Sexta-feira, 22 de Outubro de 2010

Cinema

 Marcos Cruz


“Achei interessante”, dizia, de cigarro na mão, a Bafiela. À volta dela, outros cromos repetidos da cultura portuense assentiam de sorriso místico, como se ela estivesse a dizer uma grande coisa.

Eu, farto daquele “já há”, saí dali tipo camisola do brasil: verde e amarelo. Sim, sim, era tanto o nojo que transportava. Só que, dessa vez, ela notou. E, pedindo desculpa aos parceiros de tertúlia, veio atrás de mim.

“Ei!”, chamou. Eu, já com a chave do carro na mão, olhei-a, surpreso. “Desculpe, eu sei que não nos conhecemos, mas não pude deixar de reparar no seu olhar para mim, agora mesmo, à saída do cinema. Tem alguma coisa que me queira dizer?”, perguntou. “Não, nada. Porquê?”, devolvi eu, mula.

Pensei, momentaneamente, em pôr à prova a sua perspicácia. Se ela era tão boa a interpretar filmes impenetráveis, a ponto de toda aquela plêiade de hemorróidas cultas se curvar à mera pronunciação da palavra “interessante”, não demoraria nada a perceber o que me ia na alma. “É que fiquei com essa ideia... Pareceu-me incomodado”, respondeu. “Incomodado, eu? Desculpe, mas não estou a ver aonde quer chegar. Então eu saio do cinema, venho para...”. Interrompeu-me: “Claro, claro. Não se preocupe. Eu é que tenho de me desculpar. Boa noite”. Em passo lento, de quem pensa, voltou para junto da nata da cidade.

Eu, ainda com a chave do carro na mão, fiquei como o tolo no meio da ponte. Por um lado, queria-me ir embora, até porque estava a precisar de dormir. Por outro, sentia-me insatisfeito, apetecia-me puxar um bocadinho mais aquele fio, ver no que é que aquilo dava. Guardei a chave no bolso e voltei ao cinema. Desajeitado, toquei-lhe na gabardina, pelas costas. Ela voltou-se e, como se já estivesse a contar, sorriu. Despediu-se dos presentes, olhou-me e perguntou: “Vem?”. Acompanhei-a naquele seu passo, sem saber até onde.

Em silêncio, fui guiado até ao meu carro. “A partir daqui é consigo”, disse ela finalmente, numa ambiguidade calculada que parecia querer sublinhar a sua percepção de que, na balança dos meus sentimentos, o encanto passara, subitamente, a pesar mais do que a repulsa. Sem ponta de charme, perguntei-lhe onde morava. Ela riu-se, já nas suas quintas, como se morasse ali mesmo, naquele corpo, naquela aura segura. “Quer boleia?”, arrisquei. Escusado será dizer que houve um segundo de intervalo antes da resposta dela. Um segundo de silêncio – não a preceder o jogo, como acontece no futebol quando alguém morre (aí é um minuto, eu sei), mas a meio, justamente no seu epicentro.

De um lado, o sadismo; do outro, a vulnerabilidade. A vitória estava mais que anunciada, e não havia ali árbitro à vista para subornar. “Por que havia de querer?”, questionou ela, a fazer render o peixe, como um artista da bola que, em posição de remate e com a baliza aberta, prefere adornar um pouco mais a jogada para aprimorar o golo. “Não sei, trouxe-me até aqui”, justifiquei, desconfortável. “Trouxe-o até aqui porque o achei interessante”, justificou ela, enorme. “Acha tudo interessante?”, provoquei, num improvável contra-ataque de ironia que ela, estranhamente, não percebeu: “Como assim?”. De repente, a bola estava do meu lado: “Disse o mesmo sobre o filme, há pouco, aos seus amigos”.

Foi então, quando eu já esperava um novo e bem mais saboroso segundo de silêncio, que ela, semicerrando os olhos, enervada, incrédula até, se revelou: “Olha, meu filho da puta: se me quiseres comer o cu, muito bem. Se não quiseres, há mais quem queira! O que eu não estou é para aturar estas merdas! Por falar nisso: tens SporTV em tua casa?”.

(Ilustração de Adão Cruz)


publicado por Carlos Loures às 19:30
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Quinta-feira, 21 de Outubro de 2010

A escrita

Marcos Cruz

Uns dias bem, outros mal. Quão mentiroso é o horizonte! Quão aliciante e persuasivo se nos mostra naqueles dias, quão angustiante e negro se nos revela nestes.

A paz é das montanhas e dos vales, dos medos e dos amores, ela habita toda a forma. Para ser minha também, falta que eu com ela aprenda essa adaptabilidade, essa renúncia infinita. Sentir, eis a questão. Sentir tudo.

