Quarta-feira, 22 de Dezembro de 2010

Os dez mais - Academia Galega da Língua Portuguesa

Carlos Loures


Em 6 de Outubro de 2008 foi criada a Academia Galega de Língua Portuguesa, sediada em Santiago de Compostela e presidida pelo Professor José Martinho Montero Santalha. Segundo Montero Santalha, a criação da Academia corresponde a uma ideia do Professor Carvalho Calero que, na década de 80, concebeu o projecto de uma instituição que «mantivesse de modo inequívoco a unidade linguística da Galiza com os outros países de língua portuguesa». A cerimónia de fundação da Academia, de qual pudemos apreciar alguns dos momentos mais importantes no vídeo abaixo, realizou-se no Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela. Foi apadrinhada pelos Professores Malaca Casteleiro e Artur Anselmo, da Academia das Ciências de Lisboa, pelo escritor moçambicano João Craveirinha (filho de José Craveirinha), pelo Professor Carlos Reis, reitor da Universidade Aberta, pelo Professor Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras, pelo Professor Elías Torres Feijó, presidente da Associação Internacional de Lusitanistas e vice-reitor da Universidade de Santiago de Compostela, entre outros.

Como se vê, padrinhos não faltaram à jovem Academia. Ângelo Cristóvão, presidente da Associação promotora da AGLP comentou: «Não podemos dizer que viemos ao mundo sem padrinhos!» E acrescentou: «queremos devolver ao galego o lugar que lhe corresponde, que é o de uma forma do português e não o de um dialecto do castelhano».


Em 23 de Maio de 2009 realizou-se em Lisboa, na Academia das Ciências, uma sessão inter-académica entre as duas entidades. Agora, quando falarmos em países de língua portuguesa, nunca devemos esquecer a Galiza. Somos nove e não oito, como se costuma dizer. Tanto mais que foi ali, na Galiza, que o nosso idioma comum, o galego-português, nasceu. Foi ali que pela primeira vez se falou a nossa língua, a língua de Camões, de Rosalía de Castro e de Fernando Pessoa e de Eduardo Pondal.


No entanto, na Galiza, além dos que defendem a reintegração no português, dos que são pelo acentuar da castelhanização do galego e dos que pugnam por uma via autónoma, ligada à fala popular distanciada do português por oito séculos de deriva, há também quem defenda uma mais versão radical, ainda que, em parte, apoiada na palavra do Professor Carvalho Calero e cientificamente verdadeira. Digo em parte, porque o Professor sempre defendeu a integração do galego no universo da lusofonia – a tal tese radical é a de que o nosso idioma se devia chamar galego e não português.


Vamos tentar saber se esta corrente de opinião é válida. Numa outra crónica, falei aqui um pouco da história da Galiza, um tema que me apaixona.


 Hoje pedi reforços ao professor Ramon Villares e à sua «Historia de Galicia», um livrinho de bolso editado em castelhano, que, há mais de 20 anos (em Agosto de 1988) me foi oferecido por um professor da Universidade de Santiago de Compostela. Ponhamos então a nossa máquina a funcionar.


Não vou recuar tanto no tempo como seria desejável. Jorge Castro (OrCa), num amável comentário ao meu texto anterior sobre este tema, sugere que a irmandade galego-portuguesa poderá ter raízes ancestrais, localizadas para lá da última grande glaciação (Teoria da Continuidade Paleolítica). É uma possibilidade cuja exploração deixo para quem saiba, mas que, a ser provada, nos daria conta de uma afinidade que não deve e não pode ser destruída; muito menos pela gula hegemónica de um estado artificial como o estado espanhol. Por hoje, não recuando tanto, limitar-me-ei a visitar a época em que o condado de Portucale e o da Gallaeciae seguiram caminhos diferentes.


Quando, em 1065, morreu Fernando I de Leão e Castela, reino de que os dois condados eram vassalos, o seu reino foi dividido entre os filhos, ficando D. García com a Galiza, um território que se estendia até ao Mondego, pois Fernando I, o Magno, conquistara aos Mouros Lamego (1057), Viseu (1058) e Coimbra (1064) território que o conde governou entre 1065 e 1070. Deposto D. García e levado preso a Leão, a Galiza ficou transformada numa província de Leão, dirigida por sucessivos condes. Assim, em 1090 foi enviado para a Galiza como conde Raimundo de Borgonha, casado com D. Urraca, uma das filhas de Afonso VI. No ano seguinte, o condado portucalense foi entregue a Henrique de Borgonha, casado com a irmã de Urraca, D. Teresa. Quando Raimundo morreu, em 1107, verificou-se uma profunda crise política em que a nobreza galega participou activamente, tanto a laica ( Pedro Froilaz, conde de Traba), como a eclesiástica (D. Gelmírez. Uma parte desta nobreza aliou-se a D. Urraca, ligando-se à ideia imperial leonesa, enquanto outro grupo defendeu os direitos de Alfonso Raimúndez, filho de Urraca, que em 1109 foi proclamado rei da Galiza.


Porém Alfonso Raimúndez, transformou-se, mercê da sua posição na linha dinástica, em Afonso VII de Castela e Leão, proclamando-se «Imperator totius Hispaniae». De certo modo, foi o último rei da Galiza, pois com ele integrou-se na monarquia leonesa a nobreza galega mais rebelde, representada pela estirpe dos Traba.


O que nos diz respeito sabemos nós bem – Afonso Henriques, primo direito do autoproclamado imperador, queria um reino só para ele, venceu sua mãe, D. Teresa que alinhara com a nobreza galega, prestando vassalagem ao sobrinho, na batalha (ou escaramuça; ou torneio) de São Mamede, em 1128, e proclamou unilateralmente uma independência que só em 1143, pelo Tratado de Zamora, seria reconhecida pelo rei de Leão. Como José Mattoso salienta e Ramón Villares cita, a independência de Portugal não pressupõe qualquer reacção anti-galega, pois entre os que apoiaram o nosso Afonso I estavam famílias galegas, entre as quais a dos Traba, que procurava em Portugal o êxito que na Galiza lhes era negado.


Resumindo – a formação de Portugal obedeceu a causas complexas que remetem para diferenças existentes desde a época romana entre as regiões bracarense e lucense, que constituíam a Galécia. E como Villares sublinha, correspondeu também à «incapacidade da nobreza galega para se constituir em reino próprio desde os primeiros momentos da reconquista»; a expansão territorial portuguesa, seria feita a partir da parte meridional da Gallaecia, enquanto que a região lucense, mais recolhida sobre si mesma, inserida perifericamente na monarquia castelhana, mas ligada à Europa pelo cordão umbilical do Caminho de Santiago, iria desenvolver um conjunto de traços específicos que lhe permitiriam conservar a sua identidade ao longo da história até aos nossos dias.


