la e procurar. Para facilitar esta busca, reparti a impedimenta em quatro embalagens de plástico, de cores distintas, a roupa, a higiene, a comida, o saco-cama, o que reduz o risco de os objectos, como é seu costume, se camuflarem no fundo da mochila no instante em que são com urgência necessários... Tenho, para além disto, uma bolsa-cinto onde coloco lenços, telemóvel, caneta, bloco (minúsculo), mapa (dobrado)... Não é o ideal mas paciência: adapto-me.
Saio de casa às seis horas de quinta-feira 24 de Setembro e, logo à saída do prédio, recebo um sinal do Espírito Santo, que me desliza pelo cabelo e é aparado pelo braço direito. A primeira reacção é de repugnância, malditos pombos, apanho alguma salmonela, vale não vale a pena voltar a casa, limpo o braço, apalpo o cabelo, que não parece sujo, opto por prosseguir. Sinal fasto ou nefasto? Rio-me. Sinto-me leve, apesar da mochila. E bem disposta.
Apanho o comboio para Alverca, ponto final da primeira etapa, atravesso a localidade, passo uma escola, um estádio, sucessivas zonas industriais. O percurso torna-se agradável a partir de Alhandra graças a um habitante que, vendo-me avançar na direcção da N10, me aconselha o Caminho Ribeirinho para Vila Franca – um espaço magnífico à beira do Tejo, quatro quilómetros que parecem curtos, Tejo, ar, luz, plantas, a ponte, ciclistas, corredores e muitos caminhantes. Um francês ter-me-ia olhado sem reagir, vai para a N10, estúpida opção, o problema é dela; este homem, que me chama para indicar o melhor caminho, manifesta uma das facetas que mais aprecio nos portugueses. Tal qualidade corre, no entanto, o risco desaparecer por via da crescente violência urbana; e, desde que comecei as minhas viagens, aprendi já a medir a insegurança na proporção inversa deste civismo.
Chego às dez horas a Vila Franca, começo a sentir o peso da mochila, sento-me no parque, entre o rio e a estação, à sombra, para refrescar, o calor chega já aos trinta graus, parece-me, como uma sanduíche, nozes, figos, uma banana, bolachas vitaminadas: o movimento abriu-me o apetite. Falta-me caminhar quase vinte quilómetros até à Azambuja. Saindo de Vila Franca encontro-me, uma vez mais, numa zona semi-rural, semi-industrial, sem urbanismo nem urbanidade, lixo, fábricas, vacas a pastar, caminho à beira da estrada, não há passeio, uma vez mais, contudo, poucos metros adiante, vejo casas com paredes brancas, roupa estendida, vasos de flores, humanidade teimosa num mundo de brutos, continua a não haver passeio, que municipalidades são estas, apenas uma ponte aérea para os peões não serem todos os dias espalmados, acabo por chegar a uma estrada mais calma, entalada entre a zona industrial, um esgoto malcheiroso e a linha do caminho de ferro. Passo a estação de Castanheira do Ribatejo, chego à do Carregado. Faz cada vez mais calor. No primeiro restaurante como uma sopa de feijão verde – deliciosa. Compro outra garrafa de água. E continuo.
O objectivo é seguir na direcção de Vila Nova da Rainha para chegar à Azambuja pela N3. Interessa-me ver Vila Nova da Rainha, onde Almeida Garrett desembarcou, vindo num vapor do Terreiro do Paço; e presumo que seja possível caminhar à beira da N3. Pois... Não sei como é, leitor perplexo, talvez consequência do calor, que me atordoa, do decorrente cansaço, que me surpreende, qualquer lei da física estabelecerá a relação entre a temperatura do ar e o peso das mochilas, o da minha, embora eu tenha bebido os dois litros de água, parece aumentar, devia encontrar uma ponte que não vejo, pergunto a sucessivos passantes, a Azambuja é por ali, vire à direita, sempre em frente, perdi as setas amarelas do Caminho de Santiago, encontro-me à beira de uma estrada sem berma, devera retornar, procurar as setas, alguma falhei, o calor e a mochila comprimem-me a inteligência, voltar atrás, redobrar a caminhada, teimo pensando que será assim durante alguns metros, mais adiante voltarei a encontrá-las, todavia quanto mais avanço, maior o perigo, há meio metro entre o muro e os camiões, não me atrevo a atravessar, avançar é loucura certa, recuar também, por que diabos me meti nisto, a minha terra perdeu a brandura, a cortesia, afabilidade do caminhar, devera eu seguir o Caminho francês, de Le Puy-en-Velay a Santiago de Compostela, mil e seiscentos quilómetros turísticos, protegidos e acompanhados.
Como é que eu vou sair daqui?
Quinta-feira, 27 de Maio de 2010
Manuela Degerine
Capítulo I
Primeiro passo
E protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto pensar e sentir se há-de fazer crónica.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
Eu nasci em Lisboa, leitor amigo, em Lisboa estudei e, quando me preparava para durante trinta anos trabalhar em Lisboa, conheci um francês com quem casei; fui viver em Paris.
Mas venho a Lisboa com frequência. E, quando chego, para além de me encontrar com amigos e família, que me narram aventuras lisboetas, vejo museus e exposições, frequento cafés e livrarias, caminho pela cidade, vou a Sintra, à Arrábida e à Praia das Maçãs. A minha mãe vive em Queluz, passo vários dias em Queluz; e alguns em Tomar, outros nas Sarzedas do Vasco, uma aldeia da serra da Lousã, onde prolongo cumplicidades. Como no resto do tempo, quando estou em Paris, leio os jornais portugueses, leio livros portugueses, vejo filmes portugueses, sou professora de português – penso conhecer razoavelmente a sociedade portuguesa. Para além disto, em Portugal apanho os transportes públicos e não me esqueço de parar, escutar, olhar – os outros interessam-me, divertem-me, instuem-me. Gosto de os observar. As histórias dos outros, mesmo reduzidas a uma fisionomia e duas frases, interessam-me sempre. Penso portanto, repito, conhecer razoavelmente a sociedade portuguesa. Isto é: parece-me que a conheço tão bem como a maioria dos portugueses.
Os quais porém, na sua maioria, não conhecem Portugal. Almeida Garrett interrogava: Fazem ideia do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, se não saem, se não vêem mundo, esta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o Chiado, a Rua do Ouro e o Teatro de S. Carlos, como hão-de alargar a esfera de seus conhecimentos, desenvolver os espíritos, chegar à altura do século? Neste princípio do século XXI, logo que podem viajar, os portugueses escapam-se para o estrangeiro, Espanha, Brasil, Croácia, Colômbia, tudo os satisfaz, desde que situado além-fronteiras; ou, se lhes faltam meios para tanto, ficam pelo Algarve – que continua um reino à parte. Não podendo escapar a este presbitismo, também eu viajei por vários continentes, antes de compreender que não conheço a minha terra.
Pois agora... decidi-me. Vou atravessar uma parte de Portugal, seguindo o Caminho de Santiago a partir de Lisboa. Para começar. A pé. Como os peregrinos da Idade Média. (O assinalado presbitismo também consiste em percorrer o país de carro: não se vê, não se sente, não se ouve, não se cheira de perto...) A realidade de um país sente-se nos pés. A pouco e pouco. Em muitas etapas que, em função das minhas disponibilidades, talvez se prolonguem por vários meses. Encontro marcado neste site, portanto, com os leitores viajantes ou sedentários para, ao ritmo das minhas peregrinações, lhes dar conta destas aventuras.