Júlio Conrado há muito que se tornou conhecido na literatura portuguesa contemporânea, sobretudo depois dos romances Era a Revolução (1977), Maldito entre as Mulheres (1999) ou Desaparecido no Salon du Livre (2001), saborosa narrativa de intenção satírica e que, como obra literária, ganharia maior densidade de análise se fosse menos explícita a personagem objecto de escárnio. Depois disso, ainda publicou, entre outros, o romance Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira de 2006) e agora Barbershop (Lisboa, Ed. Presença, 2010), título de algum modo provocatório mas que se insere num contexto considerado cosmopolita como Cascais (Cascale no romance), espaço onde evolui a representação romanesca, embora com ramificações em Lisboa ou na ilha de Armona, em Olhão, referência esta que evoca sons e odores que a semântica da memória traz à superfície do texto: “era o cheiro urbano, lavado, de uma cidade, outrora vila (Ai Vila de Olhão/ da Restauração…Olá, Zeca!)”, uma espécie de fronteira odorífera para o narrador/autor (pp.98-102).
Apesar do indicador do título, não é a barbearia o espaço privilegiado para o desenvolvimento das acções. Numa delas, de nome afrancesado “Ao Corte Superior”, que antecede a designação moderna, tem por assim dizer início a estória que culminará de modo trágico no interior da outra barbearia (“A Brilhante”), ambas dirigidas, em épocas distintas, pelo barbeiro Diamantino Neto, instrumento do jogo perverso do destino trágico. De resto, as acções mais significativas têm lugar em alcovas (Bairro Alto, em Lisboa; Condomínio, em Cascais; ilha de Armona, de que já se falou) até porque o romance acaba por ter o seu núcleo narrativo nas duas relações sentimentais do protagonista Rogério Bordalo, que desaguam no casamento e viuvez no primeiro caso e divórcio no segundo, arquitectado no seguimento da traição de Bordalo com a brasileira que lhe promoveu a “barbershop”, traição recíproca como vingança e armadilha preparadas pela mulher. Curiosamente até, neste sistema que conduz à situação picaresca de uma personagem socialmente desqualificada, são as mulheres que saem vencedoras, se nos lembrarmos que a segunda, “que não suporta o corneio de homem a quem pague para o ter em exclusivo” (p. 109), era sócia honorária do chamado “Movimento Feminista Global, Sector Donas de Casa Prontas para Tudo”, que a orientaram no que o movimento representa como “ataque ao machismo”.
Romance polifónico na medida em que a sua modelização textual assenta na pluralidade de registos discursivos – e até linguísticos: notável o repositório de termos da gíria e de outras formas da cultura popular -, nem sempre as acções narradas correspondem ao princípio da verosimilhança. Este aspecto, sobretudo evidente nas referências ao poeta F.F., residente em Cascais, a quem é comunicada a atribuição do Prémio Nobel da Literatura (com a consequente recusa) e na surpresa quanto ao percurso ideológico e cultural do barbeiro, explica-se pela operação textual própria do género – trata-se, afinal, de um romance – com a escolha do Autor pela situação paródica, isto é, pela condução de partes essenciais da narrativa em termos irónicos, pondo em evidência a crítica ao modelo, de resto um procedimento já anteriormente experimentado por Júlio Conrado, no já citado Desaparecido no Salon du Livre, por exemplo.
Destruir para tudo recomeçar foi o modelo primigénio que o Homem, na sua intolerável estultícia, ainda não aprendeu a sublimar. E, no entanto, se o artifício da Arca teve origem na violência do mundo, tudo podia ter acabado nesse preciso momento, até porque as gerações futuras só recuperaram o ciclo da desarmonia, inspiradas que foram pela bíblica confusão das línguas ou caos instituído.
Nem se percebe o porquê de tanta piedade conferida a tantos e tantos amadores da violência do após-dilúvio; e a radical maldição sobre os que viveram antes.
Deus devia saber que, na Arca, acabaria por germinar a semente do mal; e que os que quis salvar traziam no sangue a sede do ódio, da dor infinita que se sedimentou ao longo dos tempos: corpo de fragmentos que tem simultaneamente a sugestão do mito e da História, o fascínio da génese e da catástrofe.