Nestes séculos de domínio estrangeiro, o galego foi muito invadido por castelhanismos, inquinado foneticamente e não só. Apenas no século XIX, com o Rexurdimento de Rosalía, Murguia, Pondal e tantos outros, a língua e a cultura galegas começaram a recuperar a sua identidade usurpada. Do ponto de vista da ciência linguística não parece existir dúvida de que português e galego nasceram de uma mesma matriz.


Podemos chamar por isso galego-português ao idioma que, sob duas formas dialectais, falamos lá e aqui. Que fique muito claro que quando se fala de reintegrar, não estamos a falar de Portugal anexar politicamente a Galiza, estamos só a falar de uma reintegração na tal matriz comum que quase nove séculos de domínio castelhano na Galiza quiseram apagar. Gostaria muito que a Galiza fosse independente (adoptando o galego, o português ou o galego-português como língua oficial – é um problema dos galegos). Com a certeza, porém, de que chamem o que lhe chamar, as palavras que os galegos pronunciarem serão as mesmas, tenha o idioma que falam o nome que tiver. Serão as mesmas e soarão aos nossos ouvidos como uma língua semelhante à nossa. Mas voltemos ao percurso histórico e ao paralelo fluir do idioma.


Referi-me à língua falada desde a Alta Idade Média nos territórios da antiga província romana da Galécia, uma variante neolatina ou, como diz com maior rigor científico Carvalho Calero, uma forma primitiva do romance hispânico ocidental. Forma que veio a resultar no galego-português (ou galaico-português). Um momento alto da evolução deste idioma é quando, no século XII, a poesia lírica produzida nesta região era escrita na língua que, além de utilizada pelos naturais, ultrapassando as suas fronteiras, chegava a Leão e Castela – as «Cantigas de Santa Maria», do rei castelhano Afonso X, o Sábio, foram escritas em galego-português. Era, pois, uma língua de cultura. No século XII ocorreu a separação de Portugal da coroa leonesa. À época a Galiza gozava de alguma independência relativamente à coroa castelhano-leonesa. Contudo, no século XIV, a intervenção galega a favor de Pedro I de Castela contra Henrique Trastâmara, motivou com a vitória deste, o exílio de muitos galegos em Portugal. Quando a sua nobreza tomou o partido de Joana, «a Beltraneja» ou, como se dizia em Portugal, da «Excelente Senhora» contra Isabel de Castela, a Galiza viu as suas instituições destruídas e a sua aristocracia perseguida, deixando de existir como nação independente.


Muito basicamente, descrevi, com a ajuda do Professor Villares, o momento da separação das duas partes irmãs, em que começou a deriva histórica e consequentemente a linguística. Dizer-se que em Portugal se fala galego é, pois um exagero radical (embora compreensível), é desconhecer o papel que Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões, para referir só alguns nomes, tiveram na criação da língua e na sua fixação em monumentos literários. É esquecer que os portugueses, trezentos anos decorridos sobre a independência, sulcavam os oceanos, descobriam novas terras, criavam uma maneira própria de estar no mundo. Talvez não a melhor, mas própria, em todo o caso.


Por tudo isto e não porque de algum modo a ideia nos ofenda, parece-me um exagero querer que o português se passe a designar por galego, como o pretendem os tais galeguistas radicais. Eles afirmam, em consequência, que em Portugal, no Brasil, em Moçambique se fala galego e que o galego tem, portanto, 200 milhões de falantes. Digo que são radicais porque radicam a sua tese nas raízes profundas e comuns do galego e do português. Porém, penso que o cerne do problema não se situa aí, no nome do idioma – o importante é que a língua da Galiza seja aquela que os galegos queiram como sua. Um dialecto do castelhano todos estamos de acordo que não é. É uma forma diferente de falar português (ou o português uma forma diferente de falar galego)? Penso que tudo aponta para esta hipótese. A decisão só pode ser dos irmãos galegos. Todavia, a viagem já vai longa e por hoje apenas acrescento:


- Bem-vinda ao universo da lusofonia, jovem Academia Galega da Língua Portuguesa!


publicado por Carlos Loures às 02:00
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Quinta-feira, 28 de Outubro de 2010

Dia de Lisboa - Falemos então da lumiosa urbe.

Carlos Loures


Olisipo se chamava antes de ser tomada pelos Romanos, que a baptizaram de Felicitas Julia Olisipo. Os Árabes vieram depois chamaram-lhe Aschbouna. Olisipo, Felicitas Julia, Aschbouna. Tanto faz. É, teimo eu, pois sou quem manda e tudo pode no território desta crónica (já que não mando em nada mais), uma nave orgulhosa. E guardada por dois corvos. Assim dizem as suas armas inspiradas na história, ou, se melhor preferirmos, na lenda de São Vicente, ou talvez mesmo em ambas as cousas.

Segundo a Legenda Aurea, um texto hagiográfico que o frade dominicano Iacopo de Varazze escreveu na Itália do século XIII, nos alvores do quarto século da era Cristo, talvez em 304, um clérigo de nome Vicente, nascido em Huesca, oriundo de uma família ilustre, foi nomeado arquidiácono da diocese de Saragoça, na romana província Tarraconense. O seu superior, o bispo diocesano, que sofria de um defeito na fala, pois seria gago, encarregara Vicente de falar em seu nome aos fiéis. Ouvindo rumores de que as prédicas de Vicente eram demasiado eloquentes e podiam predispor o povo contra o domínio romano, Daciano, o magistrado encarregado de executar as leis imperiais e os éditos de Roma naquela região, mandou que o bispo e o arquidiácono fossem trazidos à sua presença.


