Carlos LouresConheci o Alfredo Margarido em 1958. Fora-me apresentado no Café Restauração, na Rua 1º de Dezembro, não me lembro por quem, embora tenha a ideia de que foi o Renato Ribeiro que me introduziu nessa tertúlia de fim de tarde. Ao mesmo tempo conheci Edmundo Bettencourt que aparecia por ali, o pintor Cândido Costa Pinto e outros amigos.
Durante umas semanas mantivemos uma relação formal. O Margarido falava sobre tudo com uma grande segurança, era mais velho, muito mais sabedor, e eu não me atrevia a discordar, mesmo que às vezes estivesse tentado a fazê-lo ou a manifestar a minha concordância. Ele tinha o dom de formular com grande correcção ideias que andavam à solta pela minha cabeça. E muitas vezes, tentava reter na memória as formulações de Margarido. Naquele período, o Alfredo foi uma referência para mim.
Em 16 de Maio, uma sexta-feira, o general Humberto Delgado chegou a Lisboa, regressando de uma triunfal viagem ao Porto. Uma enorme multidão esperava-o em Santa Apolónia e logo aí forças da PSP e da GNR carregaram sobre os milhares de apoiantes. Junto da sede da candidatura, que funcionava na Avenida da Liberdade, no velho Teatro Avenida, cerca das 18 horas, juntou-se também uma multidão de muitos milhares de pessoas. Quando o cortejo, que vinha de Santa Apolónia, chegou perto do teatro – da Rua das Pretas e da Praça da Alegria saíram guardas da PSP e agentes da GNR a cavalo, num dispositivo destinado a impedir os apoiantes de se aproximarem do teatro. O primeiro troço do metropolitano estava a ser construído, havia pedras com abundância, e os «agentes da ordem» perderam o primeiro round – foram levados à frente do tsunami humano, alguns perderam os cassetetes para os manifestantes. Os que não fugiram a tempo e se distraíram a bater, foram mesmo espancados. Nessa tarde e até ao anoitecer andei lado a lado com o Ernesto Sampaio que se ria muito de todos aqueles episódios. À noite a luta recrudesceu, mas nós já estávamos no Gelo contando a nossa aventura.
No Domingo 18, á noite, realizou-se um comício do general no ginásio do liceu Camões. A sala encheu-se rapidamente e no exterior ficaram muitos milhares de pessoas. Andando por ali, fui dar ao San Remo. E lá estava a uma mesa o Alfredo Margarido. Trocámos umas impressões sobre o que se estava a passar. Falámos da posição do PCP (que começara por acusar o general de aventureirismo e de estar a soldo dos americanos, mas que face ao apoio popular, começava a mudar o discurso). Anoiteceu e no exterior a multidão que rondava toda a aquela zona não cessava de aumentar. Os gritos de «Delgado! Delgado!» ouviam-se como um trovoada de violência crescente. Patrulhas da PSP, a pé e em viaturas, desta vez armados de metralhadoras ligeiras e da GNR, com agentes a cavalo, percorriam incessantemente toda a área. Subitamente, ouvimos muito perto diversas rajadas de metralhadora. No San Remo entrou desordenadamente muita gente, deixando o café apinhado – as mesas foram arredadas e pusemo-nos de pé. No exterior, à mistura com os tiros, ouviam - se gritos. A polícia e a guarda tinham começado a carregar sobre os manifestantes. Soubemos depois que uma das rajadas destruíra a vidraça do café Monumental, no Saldanha. Houve feridos, mas julgo que ninguém morreu.
Dentro do San Remo, o Margarido assumiu o comando das operações. Para mim comentou «isto atingiu um clima de guerra civil» - Para o encarregado ou patrão deu uma ordem - «Apague as luzes! Já!» e para as dezenas de pessoas acumuladas dentro do café, com as mulheres a chorar e a gritar de medo, berrou uma ordem: «Calem-se, suas bestas!». O responsável pelo café cortou imediatamente a electricidade – as mulheres calaram-se com mais medo do Margarido do que da polícia. Eu fui ajudar um empregado a fechar as portas. Lá fora era um pandemónio – gente correndo com os agentes perseguindo-os e batendo-lhes com os bastões ou com as coronhas das espingardas. Uma manada desses desgraçados biltres passou pela montra e pela porta do café – um deles encostou a cara ao vidro e olhou para o interior, mas estava tudo tão imóvel e silencioso que, chamado pelos colegas, correu a juntar-se-lhes. Depois organizou a saída das pessoas em pequenos grupos. Todos lhe obedeceram.
O Margarido tinha essa qualidade de liderança inata, fosse na especulação filosófica ou política, na análise literária ou na acção, nunca duvidava de si mesmo. Ficámos amigos. Passei a frequentar a tertúlia do Restauração e pude ver que o Margarido pontificava naquele pequeno grupo de poetas e artistas plásticos – A Maria Manuela Margarido, mulher do Alfredo e grande poetisa são-tomense, o Edmundo Bettencourt, o poeta Manuel de Castro, o pintor Cândido Costa Pinto, o Renato Ribeiro – tudo gente de grande inteligência, mas com as hesitações e as dúvidas próprias de quem faz versos – com o último contradizendo o primeiro. O Alfredo expunha com o seu ar zangado, firme e assertivo. Mas sem ser o convencido que só se ouve a si mesmo – quando alguém falava ele ouvia com grande atenção e sem interromper.
Eu era um rapazito, meio estudante, vagamente trabalhador, o interior da minha cabeça assemelhava-se a uma zona de catástrofe, com Marx, Breton, Thomas Mann, Trotsky, Sartre e Camus, acotovelando-se, pontapeando-se – e metia-me às vezes em cavalarias altas, começando frases que não fazia ideia de como acabar – opinando sobre o
Le mur,
A Montanha Mágica ou sobre um dos manifestos o comunista ou o surrealista… Quando parava e via todos aqueles sábios à espera da conclusão, era por vezes tomado de pânico. O Margarido ajudava, apontando-me uma saída para o labirinto de palavras e conceitos em que eu me enredara.
Isto para dizer que o Alfredo Margarido era de uma extrema lealdade para com os amigos e implacável para os inimigos. E tinha inimigos de estimação. Não era mal dizente, era rigoroso. A lealdade aos amigos nunca o impediu de lhes apontar erros, cara a cara, se fosse preciso. Para ele não existiam aqueles elogios de circunstância - dizia sempre o que pensava. E também o ouvi elogiar inimigos - e quem o conheceu sabe como ele era parco em elogios.
(Continua)