Quem visita a Itália e apanha, por acaso, um transporte urbano em qualquer cidade,encontra, com frequência, no interior dos autocarros, um cartaz com a indicação de que os “portugueses” apanhados sem bilhete serão severamente multados. Para quem não conhece o uso linguístico do termo, pode parecer uma forma de racismo primário e foi assim que o cônsul de Portugal de Milão o entendeu, há já alguns anos, ao acusar o Município de Vicenza, que anunciava explicitamente nos autocarros ter declarado guerra aos “portugueses”. Ao nosso bem-intencionado cônsul valeu, então, um semáforo vermelho da conhecida revista “Espresso”, mimoseando ironicamente o cônsul por ter interpretado à letra o sentido figurado da uma fórmula consolidada e frequente na mitologia italiana.
Como já perceberam, “portugueses” tem em italiano o significado de borlistas, os que tentam não pagar bilhete, geralmente nos transportes, mas o termo já se estendeu a espectáculos e toda a espécie de manifestações onde se tenha que pagar o ingresso. Nos relatos de futebol através da rádio era frequente ouvir o cronista referir que estavam no estádio não sei quantos mil espectadores pagantes mais uns tantos “portugueses”, que, neste caso, eram os habituais convidados e não pagavam bilhete.
O meu primeiro contacto com a expressão utilizada neste sentido e que, nessa altura, escapava ao meu entendimento, já vem dos anos 70 quando, na cidade de Bari, li na primeira página de um jornal local que tinha sido preso um “português” por ter tentado saltar o muro duma esplanada de cinema. Não recordo se o termo estava transcrito entre aspas; sei que fiquei alarmado e dei comigo a cogitar se ali prendiam os portugueses por uma questão como esta e se a infracção era tão grave que merecia vir na primeira página, de forma tão sensacionalista. Bom, não era bem assim: o homem tentara não pagar bilhete, mas se não era português porque é que o consideravam como tal?
A história é antiga e a proveniência não é ainda segura. Deve ter começado em Roma mas alargou-se a todo o país. São várias as explicações mas, como veremos, não tem implicações racistas em relação aos cidadãos de Portugal. Os dicionários, em geral, aludem a um episódio que remonta ao tempo de D. João V (século XVIII): a embaixada de Portugal teria organizado um espectáculo no Teatro Argentina de Roma, ao qual podiam assistir sem convite só os portugueses. A voz mais corrente, porém, atribui a expressão a tempos mais remotos, justamente ao ano de 1514, quando D. Manuel mandou a famosa embaixada do elefante branco ao Papa Leão X, o qual, senhor do poder temporal em toda a cidade, teria decretado que os portugueses tinham entrada livre nos lugares (hospedarias, teatros, etc.) onde todos os outros só tinham acesso mediante pagamento. É claro que, tanto num caso como no outro, os borlistas eram os romanos que se faziam passar por portugueses e, portanto, só aos italianos cabe por inteiro aquele epíteto, agora eventualmente alargado, com o turismo de massa, a utentes de outras nacionalidades. Mas, como é evidente, a quase totalidade dos chamados “portugueses”, isto é, borlistas, são os italianos.
Ultimamente, segundo notícias recentes, este atributo passou a contemplar também outro povo e precisamente os espanhóis. Segundo li no “Corriere della Sera” há algumas semanas, e a notícia era apresentada de forma irónica mas enfática, os espanhóis começaram a aplicar um truque - tão difundido que mereceu as honras de notícia do “Corriere”- que tem a ver com a lei de proibição de fumar nos lugares públicos (cafés, restaurantes, etc.). A certa altura o cliente levanta-se da mesa, vem até à porta para fumar o seu cigarro e, com ar distraído, sai sem pagar a conta. Não conheço a realidade espanhola para avaliar se tal hábito é assim tão generalizado. Para o “Corriere” não havia dúvida, de tal modo que evidenciava a notícia com um título que confirma o uso arreigado da expressão “português”: “Mas afinal os espanhóis também são ‘portugueses’”.Não nos faltava mais nada…
Recentemente, para justificar aspectos controversos das festas de Monsaraz, e à semelhança do caso de Barrancos, falou-se de novo das tradições populares e do seu peso na cultura e na identidade. A questão da tradição foi invocada evidentemente pelos defensores das cerimónias sangrentas, o que, desde logo, introduz o choque entre as ideias e os costumes tradicionais, em contraposição com os modos de vida introduzidos numa dada sociedade e que entram em conflito com a chamada tradição.