Vicente falou pelo bispo gago e por si mesmo, reafirmando as suas convicções. O resultado não foi o melhor: o tartamudo apenas foi desterrado, mas Vicente foi barbaramente torturado em Valência por ordem de Daciano, tendo-lhe sido dilacerada a carne com garfos de ferro em brasa, deitando-o depois os torcionários numa cama feita também de ferro que previamente aqueceram até ficar incandescente. Meteram-lhe depois o torturado corpo num cárcere de reduzidas dimensões, com os pés apertados em cepos de madeira.
Na Legenda Aurea conta-se que, em dada altura, a cela ficou inundada por uma incandescente luminosidade e que as estacas pontiagudas que revestiam o sobrado se transformaram num colorido tapete de flores. Em redor, os anjos entoavam cânticos divinos... Em suma, eu imagino que deve ter sido tudo muito bonito. Neste ponto, um descancarado diabinho que me povoa a mente e que dá pelo nome de lucidez, sussurra-me que o martirizado corpo de Vicente e o seu cérebro atormentado pela tortura, o levaram a estas celestiais alucinações. (…)

Prossigamos. Diz-se que Daciano, ouvindo falar destes prodígios, ainda ordenou que tratassem os ferimentos ao arquidiácono e deixou mesmo que os cristãos o visitassem. Contudo, o mal estava feito – Vicente não resistiu às torturas que sofrera e morreu. O seu corpo destroçado e ensanguentado, embora exposto, por ordem de Daciano, ao apetite das aves de rapina e dos carnívoros necrófagos, permaneceu incorrupto, pois nenhum dos animais que o veio farejar o ousou devorar. Ante este insucesso, Daciano mandou então que os restos mortais de Vicente fossem metidos num saco a que foi atada uma grande pedra, e lançado ao mar. Contudo, também o mar se recusou a tragar o corpo e Vicente foi trazido pelas ondas até à praia. Consta que os pedaços de tecido das suas roupas, manchados de sangue seco, foram depois piamente recolhidos por alguns crentes e, segundo se diz, terão também produzido diversos milagres.

Quando os Árabes ocuparam a Península, no oitavo século da nossa era, o primeiro emir omíada de Córdova, Abderramão I decretou que as igrejas cristãs fossem transformadas em mesquitas e que as relíquias dos santos fossem destruídas. Os despojos mortais de São Vicente foram então sigilosamente trasladados para um cabo no extremo ocidental do Algarve. Al-Idrisi, o geógrafo árabe, apontou mesmo para o origem do topónimo Cabo de São Vicente, no Algarve, o facto de o corpo do santo ali ter estado depositado, escondido e protegido de islâmicas profanações. Segundo a narrativa do cónego Estêvão, no século doze, pensa-se que em 1173, para evitar a profanação por parte dos maometanos que teriam dado com o esconderijo, o corpo de São Vicente foi trasladado do Algarve para Lisboa num navio. Dois dos muitos corvos que, dizia-se, pousavam sobre o secreto túmulo do santo no também chamado Cabo Sacro, vieram até Lisboa vigiando o corpo. (…)


No brasão de armas mais antigo que se conhece da cidade, figura um navio com dois corvos, um postado à ré e outro à proa. El-rei D. Manuel ordenou que o brasão passasse a ser um escudo partido, arvorando de um lado as armas reais e, do outro, em cima, um navio. Em baixo, a esfera armilar, simbolizando o guia que tem orientado as nossas navegações. Mais tarde, voltou a ser apenas de um galeão com as vergas em funeral e ladeado por dois corvos, pois um douto arcebispo de Lisboa disse avisadamente: «Temos de tornar Lisboa ao Santo Mártir por padroeiro seu, e por armas a nau, em que o santo lhe foi trazido, com os dois corvos, que vieram seguindo, em memória dos quais perseveraram sempre nesta sé outros semelhantes». Teve nestas palavras razão o arcebispo: e assim voltaram os dois simpáticos corvos a pousar no brasão de armas da nossa cidade.

Outra curiosa lenda sobre Lisboa, se de lenda se trata, é a que nos conta Damião de Góis – sábio e honrado varão que tenho o privilégio e a honra de conhecer em pessoa e de muito estimar e admirar – na sua Descrição da Cidade de Lisboa (Urbis Olisiponis Descriptio), fala-nos sobre tritões e sereias, dizendo que, segundo Plínio em Naturalis Historiæ, tinha sido visto e ouvido em determinada gruta um tritão a cantar com uma concha, apresentando-se com o aspecto tradicionalmente atribuído aos tritões. Diga-se que o aspecto que lhes era conhecido seria o de possuírem escamas espalhadas por quase todo o corpo. Segundo Góis, ainda «nos nossos dias» existem homens-marinhos, habitantes da área litoral, que apresentam esses vestígios da sua antiga raça.

As sereias eram também frequentemente avistadas. Refere ainda que nos Antigos Arquivos do Reino, de cuja chefia estava nessa altura o douto Damião encarregado, existia ainda um manuscrito de um contrato celebrado entre el-rei D. Afonso, o terceiro de tal nome, e Paio Peres, mestre da Ordem dos Cavaleiros de São Tiago, segundo o qual se determina o imposto a pagar pela referida Ordem pelas sereias e outras espécies animais pescadas nas suas praias. Daqui, acrescenta Damião, «se deduz obviamente que as sereias eram então frequentes nas nossas águas, visto que sobre elas se promulgou uma lei». De tágides, ninfas do Tejo, nos falaram André de Resende e outros jovens poetas, como esse talentoso Luís Vaz, vate de que tanto agora e mui justamente se fala. Lisboa, era terra de muitos e variados prodígios.

Como sempre acontece nestes casos, destrinçar a lenda da verdade histórica, onde começa o nebuloso território de uma e o diáfano império da outra termina, não é tarefa fácil. Por isso, o cronista, para mais se, como eu, for um simulacro de cronista, sujeito a crises de cepticismo, se deve limitar à sua função de descrever aquilo que ao seu conhecimento vem chegando, sem muito cuidar de distinguir a verdade da ilusão, o corpóreo do invisível, o real do irreal. Como alguém que, na praia, vá colhendo elementos: peixes, estrelas-do-mar, medusas, seixos, búzios, espuma, o sibilar do vento, a canção das ondas e o odor a sal, sem pretender estabelecer qualquer diferença entre a natureza fisicamente perene de uns e a constituição, efémera e volátil, dos outros. (…)


Quanto aos corvos, aves geralmente consideradas de mau agouro, talvez por serem negras, mas que os lisboetas carinhosamente adoptaram e passaram a tratar por «vicentes», podemos vê-los às portas de algumas das muitas tavernas da cidade, crocitando as suas filosofices ou dizendo uma ou outra palavra, inconveniente ou mesmo inocentemente obscena.


(Excertos do Antelóquio de O Hortelão de Palavras)
________________

Ouçamos estas


Trovas D´Amigo ao vivo no Festival Andanças




publicado por Carlos Loures às 12:00
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Dia de Lisboa - Manuel Simões e Fausto, falam-nos da Lisboa dos Descobrimentos



Manuel Simões



Não há rio tão ditoso e recusado
como este rio de lis(as) naves,


memória de navegações por cabos
infinitos e praias desoladas:


as viagens do lusíada sempre em fuga.
Mar de palha rasgado no corpo


inquieto de Lisboa, alfeite de nervos
fracturados com seu arsenal de angústia:


(Segunda parte de "O regresso do lusíada" in Canto Mediterrâneo,1987, p. 35).


