Segunda-feira, 21 de Fevereiro de 2011
coordenação de Augusta Clara de Matos
Hoje Falamos de...uma exemplar convivência
Abdurraham Badawi
Egípcio, é filósofo e historiador da filosofia. Foi diretor dos departamentos de filosofia de diversas universidades no Egito, na Jamahiriya Árabe, Líbia e no Kwait, além de professor convidado na Sorbonne, em Paris. É autor de cerca de 100 obras, em francês e em árabe, sobre temas como existencialismo, filosofias grega e árabe e filosofia alemã contemporânea.
Abdurraham Badawi A Escola de Toledo
A transmissão do legado cultural
árabo-grego de Al-Andalus à Europa
ocorreu principalmente graças à
escola de tradutores de Toledo.
SOMENTE no século XII surgiu, em Toledo, a primeira escola espanhola de tradutores do árabe para o latim. Essa escola foi fundada por D. Raimundo, monge beneditino nascido em Agen, no sudoeste da França, que foi arcebispo de Toledo de 1126 a 1151. Convencido da importância da obra dos filósofos árabes para a compreensão de Aristóteles, ele decidiu traduzir suas obras para o latim.
Entre as diversas pessoas convocadas para esse trabalho, uma das mais eminentes foi Dominicus Gundisalvi, arcediago de Segóvia. Ele traduziu do árabe para o latim importante parte do Kitab al Chifa' (Livro da Cura), obra enciclopédica de Ibn Sina (Avicena), o Maqa-sid al-falasifah (As intenções dos filósofos), de al-Ghazali, e o Ihsa’ al-ulum (Tratado sobre o recenseamento das ciências), de al-Farabi.
Mas Gundisalvi não conhecia o árabe. Por isso, valeu-se de intermediários, muçulmanos ou judeus, para dispor de uma tradução do árabe em castelhano e, em seguida, traduzir para o latim. Entre esses tradutores judeus intermediários, constantemente ressurgem os nomes de um certo Salomão e, sobretudo, de Johannes Avendeath (ou Avendauth, ou Johannes bem David, ou Johannes Hispanus, ou, ainda, Jean de Séville), cuja identificação suscita muitas controvérsias.
O membro mais importante desse colégio de tradutores foi sem dúvida Gerardo di Cremona (1114-1187). Graças a uma breve notícia deixada por seus alunos sobre sua vida e sua obra como tradutor, sabemos que Gerardo foi para Toledo, após terminar os estudos na Itália, para conhecer mais sobre o Almageste. Esse tratado de astronomia composto por Cláudio Ptolomeu, o célebre astrónomo, matemático e geógrafo grego do século II, era uma imensa obra que dispunha de uma versão em árabe. Ante a profusão de livros científicos em árabe que descobriu em Toledo, Cremona começou imediatamente a estudar árabe, a fim de lê-los e traduzi-los para o latim. Em seguida traduziu mais de 70 obras, entre elas o Almageste, cuja tradução terminou em 1175.
Suas traduções abrangem praticamente todo o campo científico daquela época: diversos livros de Aristóteles (Da Física, Do céu e do mundo, Da geração e da corrupção e Os meteoros), além de al-Kindi, Ptolomeu, Isaak Israeli, Ibn Sina, Galeno e muitos outros.
Outro grande tradutor foi Michel Scot (c.1175-c.l235). Nascido na Inglaterra, ele passou pelas Universidades de Oxford e de Paris, antes de se estabelecer em Toledo, onde aprendeu o árabe e o hebraico, vindo a traduzir muitas obras do árabe para o latim. No final da vida, foi convidado à corte do imperador germânico Frederico II de Hohenstaufen, na Sicília - outro centro de traduções do árabe para o latim.
Michel Scot traduziu principalmente grande parte dos comentários de Ibn Rushd (Averróis) sobre a obra de Aristóteles e o Tratado sobre as esferas, de al-Bitrudji (Alpetragius, ou Alpetrage), que exerceu grande influência sobre os conhecimentos astronómicos.
Um trabalho coletivo
Essas traduções toledanas levantam o problema da paternidade. Num estudo sobre Averróis publicado no século passado, o escritor e historiador francês Ernest Renan observou: "Certamente os latinos que viajaram a Toledo não tinham qualquer escrúpulo em se apropriar do trabalho de seus secretários (...) e o nome do tradutor frequentemente era uma ficção.