De facto, como todos sabemos, as sociedades que existem no mundo de hoje diferem todas dos tipos tradicionais de ordem social que dominaram o mundo, o que distingue as sociedades modernas das sociedades pré-modernas. Daí que, em meu entender, a defesa intransigente da tradição ancestral para reivindicar um acto que, à partida, escapa ao que se considera racional, conduz inevitavelmente a uma visão estática, inerte, da cultura, por oposição às culturas progressivas, até porque, quer se queira quer não, a mudança social influi sempre no desenvolvimento cultural humano.
Deste modo, e embora pareça um paradoxo, a tradição faz-se fazendo, o que significa que os actos acumulados pela sedimentação se tornam irrepetíveis, são sempre novos porque outros, por mais que se pretenda institucionalizar a tradição. Esta avança com a evolução das mentalidades, das técnicas, da formação do gosto. Por exemplo, o banho do dia de S. Bartolomeu, praticado em algumas comunidades com a convicção de que previne a gaguez e o medo, baseia-se nessa convicção para justificar um acto de violência associado a uma boa dose de atitude folclórica. O que acontece é que, quanto mais circunscrita e fechada for a tradição, menos possibilidade tem de evoluir ou de se renovar, apoiando-se por vezes, com orgulho e obstinação acríticos, na mentalidade de um país (ou de uma região) que ainda não deu o salto para a frente e que continua a ter no passado os seus pontos de referência (labirintos da saudade e quejandos).
A esta visão do mundo anda associada a mania, cada vez mais generalizada, da recuperação dita histórica da época medieval, inventando gastronomia, cortejos, modelos monárquicos, tudo em nome da tradição, esquecendo-se que os objectos e os actos sociais “se criam” para satisfazer as necessidades de uma determinada organização da sociedade e que a esta ficam irremediavelmente ligados. Repropor hoje, em nome do turismo de massas, um arremedo das ceias medievais ou a exaltação anacrónica e obsoleta do fausto monárquico não me parece uma boa maneira de produzir cultura, sobretudo porque não se inscreve nestas acções o contexto em que se produziam, único modo de oferecer uma possibilidade de análise e de interpretação críticas de tais representações que, ainda por cima, agravam os orçamentos depauperados das autarquias.
E, já agora, dito aqui entre parênteses, quando deixaremos de ter os contos infantis ligados às figuras “tradicionais” dos reis, das princesas, dos duendes, das fadas, etc.? É uma prática quanto a mim perversa, na medida em que se constrói um imaginário infantil que a criança terá mais tarde que remover.Mas voltemos à tradição.
Em termos sociológicos, é evidente que se deve evitar o etnocentrismo, isto é, a tendência para julgar as outras culturas segundo os parâmetros do sistema de referência que utilizamos. Mas as sociedades humanas nunca se encontram isoladas e, como já defendeu uma autoridade como Lévi-Strauss, a noção de diversidade cultural não deve ser concebida de maneira estática ou estacionária no tempo, como se cada cultura ou cada sociedade se tivesse desenvolvido no isolamento de todas as outras. É por isso que certa antropologia e sociologia portuguesas se manifestam numa perspectiva que me parece arqueológica, até porque, como tudo na vida, os actos humanos se produzem progredindo, inovando, sem ficarem agarrados à estratificação dos fósseis, o que significa que, deste modo, têm mais possibilidade de fugir à eventual irracionalida
Com este texto de Manuel Simões, reabrimos este dossiê evento, uma iniciativa lançada por Sílvio Castro. De lembrar que a tréplica de Carlos Loures a Sílvio Castro sobre as origens da Literatura Brasileira será apresentada nesta segunda fase.
A literatura moçambicana é essencialmente um fenómeno do século XX, se considerarmos que a primeira manifestação colectiva de carácter literário partiu do núcleo cultural da então “Casa dos Estudantes do Império”, criada em Lisboa, com a publicação de uma antologia poética, “Poesia em Moçambique”, em 1951. Antes desta data houve evidentemente tentativas, ainda que tímidas, de dar expressão literária ao real moçambicano e, nessa perspectiva, pode aludir-se a Campos de Oliveira, poeta de origem e vivência moçambicana (nascido na ilha de Moçambique em 1847), o qual, pelo menos com o poema “O Pescador de Moçambique” insere um discurso de protesto no espaço colonial e cuja motivação anda à volta da diferença racial :” Eu nasci em Moçambique,/ de pais humildes provim,/ a cor negra que eles tinham/ é a cor que tenho em mim”.