E o Fausto diz-nos que "O barco vai de saída" (do Álbum Por este Rio Acima, 1982).

publicado por Carlos Loures às 03:00
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Segunda-feira, 30 de Agosto de 2010

A Maria - A Maria nunca mais apareceu

Adão Cruz

Os olhos, vindos do outro lado do mundo, fundos de ausência, casavam o branco e o negro para dizerem o que a boca não conseguia. O nariz afilava de um só traço o rosto magro, e os cabelos errantes fugiam da testa, cada pedaço para seu lado. A pele transluzia uma imagem por detrás dos vidros, imagem baça do avesso da vida.

Uma dor subtil desenhava os lábios maduros, finamente trémulos, como se estivessem prestes a chorar. Nunca alguma lágrima por eles correu ou voou algum beijo. Apenas o cigarro acendia e consumia a sua virgindade.

A Maria olhava-me sempre fixamente, olhos cravados nos meus como que a dizer: - tu entendes-me, tu és capaz de me compreender -. Ela percebia o sim do meu silêncio por baixo dos olhos vencidos.

Conheci duas mulheres iguais à Maria, fotocópias da Maria, ambas se chamavam Maria, uma brasileira e outra francesa, uma pisava o teatro, outra o anfiteatro. Inquilina de soleiras e vãos, a Maria pisava a grande cidade da noite.

As mulheres da fama e da ciência derivavam a vida por entre a lanugem dos cardos e a tangência do sentimento. A mulher da vida era vertical e secante como folha de piteira. A Maria mijona não tinha idade nem tempo, nem antes nem depois, era apenas instante.

Nunca se sentara na mesa do canto fugindo de si mesma. Escolhia sempre a mesa central, desafiando os olhares, vidrando o espaço em seu redor. Comia a sopa, o prato de sempre, como quem tocava violino. Apesar da mão trémula nem um pingo deixava cair no desbotado regaço, sumido de cores pelo uso e abuso. Se moedas cresciam da sopa não dispensava o brande, sua única bebida.

Por detrás do corpo sujo de Maria mordiscava uma beleza intrigante. Tivesse ela banheira e emergiria da espuma, como sereia das águas. Penso que nunca vi a Maria fora deste retrato, para cá da sombra. Por outro lado, tenho a certeza de que já dormi com ela...ou terá sido um sonho?

A Maria nunca mais apareceu. A última vez que a vi não tinha olhos nem boca nem cigarro. Não tinha sopa nem brande, apenas falta de ar. Engolira o violino e a música era uma dispneia sibilante, cântico fúnebre gemido pelas entranhas.

Toquei-lhe no ombro e ela percebeu que eu queria levá-la. Levantou a ponta de um sorriso e esboçou um gesto negativo com a mão. Afastei-me com a sensação de que tinha profanado um sacrário.

A Maria nunca mais apareceu.
publicado por Carlos Loures às 11:00
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Quinta-feira, 29 de Julho de 2010

Academia Galega da Língua Portuguesa

Carlos Loures

Em 6 de Outubro de 2008 foi criada a Academia Galega de Língua Portuguesa, sediada em Santiago de Compostela e presidida pelo Professor José Martinho Montero Santalha. Segundo Montero Santalha, a criação da Academia corresponde a uma ideia do Professor Carvalho Calero que, na década de 80, concebeu o projecto de uma instituição que «mantivesse de modo inequívoco a unidade linguística da Galiza com os outros países de língua portuguesa». A cerimónia de fundação da Academia, de qual pudemos apreciar alguns dos momentos mais importantes no vídeo abaixo, realizou-se no Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela. Foi apadrinhada pelos Professores Malaca Casteleiro e Artur Anselmo, da Academia das Ciências de Lisboa, pelo escritor moçambicano João Craveirinha (filho de José Craveirinha), pelo Professor Carlos Reis, reitor da Universidade Aberta, pelo Professor Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras, pelo Professor Elías Torres Feijó, presidente da Associação Internacional de Lusitanistas e vice-reitor da Universidade de Santiago de Compostela, entre outros.

Como se vê, padrinhos não faltaram à jovem Academia. Ângelo Cristóvão, presidente da Associação promotora da AGLP comentou: «Não podemos dizer que viemos ao mundo sem padrinhos!» E acrescentou: «queremos devolver ao galego o lugar que lhe corresponde, que é o de uma forma do português e não o de um dialecto do castelhano».

Em 23 de Maio de 2009 realizou-se em Lisboa, na Academia das Ciências, uma sessão inter-académica entre as duas entidades. Agora, quando falarmos em países de língua portuguesa, nunca devemos esquecer a Galiza. Somos nove e não oito, como se costuma dizer. Tanto mais que foi ali, na Galiza, que o nosso idioma comum, o galego-português, nasceu. Foi ali que pela primeira vez se falou a nossa língua, a língua de Camões, de Rosalía de Castro e de Fernando Pessoa e de Eduardo Pondal.

No entanto, na Galiza, além dos que defendem a reintegração no português, dos que são pelo acentuar da castelhanização do galego e dos que pugnam por uma via autónoma, ligada à fala popular distanciada do português por oito séculos de deriva, há também quem defenda uma mais versão radical, ainda que, em parte, apoiada na palavra do Professor Carvalho Calero e cientificamente verdadeira. Digo em parte, porque o Professor sempre defendeu a integração do galego no universo da lusofonia – a tal tese radical é a de que o nosso idioma se devia chamar galego e não português.

Vamos tentar saber se esta corrente de opinião é válida. Numa outra crónica, falei aqui um pouco da história da Galiza, um tema que me apaixona.

 Hoje pedi reforços ao professor Ramon Villares e à sua «Historia de Galicia», um livrinho de bolso editado em castelhano, que, há mais de 20 anos (em Agosto de 1988) me foi oferecido por um professor da Universidade de Santiago de Compostela. Ponhamos então a nossa máquina a funcionar.

Não vou recuar tanto no tempo como seria desejável. Jorge Castro (OrCa), num amável comentário ao meu texto anterior sobre este tema, sugere que a irmandade galego-portuguesa poderá ter raízes ancestrais, localizadas para lá da última grande glaciação (Teoria da Continuidade Paleolítica). É uma possibilidade cuja exploração deixo para quem saiba, mas que, a ser provada, nos daria conta de uma afinidade que não deve e não pode ser destruída; muito menos pela gula hegemónica de um estado artificial como o estado espanhol. Por hoje, não recuando tanto, limitar-me-ei a visitar a época em que o condado de Portucale e o da Gallaeciae seguiram caminhos diferentes.