"Quase sempre um judeu, amiúde um muçulmano convertido, desbastava a obra e aplicava a palavra latina ou a palavra vulgar sobre a palavra árabe. Um clérigo cuidava do texto em latim e dava seu nome à obra. Por isso, uma mesma tradução é frequentemente atribuída a pessoas diferentes."
Essa opinião é partilhada pelo grande medievalista norte-americano Charles Homer Haskins em seu livro sobre a Renascença do século XII e também por algumas traduções latinas do árabe por intermédio do espanhol, em poder da Biblioteca Nacional de Paris.
O extraordinário trabalho de tradução realizado em Toledo foi efetivamente a obra conjunta dos árabes muçulmanos, judeus e latinos cristãos. Seria injusto atribuir sua paternidade somente a estes últimos, mesmo quando os manuscritos ou os historiadores mencionam apenas seus nomes. Gundisalvi, Gerardo di Cremona, Michel Scot e muitos outros tradutores sempre recorreram a ajudantes e intermediários árabo-muçulmanos ou, ainda com maior frequência, judeus. O trabalho dos tradutores cristãos latinos às vezes se limitava a colocar em bom latim o que seus ajudantes haviam traduzido em espanhol ou em mau latim.
Por isso, o grande movimento de tradução do árabe para o latim começou na Espanha no século XII, e Toledo foi seu centro mais ativo. Mas esse movimento teve continuidade em outras cidades da península, como Barcelona, Tarragone, Scgóvia, Leóne Pampelune, alcançando depois os Pireneus para se estabelecer em Toulouse, Béziers, Narbonne, Montepellier e Marselha.
Graças a essas traduções, a Europa pôde conhecer tanto as obras dos filósofos, matemáticos, médicos e astrónomos gregos quanto as de seus comentadores e competidores árabes. Como também escreveu Haskins, "a recepção desse saber pela Europa ocidental representa uma importante guinada na história do pensamento europeu".
(in O Correio da UNESCO, Ano 20, Nº. 2 Brasil, Fevereiro 1992)
Sábado, 3 de Julho de 2010
Carlos LouresJá aqui falei algumas vezes do Estado de Israel e daquilo que penso sobre a legitimidade das pretensões judaicas sobre o território da Palestina. Mas, já agora, volto a dizer – acho que foi uma ignomínia. Com base no que diz um livro e por mais que digam, o Antigo Testamento (ou a Torah), não passa de um livro, os palestinianos foram desapossados das terras, enxotados, como se de um rebanho se tratasse, para campos de refugiados, obrigados a viver como pedintes em terra alheia.
Uma vergonha, uma prepotência da diplomacia britânica que, até ao primeiro quarto do século XX, entendia poder intervir em qualquer parte do mundo, sob qualquer pretexto ou mesmo sem pretexto. Apenas porque sim, porque lhe convinha. Papel hoje competentemente desempenhado pelos Estados Unidos. Naturalmente que os judeus construíram o seu estado, hoje habitado por quase oito milhões de seres humanos e seria outra ignomínia «riscá-lo do mapa», como pretendem os extremistas da causa islâmica. Um erro não se emenda com outro erro. E seria o caso.
Mas, parece ser pecha dos semitas este pendor para o exagero fanático. Porque, etnicamente, os árabes também são semitas e falar-se de anti-semitismo, na acepção de anti-judaísmo ou anti-sionismo, é um erro triplo, humanístico, biológico e linguístico. Fundamentalistas islâmicos reclamam o Al-Andalus como sua pátria ancestral - falamos de uma extensa região da Península Ibérica que cobre o Algarve, a Extremadura, a Andaluzia…
Como podemos ver pelos mapas acima, depende de que época da História estes senhores estão a falar, porque a evolução da Reconquista Cristã foi reduzindo o espaço do Al-Andalus até o transformar no Reino de Granada que, em 1492, os Reis Católicos invadiram e dissolveram. A ideia desta pátria islâmica tem vindo a ganhar força. Embora ainda faça menos sentido, na minha opinião, do que a ideia bizarra do «lar judaico» na Palestina.
Os árabes vieram da Península Arábica – essa é que é a sua pátria ancestral. Povo essencialmente nómada, os territórios que se conquistaram pelas armas, continuam a pertencer aos vencidos. Quando em 27 de Abril de 711 (cumprem-se 1300 anos no próximo ano), Táriq Iba Ziyad, lugar-tenente do governador de Tânger, à frente de nove mil homens desembarcou em Gibraltar não demoraram muito tempo para levar os desorganizados visigodos de vencida.