Este problema volta a aparecer nos escritos de princípio do século XX, sendo um bom exemplo Rui de Noronha, que colabora já nos anos 30 no jornal “O Brado Africano”, de Lourenço Marques, com alguns textos onde emerge a “dor de ser preto” ligada ao “sentimento de africanidade”, um traço distintivo que começou a aparecer, com alguma insistência, na produção indígena até ao emergir de Noémia de Sousa que, no dizer de Manuel Ferreira, “ultrapassa de uma e por todas as vezes, o precursor Rui de Noronha. É dela o poema “Sangue negro”, modelo de muitos discursos posteriores, e não só em Moçambique: “Ó minha África misteriosa, natural/ minha virgem violentada!/ Minha Mãe!”.
Também a publicação “Itinerário” (1941-1955) deu voz ao tema do negro num contexto social em conflito, o que conflui na tomada de consciência do intelectual dividido pelo sangue, pela cultura (sem esquecer os fenómenos típicos de aculturação) e por uma geografia afectiva que acabariam por modelar a consciência nacional e a própria luta de libertação contra os espinhos pungentes representados pelos mecanismos da colonização.
o Ano Novo. Para se irem preparando leiam este poema que nos foi enviado pela Augusta Clara e pelo Manuel Simões.
Receita de ano novo
Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987)
Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido talvez ou sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?)
Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumidas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade vem ao Terreiro da Lusofonia
trazendo "O amor natural"
Manuel Simões e Carlos Loures
O grande poeta brasileiro (1902-1987) é por demais conhecido e a sua obra (lembremos apenas Sentimento do Mundo ou A Rosa do Povo) faz parte do património das literaturas de língua portuguesa. Há uma dimensão, porém, não muito frequentada pela crítica e que se refere a um volume de poesia, O Amor Natural, até pelo modo, quase clandestino, como foi publicado. Em Agosto de 1985, a um jornalista que lhe pedia notícias sobre o livro, Drummond respondeu-lhe que não tinha intenção de publicar os seus versos eróticos, receando que o leitor os considerasse pornográficos.
Na verdade, o volume já tinha sido publicado em 1981 numa edição reservada de apenas dois exemplares, um dos quais entregue ao escritor argentino Manuel Graña Etcheverry, crítico literário e genro do poeta. O outro exemplar foi submetido à apreciação de outros amigos e estudiosos, que o avaliaram com apreço, mas Drummond continuou a mantê-lo em silêncio.
Só em 1992, cinco anos depois da morte do Autor, é que se publicaram os poemas e logo nesse ano saiu uma edição holandesa e outra portuguesa. Estava desfeito o temor do poeta sobre o modo como os brasileiros teriam recebido o livro (Prémio Jabuti para o melhor livro do ano) e, de resto, é surpreendente que o Drummond irreverente e anticonformista tivesse tido receio de transgredir os códigos culturais dos leitores e as convenções sociais pequeno-burguesas de que ele tantas vezes escarneceu na sua obra.
Nos quarenta poemas da colectânea, todos dedicados ao tema de Eros, o leito parece substituir Itabira (onde nasceu o poeta) para se tornar o lugar onde o amor exerce o seu poder para reconstituir a perdida unidade do Homem.
De O Amor Natural transcreve-se aqui o poema de abertura:
Quatro poetas falam de Coimbra e do Mondego - Coimbra, berço de movimentos literários, é fonte de inspiração para canções e poemas - é a cidade-poesia.
Carlos de Oliveira
ELEGIA DE COIMBRA
Gela a lua de março nos telhados e à luz adormecida choram as casas e os homens nas colinas da vida.
Correm as lágrimas ao rio, a esse vale das dores passadas, mas choram as paredes e as almas outras dores que não foram perdoadas.
Aos que virão depois de mim caiba em sorte outra herança: o oiro depositado nas margens da lembrança.
(in Mãe Pobre, 1945).