Quando, em 1065, morreu Fernando I de Leão e Castela, reino de que os dois condados eram vassalos, o seu reino foi dividido entre os filhos, ficando D. García com a Galiza, um território que se estendia até ao Mondego, pois Fernando I, o Magno, conquistara aos Mouros Lamego (1057), Viseu (1058) e Coimbra (1064) território que o conde governou entre 1065 e 1070. Deposto D. García e levado preso a Leão, a Galiza ficou transformada numa província de Leão, dirigida por sucessivos condes. Assim, em 1090 foi enviado para a Galiza como conde Raimundo de Borgonha, casado com D. Urraca, uma das filhas de Afonso VI. No ano seguinte, o condado portucalense foi entregue a Henrique de Borgonha, casado com a irmã de Urraca, D. Teresa. Quando Raimundo morreu, em 1107, verificou-se uma profunda crise política em que a nobreza galega participou activamente, tanto a laica ( Pedro Froilaz, conde de Traba), como a eclesiástica (D. Gelmírez. Uma parte desta nobreza aliou-se a D. Urraca, ligando-se à ideia imperial leonesa, enquanto outro grupo defendeu os direitos de Alfonso Raimúndez, filho de Urraca, que em 1109 foi proclamado rei da Galiza.

Porém Alfonso Raimúndez, transformou-se, mercê da sua posição na linha dinástica, em Afonso VII de Castela e Leão, proclamando-se «Imperator totius Hispaniae». De certo modo, foi o último rei da Galiza, pois com ele integrou-se na monarquia leonesa a nobreza galega mais rebelde, representada pela estirpe dos Traba.

O que nos diz respeito sabemos nós bem – Afonso Henriques, primo direito do autoproclamado imperador, queria um reino só para ele, venceu sua mãe, D. Teresa que alinhara com a nobreza galega, prestando vassalagem ao sobrinho, na batalha (ou escaramuça; ou torneio) de São Mamede, em 1128, e proclamou unilateralmente uma independência que só em 1143, pelo Tratado de Zamora, seria reconhecida pelo rei de Leão. Como José Mattoso salienta e Ramón Villares cita, a independência de Portugal não pressupõe qualquer reacção anti-galega, pois entre os que apoiaram o nosso Afonso I estavam famílias galegas, entre as quais a dos Traba, que procurava em Portugal o êxito que na Galiza lhes era negado.

Resumindo – a formação de Portugal obedeceu a causas complexas que remetem para diferenças existentes desde a época romana entre as regiões bracarense e lucense, que constituíam a Galécia. E como Villares sublinha, correspondeu também à «incapacidade da nobreza galega para se constituir em reino próprio desde os primeiros momentos da reconquista»; a expansão territorial portuguesa, seria feita a partir da parte meridional da Gallaecia, enquanto que a região lucense, mais recolhida sobre si mesma, inserida perifericamente na monarquia castelhana, mas ligada à Europa pelo cordão umbilical do Caminho de Santiago, iria desenvolver um conjunto de traços específicos que lhe permitiriam conservar a sua identidade ao longo da história até aos nossos dias.

Nestes séculos de domínio estrangeiro, o galego foi muito invadido por castelhanismos, inquinado foneticamente e não só. Apenas no século XIX, com o Rexurdimento de Rosalía, Murguia, Pondal e tantos outros, a língua e a cultura galegas começaram a recuperar a sua identidade usurpada. Do ponto de vista da ciência linguística não parece existir dúvida de que português e galego nasceram de uma mesma matriz.

Podemos chamar por isso galego-português ao idioma que, sob duas formas dialectais, falamos lá e aqui. Que fique muito claro que quando se fala de reintegrar, não estamos a falar de Portugal anexar politicamente a Galiza, estamos só a falar de uma reintegração na tal matriz comum que quase nove séculos de domínio castelhano na Galiza quiseram apagar. Gostaria muito que a Galiza fosse independente (adoptando o galego, o português ou o galego-português como língua oficial – é um problema dos galegos). Com a certeza, porém, de que chamem o que lhe chamar, as palavras que os galegos pronunciarem serão as mesmas, tenha o idioma que falam o nome que tiver. Serão as mesmas e soarão aos nossos ouvidos como uma língua semelhante à nossa. Mas voltemos ao percurso histórico e ao paralelo fluir do idioma.

Referi-me à língua falada desde a Alta Idade Média nos territórios da antiga província romana da Galécia, uma variante neolatina ou, como diz com maior rigor científico Carvalho Calero, uma forma primitiva do romance hispânico ocidental. Forma que veio a resultar no galego-português (ou galaico-português). Um momento alto da evolução deste idioma é quando, no século XII, a poesia lírica produzida nesta região era escrita na língua que, além de utilizada pelos naturais, ultrapassando as suas fronteiras, chegava a Leão e Castela – as «Cantigas de Santa Maria», do rei castelhano Afonso X, o Sábio, foram escritas em galego-português. Era, pois, uma língua de cultura. No século XII ocorreu a separação de Portugal da coroa leonesa. À época a Galiza gozava de alguma independência relativamente à coroa castelhano-leonesa. Contudo, no século XIV, a intervenção galega a favor de Pedro I de Castela contra Henrique Trastâmara, motivou com a vitória deste, o exílio de muitos galegos em Portugal. Quando a sua nobreza tomou o partido de Joana, «a Beltraneja» ou, como se dizia em Portugal, da «Excelente Senhora» contra Isabel de Castela, a Galiza viu as suas instituições destruídas e a sua aristocracia perseguida, deixando de existir como nação independente.

Muito basicamente, descrevi, com a ajuda do Professor Villares, o momento da separação das duas partes irmãs, em que começou a deriva histórica e consequentemente a linguística. Dizer-se que em Portugal se fala galego é, pois um exagero radical (embora compreensível), é desconhecer o papel que Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões, para referir só alguns nomes, tiveram na criação da língua e na sua fixação em monumentos literários. É esquecer que os portugueses, trezentos anos decorridos sobre a independência, sulcavam os oceanos, descobriam novas terras, criavam uma maneira própria de estar no mundo. Talvez não a melhor, mas própria, em todo o caso.

Por tudo isto e não porque de algum modo a ideia nos ofenda, parece-me um exagero querer que o português se passe a designar por galego, como o pretendem os tais galeguistas radicais. Eles afirmam, em consequência, que em Portugal, no Brasil, em Moçambique se fala galego e que o galego tem, portanto, 200 milhões de falantes. Digo que são radicais porque radicam a sua tese nas raízes profundas e comuns do galego e do português. Porém, penso que o cerne do problema não se situa aí, no nome do idioma – o importante é que a língua da Galiza seja aquela que os galegos queiram como sua. Um dialecto do castelhano todos estamos de acordo que não é. É uma forma diferente de falar português (ou o português uma forma diferente de falar galego)? Penso que tudo aponta para esta hipótese. A decisão só pode ser dos irmãos galegos. Todavia, a viagem já vai longa e por hoje apenas acrescento:

- Bem-vinda ao universo da lusofonia, jovem Academia Galega da Língua Portuguesa!

publicado por Carlos Loures às 01:00
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Quinta-feira, 1 de Julho de 2010

E, no entanto, ela move-se...