Em poucos anos atingiram as regiões mais setentrionais, encontrando a resistência de vascões e dos reinos astures. Penetraram em território franco, sendo derrotados em 732 na batalha de Poitiers, ficando detidos do lado ocidental dos Pirenéus. Porém, essa vitória militar não lhes dá o direito de reivindicar o Al Andalus. Os territórios são de quem os habita agora – ou os islâmicos têm um critério para a Palestina e outro para o Al-Andalus?
Como disse, os fundamentalistas islâmicos reclamam como sua pátria ancestral a distante civilização do Al Andalus. Têm-no feito muitas vezes. Um exemplo: quando há três anos, em 11 de Abril de 2007, três islamistas se suicidaram guindo três carros bomba em Argel e matando 30 pessoas, o dirigente salafista Abu Musad Abdel Wadoud disse: “Que entreis com os vossos pés lavados no nosso Al-Andalus despojado, depressa se Alá o quiser”. E comentou logo a seguir: “Que os nossos pés limpos pisem o nosso Al-Andalus raptado e a Quds Jerusalém) violada”.
Voltar ao Al-Andalus, recuperar o seu antigo esplendor. Do que estão falando, de facto, os fundamentalistas actuais, que imagens associam àquela civilização que, durante quase oito séculos, prosperou em grande parte da Península Ibérica? De notar que aquela sociedade seria condenada pelos actuais islamistas, pois era demasiado tolerante e permissiva.
Estudiosos do Islão, perante estas declarações, deram a opinião de que apenas se trata de reivindicar um elemento do imaginário muçulmano coincidente com o momento de hegemonia e pujança da religião. O Al-Andalus foi conquistado apenas oito décadas depois da morte do profeta e o facto de no extremo mais ocidental do mundo muçulmano se tenha criado uma sociedade plenamente integrada nesse mundo, sempre foi visto como sinal da força política religiosa e cultural que o Islão primitivo albergava. No século X, a língua árabe era maioritária entre a população. O latim deixou praticamente de ser usado.
Depois veio a decadência. Os cristãos foram ganhando terreno e o Al-Andalus acabou por não ser mais do que uma nebulosa metáfora que cada qual interpretava a seu gosto. A Al Qaeda olha aquele esplendor para compensar o declive humilhante no qual desde então o Islão se precipitou, declive a que a organização procura pôr um ponto final regressando a uma ideologia de combate e de guerra santa que não está disposta a admitir compromissos.
No seu livro «Os Deserdados», Henry Kamen fala daquela época, salientando como, no século X o território do Al- Andalus – uma quarta parte da Península – era um país totalmente controlado por muçulmanos, sendo o mais poderoso e refinado da Europa ocidental. Era uma civilização marcadamente urbana, onde se destacavam grandes cidades como Córdova ou Granada, com uma avançada organização política e social. Nada tinha a ver com os reinos cristãos do norte, cujas economias assentavam na pecuária e na agricultura. Era uma civilização muito evoluída para a época, mas não podemos reduzir a realidade de oito séculos a uma única imagem. Nem tudo correu bem. Seja como for, durante séculos, umas vezes melhor outras pior, muçulmanos, cristãos e judeus, conviveram pacificamente no Al-Andalus.
O que terá contribuído para a decadência muçulmana? Talvez mais do que em causas religiosas, a explicação se encontre na maneira de exercer o poder, na diferente relação entre governantes e súbditos. Enquanto a sociedade cristã se regia pelo direito civil, a muçulmana era orientada pelo direito religioso. Nos reinos cristãos entre o poder real e o povo existiam espaços que permitiram que se consolidassem as classes emergentes, mercadores, artífices, burgueses.
Entre os muçulmanos, os governantes consideravam-se descendentes do Profeta e no vértice do poder, os ulemas lidavam com os mandatários, o que não permitia fissuras. Era uma estrutura acabada, enquanto que a estrutura social cristã permitia uma permanente autocorrecção.
Por outro lado, entre os muçulmanos, a poligamia produzia numerosos descendentes com aspirações a governar. O mundo muçulmano era governado através da chária, não havendo qualquer diferença entre o poder civil e o religioso. As tensões do mundo cristão com classes a lutar pelos seus interesses e a contestar o poder real, não existiram no mundo muçulmano. O que evitou revoltas mas criou uma certa estagnação e incapacidade de renovação. Não existiu nunca uma classe burguesa que exercesse a sua influência, impondo o seu pragmatismo laico, sobrepondo o espírito de iniciativa e de lucro ao da vontade divina e ao do monarca. Esta terá sido uma das causas da decadência das sociedades islâmicas.