Manuel Simões
ANTI-ELEGIA DO MONDEGO
Era um tempo de arbítrio, pesado na memória, como um estigma, um tempo que a convivência não tolera, águas claras que não reconhecemos senão como atavio proscrito, irreconciliável com este nosso contemporâneo rio de argila. Dizem os antigos que as barcas serranas desciam então o leito, penetravam dentro da cidade com sua lenha e carqueja e que as mulheres da Ceira, estas tímidas mulheres de negro, traziam nelas as suas trouxas de roupa. As barcas aportavam aqui junto à portagem, com seus côncavos repletos de fadiga, que a cidade trocava por umas tantas moedas ou panos, o sabão da semana ou o linho branco e raro para casar os filhos.
Camões ignora tudo isto, a palavra castigada sai-lhe como confidência, o queixume ou lamento do amor não provado. E o desastre de campos devastados pela cheia, os laranjais submersos pouco a pouco, a água subindo sem apelo, a inquyietação nas casas baixas de terracota? E o alastrar progressivo das areias, a outra face deste rio cíclico, tão depressa indomável como inexistente?
Rio: onde está o teu fulgor antigo, os devaneios das serenas águas que a canção estimula sob o assombro do reu povo? Pedro e Inês são estátuas mortas, definitivamente pedra e mágoa por terem ocultado o clamor de teus campos, adjacentes ao incontido e ardoroso respirar do espanto.
(in Crónica Segunda, Nova Realidade, Tomar, 1976)
Sílvio Castro
C O I M B RA
Não olho o rio que corre apesar de meu descuido; cuido d’outro e subo por camino duros. Ao lado da Sé Velha quieta no longo tempo vivido das janelas do Conservatório trombas pistões trombetas sufocam com vozes da clave de sol o tímido falar em fá de um piano: mais sol ré mi fá sol lá si dó se exalta no ar, mais silencioso se faz o diluído das teclas que se transformam do sol ao dó dó dó –
No alto das subidas de quebra costas a Universidade escuta a sua voz secular.
(in Gira Mu(o)ndo, Rio de Janeiro, 2003)
Manuel Alegre
FLORES PARA COIMBRA
Que mil flores desabrochem. Que mil flores (outras nenhumas) onde amores fenecem que mil flores floresçam onde só dores florescem.
Que mil flores desabrochem. Que mil espadas (outras nenhumas não) onde mil flores com espadas são cortadas que mil espadas floresçam em cada mão.
Que mil espadas floresçam onde só penas são. Antes que amores feneçam mil flores desabrochem. E outras nenhumas não.
Por circunstâncias várias, um escritor pode pertencer a duas literaturas, sendo, por vezes, até difícil determinar a qual está mais directamente ligado. O método para essa determinação costuma ter em conta três factores: a nacionalidade, a língua que veiculou a escrita e o tema privilegiado no acto de criação literária. É por isso que Gil Vicente e Francisco Manuel de Melo, por exemplo, constam dos manuaiis de literatura espanhola, porque ambos escreveram em castelhano, mas confesso que a primeira vez que constatei esse facto, tido como incontroverso, a minha perplexidade foi espontânea, como se a literatura espanhola se quisesse “apoderar” de dois autores portugueses. Não já pela língua, como é óbvio, mas pelos temas e aspectos culturais específicos, o Padre António Vieira (Lisboa, 1608-Bahia, 1697) é simultaneamente um escritor português e brasileiro: percebe-se nos escritos do jesuíta uma afinidade com as coisas e os seres brasileiros ao ponto de ele próprio se considerar “mazombo”, isto é, filho do Brasil mas de pais europeus (neste caso, portugueses).
Ora é por estas razões que não me repugna aceitar, seguindo até a historiografia literária, a “Carta” de Pero Vaz de Caminha não só como o acto de nascimento do Brasil – não obstante lhe tenha chamado “Terra de Vera Cruz “ – mas como o primeiro documento e monumento da literatura brasileira, porque nela confluem todos os temas que os escritores brasileiros usarão como traços distintivos: o mito do bom selvagem, a literatura indianista que se lhe seguiu, a feminilidade inocente e sedutora, mais tarde largamente recuperada e ressemantizada por muitos poetas e prosadores.
Isto não invalida a aceitação de que o primeiro e verdadeiro literato do Brasil colóniatenha sido o Padre José de Anchieta, nascido em Tenerife (Canárias), chegado ao Brasil em 1553, co-fundador de S. Paulo, gramático da língua tupi, poeta lírico e dramaturgo segundo o modelo de Gil Vicente, através de autos que utilizou com a finalidade de converter os índios ao cristianismo.