Abrir o peito às flores e às balas, deixar que o destino penetre a carne e a queime de toda a sensação, permitir que o corpo seja o altar onde a dor e o prazer juram e geram amor eterno. Fazer a parte que me compete, usar bem o meu testemunho, abrir caminho para quem vem depois. Viver no paradoxo como se fosse chão firme, que o é, afinal.

Escrever, o acto de escrever, uma das infinitas formas de sentir, tem sido para mim um claro exemplo disso: escrevo quando sinto que preciso, quando a alma se agita e quer que lhe conte histórias, quando estou por baixo; se assim não for, vivo.

Escrever é, pois, para mim, uma forma de legitimação daquilo que procuro: viver. Como se esse grande propósito, assumido na sua plenitude, carecesse de sentido. Como se a vida, ela própria, não tivesse sentido. Se não tem, para que vivê-la? Mas, lá está, escrever é, para mim, a renda da casa.

Deus deu-me esta moradia, este corpo animado, esta oscilação perpétua, com uma ordem própria que não domino mas, passo a passo, vou descobrindo nas coisas, nas vagas dos mares, nas fases da lua, no intangível jogo de espelhos que é o mundo, do poço mais fundo ao abismo do céu.

Passo dias de sonho, vivendo. Vou ao sabor dos passos que são e não são meus, num ritmo etéreo mas não aéreo, uma espécie de batida silenciosa. Os meus pés falam com o chão, conversam ora eu ora tu, demoram-se em passeios tão verbais quanto sexuais - e, em ambos os casos, fecundos. Acham que eles se preocupam com o destino? Nada.

Ocupam o tempo até que alguém por eles, há quem diga que eu, decida interromper o coito. Coitado de mim: mais e mais culpa. Aonde quer que vá, o que quer que escave, encontro sempre culpa. Nos dias bons, agradeço-a como um cão lambe o dono por um novo osso, consciente de que atrás dele mais vida se abre, mais água corre entre o fulgor e o desespero; nos maus, ajoelho-me perante ela, todo rendição e revolta, resistindo a entregar-lhe a minha ausência de sentido, como quem resiste a deixar um filho seu em porta alheia.

Pois é. É que também passo dias de pesadelo, sonhando. A coincidência, e aparente contradição, entre sonho e pesadelo, entre viver e escrever, entre dia e noite, atesta e ela própria espelha o tal jogo de espelhos que é a existência, pelo menos a minha. Os espelhos, os que socialmente se convencionaram como tal, os que registaram a patente dessa condição, mostram a nossa imagem invertida, mas na vida tudo é nosso, tudo nos diz respeito, tudo e nada, a verdade e a mentira. Daí que o inverso de mim seja eu também. Daí que os dias bons sejam maus também, e vice-versa. Daí que escrever seja também viver. E daí, talvez, eu escrever.

Não fora essa consciência e dificilmente o faria, porque não gosto de ir pelos meus dedos, não acredito neles enquanto entidade destacada do todo. Para mim, o cérebro de cada um é como um neurónio do universo: sozinho nada faz, tem de chocar, tem de criar faísca, ir na corrente. Só que, se me é mais fácil, por assim dizer, libertar o cérebro quando ando na rua, quando nado, quando medito, quando como, enfim, quando não me atenho a um ofício mental, sinto extrema dificuldade em consegui-lo quando escrevo.

Já muito pensei sobre isto, claro. O que é, aliás, mais um paradoxo, porque ao pensar estou a instrumentalizar o cérebro. Mas também já muito meditei sobre isto. Pensar e meditar são, no meu modo de sentir actual, coisas mais ou menos tão diferentes como viver e escrever. O pensar tem o seu teatro na roda mental, requer um departamento para existir, recolhe-se do que não lhe convém. O meditar absorve tudo, mesmo o pensar, até que este desapareça espontaneamente por defesa própria.

O processo de escrita tem-mo mostrado, desde os dias em que fincava os olhos na folha branca e como que a inquiria, tentando extorquir-lhe uma mancha, um palmo de cadastro, para que nele pudesse lavrar, e ela, com a candura dos inocentes, me devolvia o olhar, sem mais em sua companhia que a frustração de ser nada o meu reflexo, de estar trancada a minha alma. De então para cá o que mudou foi a mudança, a alma ela própria de mim e de tudo; foi então o mundo, toda a vida, toda a escrita.

Foi o sentir a dita frustração e começar a amá-la como o fio de sentido que me estava destinado puxar, o pedaço de vazio que me era levado à boca. Foi a noção de que o meu caminho se desenhava, afinal, na sombra do que eu havia desenhado para si mesmo, no inverso da imaginação, da conjectura, do pensamento, do sonho. Comecei a perceber que, em vez de escrever, o meu destino era ser escrito. E que melhor paradoxo? Li no destino que o tinha de escrever.

