coordenação de Augusta Clara de Matos
Hoje falamos de...A viagem da Imaginação
Konstandinos Kavafis
Konstandinos Petros Kavafis (1863-1933) ainda que nascido em Alexandria (Egipto) era grego dado a sua família pertencer à colónia grega existente na cidade. Haveria de adquirir, mais tarde, a nacionalidade inglesa, tendo, no entanto, lutado convictamente pela devolução dos Mármores do Parthénon à sua pátria de nascimento. A partir de 1911 a sua poesia ganhou crédito, considerando-se ele próprio poeta só desde então. Tanto Lawrence Durrell como E.M. Forster nunca se esqueceram de nomear aquele que foi considerado O Poeta de Alexandria sempre que as suas obras com ela se relacionaram. Kavafis também se aventurou na prosa e é um desses textos que aqui apresentamos.
Konstandinos Kavafis Os Navios
(tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis)
Da Imaginação até ao Papel. É uma difícil passagem, é um perigoso mar. A distância parece curta à primeira vista, e embora seja assim quão longa viagem é, e quão prejudicial por vezes para os navios que a empreendem.
O primeiro prejuízo provém da natureza assaz frágil das mercadorias que os navios transportam. Nos mercados da Imaginação a maior parte das coisas e as melhores são fabricadas de vidros finos e de cerâmicas transparentes, e com todo o cuidado do mundo muitas se partem no caminho, e muitas se partem quando as desembarcam para terra. E todo o prejuízo deste género é sem remédio, porque é impensável que o navio volte atrás para recolher coisas da mesma forma. Não há hipótese de encontrar a mesma loja que as vendia. Os mercados da Imaginação têm lojas grandes e luxuosas mas não de duração longa. As suas transacções são curtas, arrematam as suas mercadorias rapidamemte e liquidam de seguida. É muito raro para um navio voltar e encontrar os mesmos
exportadores com os mesmos géneros.
Um outro prejuízo provém da capacidade dos navios. Partem dos portos dos continentes prósperos sobrecarregados, e depois quando se encontrarem no alto mar vêem-se obrigados a deitar fora parte da carga para salvar o todo. De tal modo que quase nenhum navio consegue levar completos tantos tesouros quantos recolheu. As coisas despejadas são obviamente os géneros de menor valia, mas por vezes acontece que os marinheiros, na sua grande pressa, cometem erros e deitam ao mar objectos preciosos.
Mal chegam ao porto branco do papel e são precisos outros sacrifícios de novo. Vêm os oficiais da alfândega e examinam um género e pensam se devem permitir o desembarque; recusam deixar que se descarregue um outro género; e de certas tralhas apenas aceitam pequena quantidade. O lugar tem as suas leis. Nem todas as mercadorias têm a entrada livre e é estritamente proibido o contrabando. A importação de vinhos é impedida porque os continentes de que vêm os navios fazem vinhos e álcoois de uvas que crescem e amadurecem a temperatura mais generosa. Os oficiais da alfândega não querem para nada estas bebidas. São demasiado embriagadoras. Não são propícias para quaisquer cabeças. Para além disso existe uma companhia no lugar que tem o monopólio dos vinhos. Fabrica líquidos que têm a cor do vinho e o sabor da água, e deles se pode beber o dia inteiro sem que subam à cabeça. É uma velha companhia. Goza de grande reputação, e as suas acções estão sempre sobrevalorizadas.
Devemos, porém, ficar satisfeitos quando os navios entram no porto mesmo que seja com todos estes sacrifícios. Porque ao fim de contas com vigia e com muito cuidado limita-se o número dos recipientes partidos e atirados ao mar durante a viagem. Também, as leis do lugar e as normas alfandegárias são tirânicas em grande medida mas não de todo proibitivas, e grande parte da carga
desembarca-se. Nem os oficiais da alfândega são infalíveis, e alguns dos
géneros impedidos passam dentro de caixas fraudulentas em que se escreve uma coisa por fora e por dentro se tem outra, e importam-se alguns bons vinhos para banquetes excelentes.
Triste, triste é outra coisa. É quando passam alguns navios enormes, com joalharias de coral e mastros de ébano, com grandes bandeiras desfraldadas brancas e vermelhas, cheios de tesouros, que nem sequer se aproximam do porto quer por todos os géneros que levam serem proibidos, quer por o porto não ter bastante profundidade para os acolher. E seguem o seu caminho. Vão de vento em popa sobre as suas velas de seda, o sol fulgura na sua figura de proa em ouro, e afastam-se tranquila e majestosamente, afastam-se para sempre de nós e do nosso porto constrito.