Luís Moreira




O nosso amigo Adão Cruz, num belo e elucidativo texto fala-nos no Homem como um ser constituindo um todo, onde o "material" e o "espiritual" são uma e a mesma coisa, sem um não existe o outro e vice-versa. Essa diferença resulta das conexões que existem entre as partes que constituem o todo, há uma "causa-efeito" que funciona sempre, resultado das condições em que se formam, das circunstâncias de cada um e de todos os seres humanos.

Subscrevo inteiramente, não acredito em algo que não se possa explicar, aí estaremos no domínio da Fé, do acredito porque sim, o que não quer dizer que não exista( se existir um ser humano que acredite em Deus, eu acredito em Deus,Saramago dixit). A formação científica do nosso aventador, ainda para mais sendo médico, não poderia deixar de o levar a essa conclusão tão objectiva, tantas foram as vezes em que se viu perante a vida e a morte do seu semelhante, sabendo que para aquela "causa" só há um "efeito", fosse ele um ente que pudesse tudo e muito sofrimento seria evitado. Não há pois nada para além daquilo que está ao alcance da ciência, e mal estaríamos se "um ente que pode tudo" não quisesse!


Há muito, no que me diz respeito, que percebi que eu na minha pequenez sou muito melhor do que "alguem" que pode tudo mas não quer. Seria um ser desprezível. Não parece no entanto, que a riqueza "espiritual" se possa reduzir a resultados "materiais" como a pintura, e a escrita, a música e o amor, o que seria por si só algo de extraordinário, mas que fazem parte do "todo" ser humano, onde tudo nasce e tudo morre, cada um de nós é a vida, o universo. E, no entanto...

Quantas vezes o médico dedicado se confrontou com situaçãoes miraculosas, o mesmo médico que aprendeu a dissecar cadáveres, como os grandes da medicina ensinaram e descobriram, um após outro, os segredos do corpo humano e foram, um a um, afastando preconceitos, doutrinas sem fundo de verdade, bruxedos e "maus olhados"...

O jovem médico alemão que perante uma plateia de "professores" mostrou, nele próprio, que o coração não é mais que um músculo e que se podia trabalhar nele como em qualquer outro orgão, o amor não mora lá; ou o cientista que vai de férias e que quando volta descobre a penincila numas "culturas" que ía deitar fora, salvando milhões de vidas humanas; como a primeira operação a uma grávida, salvando mãe e filho foi feita por um médico à sua própria mulher e, hoje sabe-se, que não tinha conhecimentos cirúrgicos bastantes, há altura, para fazer uma cesariana...

Tudo se explica porque há um sistema "vivo" que encontra respostas para a sua própria sobrevivência, sem o que pereceria como todos os sistemas que não conseguem a autoregeneração? É por isso que nascem os talentos, os homens e mulheres capazes de fazerem o "mundo pular e avançar"?

Eu não acredito em bruxas mas que as há, há...
publicado por Luis Moreira às 13:30
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Sexta-feira, 4 de Junho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo IX

Viagem retardada: Lisboa

Passou-se quase um mês. Percorri entretanto alguns quilómetros de bicicleta, muitos de carro e comboio, mais ainda de avião, por ter que voltar a Paris, onde também fiz uma grande caminhada pelo parque de Saint-Cloud, Marne-la-Coquette, Vaucresson, Bougival, ilha de Chatou e margens do Sena até Colombes, um percurso que cita Guy de Maupassant como Sintra traz sempre Eça de Queirós à memória. A beira e as ilhas do Sena onde escritores, artistas, cocottes, funcionários, comerciantes e burgueses passavam os domingos e o Verão, a Grenouillère onde tomavam banho, o restaurante Fournaise onde se reuniam, que Renoir pintou em O Almoço dos Remadores, que Maupassant evoca, entre outros contos, em La femme de Paul (A mulher de Paul) – e que ainda existe com um aspecto semelhante ao que então tinha. Mudaram os clientes, evidentemente, agora há sobretudo turistas, no entanto atravessar aquele espaço causa ainda a sensação insólita de circular dentro de um quadro de Renoir ou de um conto de Maupassant: uma experiência agradavelmente perturbadora.

Planeava continuar a viagem para Santiago de Compostela no dia 21. Ora na véspera, regressando de casa da minha mãe, subia a R. da Palma na direcção dos Anjos, quando senti um contacto no meu saco. Virei-me. Um homem negro ultrapassou-me, vi vários ciganos à minha volta. Também não me hão-de assaltar aqui no meio da rua, pensei eu. Esqueci-me do incidente até chegar a casa e descobrir, quando procurei a chave, que me faltava a bolsa na qual trazia, entre outras coisas, dinheiro e documentos. Voltei a descer à Mouraria, na esquadra encontravam-se em mudanças, não podiam registar a ocorrência, fosse ao Rossio onde, quando cheguei, encontrei uma fila para assinalar ocorrências do mesmo género. Enquanto esperava conversei com um polícia. A senhora é portuguesa? Não está a viver em Portugal... E explicou que aqueles roubos costumam ser cometidos por romenos que agem em grupo e atacam toda a gente mas muito em particular turistas: os turistas são malucos. Eu quis saber porquê. Andam com o dinheiro e os documentos quase à mostra nas mochilas, só falta convidarem os romenos abrirem e servirem-se. São malucos. Expliquei que os turistas vivem em sociedades nas quais este tipo de violência não existe, argumentando que, enquanto em Paris não conheço ninguém que fosse alguma vez roubado, em Lisboa sou a única que, até agora, havia conseguido escapar – sem valor estatístico, pois compara o incomparável, esta verificação não deixa contudo de ser significativa.


Conclusão: tornei-me uma lisboeta como as outras. Entretanto, quando contei o roubo aos meus amigos, alguns exclamaram: também andas sempre a pé! Ando e quero andar. Um espaço onde não podemos caminhar não é uma cidade: é uma concentração de medos. Conheci isto no Brasil e, embora lá deixasse amigos, não sinto vontade de voltar.