Esta visão, de um Islão desenvolvido, civilizado, tolerante, que é a que nos transmite a leitura de livros como “Os Deserdados, de Henry Kamen ou “As Sandálias do Mestre”, de Adalberto Alves, é frontalmente contrariada pela outra imagem que os fanáticos nos dão, ameaçando, julgando segundo uma religião a que só eles estão submetidos, pessoas de outras confissões ou ateus. Compreende-se que, após o esplendor de há mil anos atrás e a pujança do império Otomano que se lhe seguiu, veio um período de inauditas humilhações, infligidas pelas grandes potências – a Grã Bretanha primeiro e depois os Estados Unidos, e os países ocidentais em geral, que deram força aos judeus e os instalaram numa região de maioria muçulmana.
O terrorismo é a bomba atómica dos pobres e os islamistas usam-no como expressão do seu ódio a um mundo que os escorraçou e humilhou. Mas, se um dia tiverem uma verdadeira bomba nuclear, talvez não hesitem em a lançar sobre Israel. E por isso compreende-se a posição israelita (o que não quer dizer que com ela se concorde). À mínima distracção, ao menor abrandamento da vigilância, poderão ser aniquilados.
A solução seria, em vez de proporcionar um arsenal nuclear a uma das partes, quem tem força – Estados Unidos/Nações Unidas - usá-la para impor a convivência pacífica na Palestina entre muçulmanos, judeus e cristãos. Apreendendo por todo o armamento ofensivo na região e contendo os países árabes vizinhos.
Seguindo o exemplo do nosso Al-Andalus.
Terça-feira, 22 de Junho de 2010
Carlos Leça da Veiga, meu caro amigo:
Parece-me que chegámos àquela encruzilhada em que as nossas respectivas utopias se bifurcam e seguem caminhos diferentes. Vai para 40 anos que nos conhecemos e esta situação ocorre sempre que divergimos (e, pelo menos quando saímos do plano prático, divergimos quase sempre).
Não sei se leste uma carta que, a propósito desta nossa «polémica», o Josep Anton Vidal me endereçou. Ele fazia observações, quanto a mim, muito ponderadas, judiciosas e inteligentes, para mais vindas de um catalão independentista. Destaco esta parte em que, após ter dito que gostaria de ter visto o debate afastar-se dos referenciais históricos, trazer o olhar até ao presente e abri-lo ao futuro, continua:
Creo que con demasiada frecuencia las construcciones mentales sobre el pasado, que aportan tanta profundidad a nuestra conciencia como personas y como ciudadanos, están, por otro lado, tan contaminadas de los vicios y defectos del pasado que, en lugar de ser una lente para contemplar el presente y un trampolín para acometer el futuro, se convierten en una losa o una muralla que nos impide ir más allá. Es como si la historia no sólo nos hubiera legado una realidad de facto, con sus cicatrices y con sus heridas aún abiertas, sino también la mentalidad, el punto de vista, el edificio mental que generó esa realidad. Y nos olvidamos de que nuestro tiempo es distinto, que contamos con un edificio mental y de valores con el que no contaban nuestros antepasados. La democracia es una palabra antigua, pero es apenas una noción incipiente, que aún no ha conseguido liberarse, entre nosotros y tal vez tampoco más allá de nosotros, de la carga asfixiante de valores, criterios y argumentos heredada del pasado. Na minha opinião, a dificuldade em estarmos de acordo tem origem nas lentes com que cada um de nós analisa as situações – tu usas a História como guia, na convicção de que ela se repete e de que é possível utilizá-la na decifração do que nos acontece e na perscrutação daquilo que nos vai acontecer. Conheces a minha metáfora para caracterizar esse método – usar a História como guia, é o mesmo que guiar um carro olhando para o retrovisor.
Por isso valorizas o esplendor civilizacional do Al-Andalus para justificar a lógica da independência da Andaluzia. Eu digo-te que os muçulmanos invadiram um território alheio o colonizaram e, sete séculos depois, foram expulsos. Não é aquilo que achamos que seria justo que viesse a acontecer na Palestina?