Felizmente são muito raros estes navios. Apenas vemos dois, três durante a nossa vida inteira. E rapidamente os esquecemos. E depois de passarem alguns anos se algum dia — quando estamos inertes olhando a luz e ouvindo o silêncio — por acaso voltarem aos nossos ouvidos mentais algumas estrofes entusiásticas, de início não as reconhecemos e atormentamos a nossa memória para recordar onde as tínhamos ouvido antes. Dificilmente acorda a antiga memória e recordamos que estas estrofes são do cântico que salmodiavam os marinheiros, belos como heróis da Ilíada, quando passavam os grandes, os excelsos navios e avançavam indo — quem sabe para onde.
(in Poemas e Prosas, Relógio d'Água)
Alexandria
Em Roma, Bento XVI, após ter enviado os seus votos de um bom ano às igrejas orientais, apelou a que a bondade de Deus, visível em Jesus Cristo, «reforce em todos a fé a esperança e a caridade e dê consolo às comunidades que tão duramente foram postas à prova». Referia-se à comunidade copta do Egipto. Como se sabe, na passagem do ano um ataque terrorista vitimou 23 pessoas entre os cristãos que oravam numa igreja copta em Alexandria.
Todos aqueles que defendem a liberdade, nela incluem a plena liberdade de culto. Mesmo quem apoia, no plano político, a causa islâmica não pode aprovar ataques terroristas como o de Alexandria. O integrismo, a ideia de que quem não pensa como nós está errado e merece morrer pelo seu erro, constitui uma negação da inteligência. Quem defende a sua fé desta maneira é um criminoso – a crença não pode servir de atenuante a quem nega aos outros o direito de crerem de maneira diferente. Julgo que no mundo islâmico há, a par com esta gente imbecilizada pelo fanatismo, pessoas, seres humanos, dignos dessa classificação. E tanto assim é que líderes islâmicos moderados estão a ultimar uma fatwa condenatória dos ataques contra os cristãos.
Mas não deixa de ser curioso que uma Igreja que, como a católica, sempre foi intolerante, apele tão veementemente à tolerância, à paz e ao respeito mútuo. Sabemos que é lógico que assim seja e que faz todo o sentido este apelo a que o cardeal Angelo Bagnasco, presidente da Conferência Episcopal Italiana, deu voz, falando em nome do papa. Mas também se sabe que a hierarquia superior da Igreja Católica (e estou a falar das últimas décadas e não da Inquisição ou das Cruzadas…) sempre foi intolerante enquanto pôde, aliando-se a poderes desumanos – ao fascismo, ao nazismo, ao falangismo, ao salazarismo… abençoando genocídios, holocaustos, perseguições por delito de opinião – desde que a sua liberdade de movimentos fosse preservada ou privilegiada. A dignidade do ser humano, a liberdade de culto e de opinião, nunca a preocuparam nesses momentos da história recente.
O cardeal Bagnasco pede a intervenção da União Europeia em particular e da comunidade internacional em geral, no sentido de o direito à liberdade religiosa ser respeitado em todo o mundo e diz que a Conferência Episcopal e o papa "estão atónitos ante tanta intolerância religiosa e tanta violência". E acrescentou "Interrogamo-nos, doloridos, porquê. Por que se derrama tanto sangue em tantos lugares da Terra". A pergunta faz todo o sentido. A resposta pode encontrá-la sua eminência lendo, estudando a história da sua igreja que só já não é intolerante como foi durante grande parte do século XX, porque faz parte integrante de um modelo de sociedade em que todas as liberdades são toleradas e inclusive os crimes de pedofilia praticados por sacerdotes católicos são vistos com alguma da tal tolerância.
Nada do que digo deve ser interpretado como apoio ao terrorismo ou desculpa sequer desses energúmenos fanatizados por clérigos obscurantistas que os convencem de que matar infiéis é uma forma de ganhar o Paraíso. Exactamente o que a igreja Católica defendeu durante séculos. Por isso, soa falso este apelo à tolerância. Onde quero chegar, perguntarão – pois se condeno o terrorismo, por que não pode o Vaticano fazê-lo também? Porque uma coisa é condenar o terrorismo, outra coisa é virem organizações que sempre o praticaram (sob outra designação, claro) protestar contra o terrorismo dos outros. Todos têm o direito de condenar o terrorismo e a intolerância, menos quem, desde há séculos, pratica estes crimes.
A metáfora da virgem no bordel faz aqui todo o sentido.
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