Consequência: no dia 21 às oito e meia da manhã, em vez de partir na direcção de Santarém, dirijo-me para o Areeiro. A polícia recomendou que esperasse quatro dias antes de requerer outro cartão, porém não me agrada a ideia de o meu bilhete de identidade circular por aí nas mãos de romenos; quanto mais entidades oficiais notificarem o roubo, mais descansada me hei-de sentir. No Areeiro dão-me a lista de locais onde posso fazer o cartão único, o mais próximo situa-se nas Olaias, basta virar na primeira rua à direita, contudo um senhor, a quem explicam o mesmo, recomenda-me que não vá. Não aceito a ideia de haver na cidade zonas interditas mas já tenho por ora a minha dose de complicações; dirijo-me à Fontes Pereira de Melo. (Sinto-me de maneira exagerada uma lisboeta como as outras.) A mesma funcionária adverte que, se não me resta qualquer cartão de identidade, devo apresentar um familiar ou duas testemunhas que certifiquem as minhas declarações. Pois... Pai não tenho, filhos também não, o marido é francês – restam o meu irmão, que não está disponível, a minha mãe, que se encontra doente. E, durante o dia, os meus amigos trabalham. Então as impressões digitais? Não servem. Estão lá para quê? Isso não sei, replica a senhora, encolhendo os ombros. Estranho, parece-me. (E terá sem dúvida parecido aos leitores que alguma vez passaram pelos mesmos transes.) Por fim, vencida a dificuldade da identificação, fui atendida na Fontes Pereira de Melo com muita gentileza e eficiência.

Já havia chovido na véspera, choveu durante todo o dia 21, uma chuva por vezes muito forte. Consolei-me com esta evidência: se tivesse partido para Santarém caminharia à chuva – o que, mesmo com impermeável, não tem graça.

A meteorologia previa ainda chuva na quinta-feira dia 22 porém, se eu adiasse, não estaria depois disponível, esperaria durante mais três semanas; e, mesmo então, como estamos no Outono, também talvez chovesse.

Optei por arriscar.
publicado por Carlos Loures às 10:00
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Segunda-feira, 17 de Maio de 2010

Dia das Letras Galegas

Carlos Loures

Comemorando o Dia das Letras Galegas, Estrolabio dedicou toda a sua edição de hoje, 17 de Maio de 2010, à língua, à literatura, à História da Galiza. Não será um acto isolado na nossa orientação editorial – a Galiza, Cabo Verde, o Brasil… todo o espaço lusófono é para nós campo privilegiado de intervenção. Iremos, com frequência, publicar posts sobre temas relacionados com os países onde se fala o português, ou como dizia Carolina Michaëlis, onde se fala o galego-português.

Nesta irmandade de 200 milhões de falantes, os galegos são os nossos mais antigos irmãos, a sua história e a sua língua encontram-se a montante da nossa história e do idioma que falamos. Circunstâncias políiticas, originaram uma deriva que levou a Galiza a ser aculturada durante muitos séculos. Hoje, muitos intelectuais galegos querem integrar o universo lusófono. Devemos abrir-lhes os braços e apoiar, sem reservas, esse desiderato. As desconfianças devemos guardá-las para quem, aproveitando frustrações regionais manipuladas por caciques, pretende anexar o Norte do nosso País, criando algo a que chamam «região transfronteiriça» e que não tem qualquer suporte histórico ou cultural – sujas manobras de oportunistas. Porque a união de Portugal com a Galiza já existe e é de natureza cultural. No campo político terão de ser os galegos a decidir o seu destino,. Enquanto na sombra se desenvolvem estas manobras, com toda a transparência avança serenamente o projecto da integração do galego no espaço da lusofonia. Peço a vossa atenção para o vídeo que se segue.



Em 6 de Outubro de 2008 foi criada a Academia Galega de Língua Portuguesa, com sede em Santiago de Compostela e presidida pelo Professor José Martinho Montero Santalha. Segundo ele, a criação da Academia corresponde a uma ideia do Professor Carvalho Calero que, na década de 80, concebeu o projecto de uma instituição que «mantivesse de modo inequívoco a unidade linguística da Galiza com os outros países de língua portuguesa». A cerimónia de fundação da Academia, da qual vimos alguns momentos, realizou-se no Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago. Foi apadrinhada pelos Professores Malaca Casteleiro e Artur Anselmo, da Academia das Ciências de Lisboa, pelo escritor moçambicano João Craveirinha (filho de José Craveirinha), pelo Professor Carlos Reis, reitor da Universidade Aberta, pelo Professor Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras, pelo Professor Elías Torres Feijó, presidente da Associação Internacional de Lusitanistas e vice-reitor da Universidade de Santiago de Compostela, entre outros. Padrinhos não faltaram. Ângelo Cristóvão, presidente da Associação promotora da AGLP comentou: «Não podemos dizer que viemos ao mundo sem padrinhos!» E acrescentou: «queremos devolver ao galego o lugar que lhe corresponde, que é o de uma forma do português e não o de um dialecto do castelhano». Em 23 de Maio de 2009 realizou-se na Academia das Ciências de Lisboa, uma sessão as duas entidades. Agora, quando falarmos em países de língua portuguesa, não devemos esquecer a Galiza. Somos nove e não oito países. Foi na Galiza, que o galego-português, nasceu. Foi ali que pela primeira vez se falou a nossa língua, a língua de Camões, de Rosalía de Castro e de Fernando Pessoa.


No entanto, na Galiza, além dos que defendem a reintegração do galego no português, dos que são pelo acentuar da sua castelhanização e dos que pugnam por uma via ligada à fala popular distanciada do português por oito séculos de deriva, há também quem defenda uma versão radical, ainda que, em parte, apoiada na palavra do Professor Carvalho Calero e cientificamente verdadeira. Digo em parte, porque o Professor sempre defendeu a integração do galego no universo da lusofonia – a tal tese radical é a de que o nosso idioma se devia chamar galego e não português. Tentando saber se esta corrente de opinião é válida, pedi ajuda ao professor Ramon Villares e à sua «Historia de Galicia», um livrinho de bolso editado em castelhano, que, há mais de 20 anos, me foi oferecido por um professor da Universidade de Santiago de Compostela.