Julgo por isso radical a argumentação de Carlos Loures, segundo a qual “antes de haver estado brasileiro não existe literatura brasileira”. E lembro os casos, entre outros, de Ambrósio Fernandes Leitão, funcionário da Coroa no Brasil, com os seus “Diálogos das Grandezas do Brasil”, de Cláudio Manuel da Costa ou de Gregório de Matos, mestiço, filho de pai português e de mãe bahiana. Tomás António Gonzaga (1744-1810), que viveu entre Portugal e o Brasil, pertence, por direito, quanto a mim, às duas literaturas. E algumas vezes se fez a ponte entre as duas culturas, como no caso do mulato Domingos CaldasBarbosa (1740-1800) qu difunde em Lisboa as ternas “modinhas”, talvez ligadasàs origens do fado.
Carlos Loures tem razão quando se refere aos casos de Angola, Moçambique ou Cabo Verde, Devo lembrar, todavia, que por muitos anos, mesmo depois da independência, as literaturas destes países foram designadas genericamente por “Literaturas africanas de expressão portuguesa”, “Literaturas africanas de língua oficial portuguesa” ou até “Literaturas africanas lusófonas”, não ousando a crítica conceder-lhes a “carta de alforria”. Manuel Ferreira, a quem devemos os fundamentos destas literaturas, ainda em 1986 lhes atribuía o título genérico, dividindo internamente o seu trabalho pelos vários países mas sem conceder autonomia às novas literaturas.
O mito do Preste João conheceu uma difusão extraordinária na Europa medieval, ligado à convicção de que existia um reino fabuloso que tinha como imperador o Preste, reino que foi conhecendo várias localizações, desde a área tártara, Índia (nestoriana) e Abissínia. A partir de 1165 foi posta a circular uma carta do mítico rei, dirigida a “Emanueli, Romeon gubernatori” (imperador bizantino), documento fictício destinado a estimular a imaginação fantasiosa do Ocidente medieval: confirmava o poder e a riqueza do chefe (também espiritual) de um território que atravessava as três Índias e o deserto de Babilónia até atingir a torre de Babel, razão que determinou o interesse em localizar um rei tão potente, ainda por cima cristão, nas terras do Oriente.
A demanda do Preste também interessou o imaginário português no processo que conduziu aos descobrimentos, considerando que, desde as primeiras viagens, as instruções dadas aos navegadores continham a explícita indicação de obterem notícias do fabuloso reino. A “Crónica” de Zurara, por exemplo, informa-nos que em 1442 o Infante D. Henrique tinha encarregado Antão Gonçalves de procurar nas costas do Rio do Ouro, na Mauritânia, notícias “das Índias e da terra do Preste João”. E o cronista comenta que o Infante pensava que “talvez agora a providência lhe deparasse nas remotas regiões algum rei cristão de crenças vivas e ânimo esforçado, que o pudesse auxiliar na guerra aos inimigos da fé”.
Em 1486 parte ainda Bartolomeu Dias com três naus para a costa africana e com a missão de deixar escravos negros nas terras descobertas com a finalidade de recolherem notícias sobre o Preste João. Mas no ano seguinte assiste-se a uma alteração radical sobre a possível localização, com a partida, desta vez por terra, de Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã, os quais viajam até ao Cairo, atravessam o Mar Vermelho e chegam a Adem. Aqui se separam: Afonso de Paiva dirige-se para a Etiópia enquanto Pêro da Covilhã estabelece contactos com os mercados orientais das especiarias: Cananor, Calcutá e Goa para depois voltar ao Cairo, onde deveria encontrar o companheiro. Sabe então da morte deste, prepara o regresso à pátria mas encontra dois judeus portugueses, enviados ao Cairo por D. João II para saber notícias dos dois emissários.
Pêro da Covilhã deve ter chegado à conclusão de que o reino do Preste João só se poderia localizar na Etiópia. Por ordem do rei, parte de novo na direcção do golfo Pérsico, onde deve ter chegado em 1490. Sabe-se que o Preste o recebeu com muitas honras mas, por razões que se desconhecem, não conseguiu sair da Etiópia, onde se casou e onde vivia ainda em 1526, no tempo da expedição de D. Rodrigo de Lima.