Espanhol ou Hispânico, é a mesma palavra e designa habitante da península Ibérica, embora, actualmente, hispânico seja mais aplicado aos latino-americanos. No trajecto do latim
hispanus até
espanhol, há todo um percurso, onde surge
hispaniolu, e depois, já em documentos portugueses, as grafias são diversas –
espanholl, hespanol, espanhol - mas sempre na acepção de habitante da Península Hispânica. Só tardiamente, no século XVII, com Francisco Manuel de Mello, entre outros, a palavra começou a substituir o
castelhano na designação dos súbditos dos reinos vizinhos. Mas isto, que confirmei com a ajuda do “Dicionário Etimológico” do saudoso amigo José Pedro Machado, não tem importância. Não seria por isso que mereceria a pena divergimos.
A tal maneira que temos de encarar as nossas respectivas utopias e de com ela relacionarmos as nossas opiniões, aí sim, reside o problema. Para mim, o País Basco, a Catalunha, a Galiza, a Andaluzia, constituem realidades diferentes e que exigem abordagens diferentes. Os galegos, na sua generalidade, têm consciência da sua cultura, da História, daquilo que os diferencia. Onde me parece estarem divididos é nas soluções que defendem para consagrar essa diferença – há os que querem imediatamente a independência, os que a querem atingir por etapas, os que se satisfazem com o reconhecimento do idioma e da cultura e com a autonomia política de que gozam no seio do estado espanhol – haverá ainda mais matizes. Perante este mosaico, eu, sabendo o que quereria se fosse galego – a independência, claro – não me acho no direito de dizer que esse é o único caminho possível.
Tu, meu caro Leça da Veiga, entendes que o único caminho que merece a pena contemplar é aquele que te (que nos) parece mais correcto – o da separação. Não sei se os galegos considerados no seu conjunto, como povo, desejam essa separação. E não estou também de acordo que nós portugueses tenhamos como missão ser árbitros das nacionalidades. Para mim, essa missão não deve caber a nenhum povo. E não é porque os esquerdalhos se riam, é porque na minha opinião essa função que as superpotências desempenham só deveria caber a uma entidade supranacional de moralidade inquestionável, coisa que a ONU não é.
Não estabeleço fronteiras às tuas utopias. Não queiras que as minhas as não tenham. O escoteiro (com o e não com u, já te explico porquê)* ao forçar a senhora idosa a atravessar a estrada que ela não necessita atravessar, ou pensa que não necessita, está a pôr as regras do escotismo e a sua ânsia de cometer uma boa acção, coisas que só a ele dizem respeito, a uma pessoa que tem as suas próprias necessidades e regras. Os galegos sabem muito bem que têm uma nacionalidade; o escolherem um caminho diferente daquele que te parece correcto não faz que estejam alienados.
O fenómeno da Jugoslávia não deve ser extrapolado para o de Espanha. A Jugoslávia durou uma décadas – Espanha, na acepção de estado espanhol, existe há mais de cinco séculos (de facto; pois de jure somente depois das Cortes de Cádis, em 1812). O exemplo da Jugoslávia e da forma dramática como as nacionalidades foram recuperadas, deve a todo o transe ser evitado pelos galegos e pelos outros povos oprimidos da Península. A Guerra Civil, à escala da História, foi ontem. Há feridas ainda mal fechadas.
Porque acho que a partir daqui, será partir pedra, dou, pelo que me diz respeito, por encerrada a nossa troca de opiniões. Não sem antes dizer o seguinte: lamento muito ter, ao falar de Olivença, referido a tua exigência, numa carta de dias antes, da independência da Galiza. Foi um reforço de argumentação absolutamente desnecessário e que, embora sem qualquer intenção de te atingir, te ofendeu. Peço desculpa, sabendo desde já que com a tua bondade me desculparás.
Como sabemos, as nossas divergências no que se refere às utopias respectivas, nunca nos impediu de estar unidos quando é preciso enfrentar realidades provenientes das utopias dos cérebros doentes que conduzem os destinos, do País e do Mundo.
Um grande e fraterno abraço do
Carlos Loures_____________________________*-
Fui escoteiro. Num grupo filiado na Associação dos Escoteiros de Portugal, a primeira, laica. Para nós, a tradução de scout é escoteiro, cujo étimo seria escota - corda, cabo fixo... Os escuteiros são os membros do Corpo Nacional de Escutas, organização posterior, ligada à Igreja Católica. Para eles o étimo é escuta, pois o general Baden Powell usava uns jovens indígenas como mensageiros e espias (escutas). O que, como calculas, nos tempos da ditadura dava pano para mangas em termos de picardias políticas - escutas... Eu sou escoteiro, porque "escoteiro um dia, escoteiro toda a vida".