Diz-se que a irmandade galego-portuguesa poderá ter raízes localizadas para lá da última grande glaciação (Teoria da Continuidade Paleolítica). É uma possibilidade cuja exploração deixo para quem saiba, mas que, a ser provada, nos daria conta de uma afinidade que não deve e não pode ser destruída. Por hoje, limitar-me-ei a visitar a época em que o condado de Portucale e o da Gallaeciae seguiram caminhos diferentes. Quando, em 1065, morreu Fernando I de Leão e Castela, reino de que os dois condados eram vassalos, o seu reino foi dividido entre os filhos, ficando D. García com a Galiza, um território que se estendia até ao Mondego, pois Fernando I, o Magno, conquistara aos Mouros Lamego (1057), Viseu (1058) e Coimbra (1064) território que o conde governou entre 1065 e 1070. Deposto D. García e levado preso a Leão, a Galiza ficou transformada numa província de Leão, dirigida por sucessivos condes. Assim, em 1090 foi enviado para a Galiza como conde Raimundo de Borgonha, casado com D. Urraca, uma das filhas de Afonso VI. No ano seguinte, o condado portucalense foi entregue a Henrique de Borgonha, casado com a irmã de Urraca, D. Teresa. Quando Raimundo morreu, em 1107, verificou-se uma profunda crise política em que a nobreza galega participou activamente, tanto a laica ( Pedro Froilaz, conde de Traba), como a eclesiástica (D. Gelmírez. Uma parte desta nobreza aliou-se a D. Urraca, ligando-se à ideia imperial leonesa, enquanto outro grupo defendeu os direitos de Alfonso Raimúndez, filho de Urraca, que em 1109 foi proclamado rei da Galiza. Porém Alfonso Raimúndez, transformou-se, mercê da sua posição na linha dinástica, em Afonso VII de Castela e Leão, proclamando-se «Imperator totius Hispaniae». De certo modo, foi o último rei da Galiza, pois com ele integrou-se na monarquia leonesa a nobreza galega mais rebelde, representada pela estirpe dos Traba.

Sabemos como Afonso Henriques, primo direito do autoproclamado imperador, queria um reino só para si. Venceu sua mãe, D. Teresa que alinhara com a nobreza galega, prestando vassalagem ao sobrinho, na batalha (escaramuça, torneio) de São Mamede, em 1128, e proclamou unilateralmente uma independência que só em 1143, pelo Tratado de Zamora, seria reconhecida pelo rei de Leão. Como Mattoso salienta e Villares cita, a independência de Portugal não pressupõe uma reacção anti-galega, pois entre os que apoiaram o nosso Afonso I estavam famílias galegas, entre as quais a dos Traba, que procurava em Portugal o êxito que na Galiza lhes era negado.

Assim, a formação de Portugal obedeceu a causas complexas que remetem para diferenças existentes desde a época romana entre as regiões bracarense e lucense, que constituíam a Galécia. Como Villares sublinha, correspondeu à «incapacidade da nobreza galega para se constituir em reino próprio desde os primeiros momentos da reconquista»; a expansão territorial portuguesa, seria feita a partir da parte meridional da Gallaecia, enquanto que a região lucense, mais recolhida sobre si mesma, inserida perifericamente na monarquia castelhana, mas ligada à Europa pelo cordão umbilical do Caminho de Santiago, iria desenvolver um conjunto de traços específicos que lhe permitiriam conservar a sua identidade ao longo da história até aos nossos dias.

Nestes séculos de dependência, o galego foi muito invadido por castelhanismos, inquinado foneticamente e não só. Apenas no século XIX, com o Rexurdimento de Rosalía, Murguia, Pondal e tantos outros, a língua e a cultura galegas começaram a recuperar a sua identidade usurpada. Do ponto de vista da ciência linguística não parece existir dúvida de que português e galego nasceram de uma mesma matriz. Podemos chamar por isso galego-português ao idioma que, sob duas formas dialectais, falamos lá e aqui. Que fique muito claro que quando se fala de reintegrar, não estamos a falar de Portugal anexar politicamente a Galiza, estamos só a falar de uma reintegração na tal matriz comum que quase nove séculos de domínio castelhano na Galiza quiseram apagar. Gostaria muito que a Galiza fosse independente (adoptando o galego, o português ou o galego-português como língua oficial – é um problema dos galegos). Com a certeza, porém, de que, chamem o que lhe chamar, as palavras que os galegos pronunciarem serão as mesmas, tenha o idioma que falam o nome que tiver. Serão as mesmas e soarão aos nossos ouvidos como uma língua semelhante à nossa. Mas voltemos ao percurso histórico e ao paralelo fluir do idioma.

Referi-me à língua falada desde a Alta Idade Média nos territórios da antiga província romana da Galécia, uma variante neolatina ou, como diz com rigor científico Carvalho Calero, uma forma primitiva do romance hispânico ocidental. Forma que veio a resultar no galego-português. Um momento alto da evolução deste idioma foi quando, no século XII, a poesia lírica produzida nesta região era escrita na língua que, além de utilizada pelos naturais, ultrapassando as suas fronteiras, chegava a Leão e Castela – as «Cantigas de Santa Maria», do rei castelhano Afonso X, o Sábio, foram escritas em galego-português. No século XII ocorreu a separação de Portugal da coroa leonesa. À época a Galiza gozava de alguma independência relativamente à coroa castelhano-leonesa. Contudo, no século XIV, a intervenção galega a favor de Pedro I de Castela contra Henrique Trastâmara, motivou com a vitória deste, o exílio de muitos galegos em Portugal. Quando a sua nobreza tomou o partido de Joana, «a Beltraneja» ou, como se dizia em Portugal, da «Excelente Senhora» contra Isabel de Castela, a Galiza viu as suas instituições destruídas e a sua aristocracia perseguida, deixando de existir como nação independente.

Muito basicamente, descrevi, com a ajuda do Professor Villares, o momento da separação das duas partes irmãs, em que começou a deriva histórica e consequentemente a linguística. Dizer-se que em Portugal se fala galego é, pois um exagero radical (embora compreensível), é desconhecer o papel que Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões, para referir só alguns nomes, tiveram na criação da língua e na sua fixação em monumentos literários. É esquecer que os portugueses, trezentos anos decorridos sobre a independência, sulcavam os oceanos, descobriam novas terras, criavam uma maneira própria de estar no mundo. Talvez não a melhor, mas própria, em todo o caso.

Por tudo isto e não porque de algum modo a ideia nos ofenda, parece-me um exagero querer que o português se passe a designar por galego, como o pretendem os galeguistas radicais, afirmando que em Portugal, no Brasil, em Moçambique se fala galego e que o galego tem, portanto, 200 milhões de falantes. São radicais porque baseiam a sua tese nas raízes profundas e comuns do galego e do português. Porém, o cerne do problema não se situa aí, no nome do idioma – o importante é que a língua da Galiza seja aquela que os galegos queiram como sua. Uma língua que não é um dialecto do castelhano. Será uma forma diferente de falar português. Ou o português uma forma diferente de falar galego.

E, assim, encerramos a nossa comemoração do Dia das Letras Galegas. Não sem antes afirmar: o Estrolabio, todos os dias está aberto às letras galegas.
publicado por Carlos Loures às 23:55
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