Só depois da chegada à Índia se começa a ter uma noção mais exacta da localização da Etiópia. Tudo se torna menos abstracto quando em 1512 o embaixador etíope Matheus visitou o rei de Portugal, numa altura em que a Etiópia estava constantemente ameaçada pelos ataques turcos. E em 1520 os portugueses puderam tomar contacto directo com o reino do Preste e dele dar notícia a partir da própria experiência. Só nessa data o Ocidente poderá beneficiar desse conhecimento, sobretudo depois da referida expedição de D. Rodrigo de Lima que teve como cronista o Padre Francisco Álvares (“Verdadeira Informação das Terras do Preste João”, publicada em 1540), obra que conheceu uma extraordinária difusão a partir das traduções para italiano (1550), para castelhano (1557), para alemão (1566) ou para francês (1574).
Depois desta expedição, os portugueses puderam estabelecer contactos mais assíduos com as terras do Preste (que afinal se chamava Onandiguel), através de sucessivas expedições, uma das quais parte da Índia em socorro do négus da Etiópia contra os turcos, expedição dirigida por D. Cristóvão da Gama e narrada na “História” de Miguel de Castanhoso (1564) e na “Breve Relação” de João Bermudez (1565). Estas obras difundiram finalmente uma imagem real do personagem que ficou conhecida como Preste João – a versão latina da carta enviada ao imperador bizantino exibia no exórdio o nome de “Presbiter Iohannes” -, corrigindo e redimensionando os aspectos fantásticos que contribuiram para a difusão do mito no Ocidente, como imaginário colectivo, já desde a época medieval.
Na revista “Colóquio/Letras” de Janeiro-Abril de 2010, publicou Armando Silva Carvalho um belíssimo poema com o mesmo título, composição que reflectia sobre o autor das “Odes Modernas”, por vezes em tom confessional, como o que se observa nos três versos finais: “Consigo decifrar as pegadas de Anthero/ A caminho do supremo/ Nada”. Mas antes já se antecipava o que viria a ser este livro, numa empatia de denúncia que o discurso deixava explicitamente perceber: “Direi depois se puder/ E em livro/ As causas desta minha decadência/ Já surda à voz das grandes multidões,/ Cansadas também elas/ Das palavras que lhes deitam por cima como bombas/ Em árias suicidas/ No palco da mentira universal,/ Como ele também dizia”(p.9).
Ora o livro aí está com as marcas de uma escrita inconfundível, desde que se revelou com “Lírica Consumível” (1965), passando por “Sentimento dum Acidental” (1981), “Canis Dei” (1995), “Sol a Sol” (2005), “O Amante Japonês” (2008), para citar apenas alguns títulos da apreciável e originalíssima produção poética do Autor. Agora, ao longo dos poemas de “Anthero, Areia & Água” a voz poetante passou a ser desempenhada por Antero, assumindo-se o Autor como espelho que reflecte o pensamento anteriano, recuperando por vezes o tempo histórico e a vertente ontológica: “Foi ontem, o início das Conferências,/ Fui eu quem levantou o comum pendão das Ideias,/ Revolução, Livre Pensamento, Democracia,/ E (oh, horror!) Socialismo”(p.75).
Inspirando-se este texto na leitura das “Cartas de Antero”, seria inevitável a referência a eventos, a polémicas que envolveram a geração (“Era o Lutero de Quental, diziam./ Não anti-Cristo, apenas anti-Castilho”) e sobretudo aos grandes sistemas que (in)formaram um século, aqui sintetizados de modo exemplar: “Tremendíssimo século dezanove,/ O meu, o de Marx (que tão mal conheci), o de Freud/ (de quem mal ouvi falar), da Ciência que surge em maiúscula/ Como uma nova jóia na coroa metafísica/Dos espaços febris do pensamento” (p.96).
Neste diálogo profundo com o tempo e o contexto da obra poética de Antero, o sujeito enunciador parece fundir-se por vezes entre os dois poetas e o discurso adquire assim uma contemporaneidade poética através de processos hermenêuticos que restituem força ao sentido das palavras. Exemplo deste processo é o poema cujo título (“Reprimenda ao Autor”) é um indicador da fusão empática de que se falou atrás, onde parece evidente a base do fascínio e da sua força de atracção, a razão da mesma perplexidade perante as coisas e os seres: “O presente alimenta-se da confusão dos euros e muito futebol./ As massas, meu caro, as massas não sofrem/ As insónias do doente nervoso,/ Não leram, passado mais de um século,/ O meu Proudhon, o meu Hegel de alcance reduzido/ Em soluções desportivas ou em pontas de lança justiceiros” (p. 86). É um segmento textual, este, talvez mais sereno mas não menos cáustico do que é habitual na escrita de Armando Silva Carvalho, escrita que aqui tenta fazer emergir o vulto escondido e algo misterioso do poeta da razão mas igualmente do misticismo.
De certo modo, este livro excelente pode ler-se como um ensaio, em forma de grande poesia, sobre as ideias do maior animador cultural da famosa geração de 70.
O Autor tem-se ocupado, desde meados da década de 90, dos temas e problemas relacionados com a literatura da guerra colonial e do seu impacto no imaginário português, a ponto de se poder dizer que é hoje um dos grandes especialistas de uma matéria que remete para “um passado que ainda foge à fundação de uma memória compartilhada”. De facto, data de 1995 a publicação de dois importantes ensaios (“Literatura da guerra colonial: a melancolia como género” e “A guerra colonial entre género e tema: ‘Jornada de África’ de Manuel Alegre”), que constituíram o ponto de partida para esta abordagem global que é parte de uma investigação persistente de alguns anos sobre a guerra colonial e, de modo mais específico, sobre a literatura que procurou representá-la.
Ao longo de um preâmbulo e de oito capítulos de grande maturidade reflexiva, até do ponto de vista teórico, o Autor conduz o seu discurso no sentido de observar a literatura da guerra colonial como um modo, entre outros possíveis, para tentar um discurso crítico sobre Portugal, sobre o império colonial (ponto ainda fracturante da história portuguesa contemporânea), sobre o trauma, “sobre a relação entre a violência e a excepção para que sempre remete”.
Tal discurso assenta numa reflexão profunda sobre as questões subjacentes e implícitas à representação de mecanismos perversos que conduziram todo um percurso, de que destaco, por razões de espaço: “Usos e genealogia: os corpos despedaçados e a história”; “a melancolia como género”; “Restos, rastos, indícios e fantasmas. Tragédia e trágico” (capítulo 1); saudade, luto, melancolia na literatura da guerra colonial (capítulo 2); e, de modo particular, todo o capítulo 5, como se pode avaliar pela súmula que antecede o capítulo: “Memória e história […] (Quase) lutos, cicatrizes, epitáfios. Enterrar os mortos: as Antígonas trágico-modernas da guerra colonial. A condição póstuma do Autor: tal Império, qual conflito? Quem são as vítimas invisíveis de uma não guerra sem nome? Astúcias e incoincidências do autor póstumo na literatura da guerra colonial. Traumas transbordantes e políticas póstumas do trágico: ‘Enterrar os mortos e cuidar dos vivos’. Culpa e crueldade nas representações da guerra colonial”.
Na sua globalidade, o volume constitui um desafio que o Autor faz a si próprio e aos leitores no sentido duma leitura abrangente e iluminante, sob muitos aspectos, dos vários textos ficcionais que se produziram sobre a guerra colonial. Concordo plenamente com Margarida Calafate Ribeiro, prefaciadora do volume, quando afirma que este livro nos leva a reflectir “sobre Portugal de uma forma teoricamente provocante, absolutamente inovadora e distinta do que até agora tem vindo a ser feito”.
Roberto Vecchi é professor de Literatura Portuguesa e Brasileira, e de História das Culturas de Língua Portuguesa na Universidade de Bolonha. Para além dos dois ensaios já citados, de certo modo fundadores do que viria a ser a investigação futura, é autor de vários ensaios sobre o mesmo tema, publicados em Portugal, em Itália e no Brasil. Desses estudos destaco: “Mares coloniais, mares da memória. Algumas considerações sobre a literatura da guerra colonial” (1994); “Percursos. Fragmentos de uma ‘recherche’ da África perdida” (1996); “Barbárie e representação: o silêncio da testemunha” (2001): “Experiência e representação: dois paradigmas para um cânone literário da guerra colonial” (2001); “Restos de experiência, rastos de memória: algumas características da guerra colonial” (2001); “Das relíquias às ruínas. Fantasmas imperiais nas criptas literárias da guerra colonial” (2003); e “Império português e biopolítica: uma modernidade precoce?” (2007).
(Para os interessados no tema, o volume será apresentado na Livraria Barata no dia 25 de Outubro, às 18,30 horas).