Mais do que me confrontar com a responsabilidade de palmilhar rumo a Deus, isso contribuiu decisivamente para que pousasse em mim próprio, como uma semente que inicia a sua aventura na fertilidade macia de um terreno que sempre a desejou. Continuei a passar uns dias bem, outros mal, mas a minha consciência do bem e do mal mudou desde que os enquadrei como dores e prazeres de crescimento, como mensagens provenientes da raiz que entrara por mim adentro com a firmeza etérea da luz matinal. Nem sempre as leio com a devida serenidade. Às vezes a sensação é tão intensa que me convoca inteiro, qual bombeiro apanhado na teia do fogo, vitimado pela violência das chamas. Mas mesmo dessas mortes saio vivo, com uma sensação de integridade mais ampla, como se o que deixei na batalha não me pertencesse.

Pode, compreendo, este caminho parecer inclemente a quem me viu e quem me vê. Posso dar a ideia de me ter tornado num egoísta insensível, num puro sangue que, apontado à sua própria loucura, esquece a poeira que levanta. A verdade, porém, tanto quanto a minha lucidez a sabe agora decifrar, é que me leio cada vez mais como a um livro, confiando ao abismo da liberdade a memória de cada página que viro, testemunhando a expansão da consciência por cada nova página em que mergulho. Se me perguntarem com que direito, assumirei não saber verbalizá-lo melhor do que deixando vir à luz estas linhas tortas, na fé sincera de que o contemplarão. Se assim for, a minha gratidão não caberá em nada, pois brilhará no meu íntimo a certeza de que o amor também se escreve.

(ILustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 16:30
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Quinta-feira, 14 de Outubro de 2010

Fim

 Marcos Cruz




Não me lembro do meu primeiro amor. Não posso sequer garantir que o tenha tido. Provavelmente não, porque, se o tivesse tido, e dizendo toda a gente que não há amor como o primeiro, lembrar-me-ia. Por isso, talvez toda a vida só me tenha amado a mim. Esta é a conclusão fácil. Por outro lado, lembro-me de ter amado quem me deixou, lembro-me aliás de ter amado todas as mulheres que me deixaram no momento em que o fizeram e por algum tempo depois, ou sempre depois, de maneiras e com intensidades diferentes. Por isso, talvez

toda a vida só tenha amado o que não tivesse, ou melhor, o que tivesse deixado de ter. Esta é a conclusão mais ou menos fácil. O mais fácil é chegar a ela, o menos é aceitá-la, porque, se a tomar como verdadeira, ponho-me perante um dilema difícil de resolver, face à primeira conclusão, que é: ou eu nunca me tive a mim ou deixei de me ter nalgum momento. Se pegarmos primeiro nesta segunda parte, contrariando um bocadinho a lógica das operações humanas – e ao dizer pegarmos, em vez de pegar, já estou a admitir que preciso da vossa ajuda para esgravatar isto –, a primeira coisa a fazer é tentar lembrar-me – e aqui, desculpem, terei de ser eu só, partindo do princípio, também ele questionável, como tudo, de que vocês não têm memória da minha vida – do preciso momento em que eu deixei de me ter. Admitamos que foi justamente no momento em que eu tive consciência de que me tinha, o que já de si é o paroxismo do paradoxo, ou, para termos a satisfação de já termos juntos “inventado” um termo, o paradoxismo. Mas se, simplificando, eu me perdi no momento em que me encontrei, então foi, por um lado, e face à segunda conclusão, aí que eu me comecei a amar e, por outro, aí que eu deixei de me amar. Esta é a conclusão mais ou menos difícil. O menos difícil é aceitá-la, o mais é achá-la mais difícil do que a primeira, porque a primeira, talvez por me implicar apenas a mim e ainda não também a vocês, dói mais – e, nesse sentido, é mais difícil de aceitar, o que nos põe já em oposição com o que eu, ou melhor, nós acabámos de concluir. Estamos todos, então, neste labirinto. Não sinto, porém, que esta, fácil ou difícil, seja grande conclusão. Talvez passe a senti-lo quando deixar de a ter. Agora, agora, atravessa-me a ideia de que, ao amar quem me deixou, o que eu amei foi, como acontece geralmente quando admiramos alguém, a capacidade de alguém fazer aquilo que eu não consigo. Neste caso, comigo. Esta é a conclusão difícil. Porque talvez implique que eu só me volte a amar no momento em que deixe de me ter. Por outro lado, neste preciso momento eu chego à conclusão, já atrás implícita mas nunca enunciada desta forma, de que o meu primeiro amor fui eu. E de que, dizendo toda a gente que não há amor como o primeiro, talvez esteja aí a razão de eu nunca me ter deixado. E esta, sendo porventura a verdadeira conclusão, a mais fácil, porque acessível a qualquer atrasado mental, e a mais difícil, porque dura de roer ao espírito mais elevado, não é, ao mesmo tempo, uma conclusão, e sim o seu contrário: um início.

(Ilustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 16:30
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Sábado, 9 de Outubro de 2010

Do vazio

Marcos Cruz

António era um bife. Mal passado, passava mal. Mas tinha a resistência suficiente para lutar contra os que o queriam passar bem, pois sabia que “uma vez bem passado, bem passado para sempre”. Passava mal no presente, mais precisamente, já que o seu passado fora até bem passado, ou, como todos os passados, bem e mal passado. Em parte, era com isso que ele se passava: se, por um lado, “uma vez bem passado, bem passado para sempre” e, por outro, o seu passado havia sido bem e mal passado, ou seja, em parte, bem passado, porque não estaria ele bem passado no presente? Talvez, sem o ter presente, estivesse.

Mas então por que razão passava mal? Era uma problema pesado, difícil de ultrapassar, e por isso António pediu ajuda. Foi ter com um bife que, por haver passado muito e (aparentemente) passar bem sem estar bem passado, talvez o pudesse fazer passar melhor no futuro, passando-lhe uma receita, ou algo assim, que o dispensasse de ser bem passado para deixar de passar mal. Era o melhor presente possível e, à beirinha do Natal, António passava o tempo todo, incluindo todo o tempo passado com o outro bife, a pedi-lo. Porém, passado pouco tempo, e vendo que António o havia passado mal a ansiar pelo momento de o passar a passar bem sem estar bem passado, o outro bife explicou-lhe que esse não era pedido que ele pudesse fazer a não ser a si próprio, pois nem ele, o outro bife, e muito menos o Pai Natal o poderiam satisfazer.

 Completamente passado, aqui já não interessa se bem se mal, António deixou o outro bife com um cortante “passar bem” e foi para casa pensar que passaria a mais desconsolada consoada da sua mal passada existência. Só, e descompassado com a ideia de que mais vale só que mal acompanhado, jantou um bife bem passado e passou o resto da noite a dormir, passando a linha do Natal sem se aperceber. Ao acordar, olhou para a árvore luzente que, apesar de tudo, havia comprado e percebeu que alguma coisa se tinha passado, pois no lugar do passado estava lá um presente. Entusiasmado, correu a abri-lo. Era uma bifana.

 Dormia como um anjo por nascer, mas já se constatava que era uma bela bifana, daquelas que fazem qualquer bife, mesmo o mais indefinidamente passado, como António, ultrapassar-se. A incredulidade guiou-o, qual sonâmbulo, até à casa de banho, onde passou água pelos olhos. Foi então que, confrontado com o espelho, viu que não se via. O seu tempo, dizia-lhe a superfície das imagens avessas - e que ali estampava também a do Natal - tinha passado. António deixara de ser um bife para passar a ser nada, como acontece com todos os bifes. E não lhe restava sequer o consolo de, enquanto nada, pensar que quando fora um bife o havia sido mal passado, já que passara à história com essa incerteza. Resignado, decidiu aprender com o passado e viver plenamente a espécie de segundo nascimento que lhe fora concedida. Outrora recém-nado, hoje recém-nada. Nesse preciso momento, a bifana acordou.

(ilustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 19:30
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Quarta-feira, 6 de Outubro de 2010

De volta

Marcos Cruz

Saio da cama a pensar que já pensei muito. Reflicto sobre a complexidade dos meus sonhos e concluo que a vida é aquilo que estivermos dispostos a receber. Levanto o corpo decidido a deitar a mente. Ainda no limbo vem-me à imagem uma autoestrada engarrafada de um lado e totalmente vazia do outro. Olho para a baba na almofada e constato que ainda salivo, mas por momentos ocorre-me a dúvida sobre se a saliva que agora tenho na boca não se deverá ao súbito e intenso desejo que sinto de passar para o outro lado da autoestrada. Penso então que não faz sentido esta confusão entre a cama e a vida. Seria um terceiro sentido. Não existe. Mas atrai-me. Fico a imaginar para onde iria ele e deparo-me com duas possibilidades: para cima ou para baixo. O que me leva a admitir um quarto sentido. O som da palavra quarto traz-me de volta ao meu. Reprimo-me por ter frustrado o projecto de não pensar e penso se não o terei feito no preciso momento em que o formulei.

(Ilustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 10:00
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Terça-feira, 5 de Outubro de 2010

Respeito

Marcos Cruz

Muitas vezes me questiono sobre o poder mágico da morte, a capacidade que ela tem de mudar a opinião dos homens uns sobre os outros, ou pelo menos de condicionar a expressão dessa opinião. Sempre que um insulto se transforma num elogio, tendo a considerar que, aos olhos do emissor de tão opostos juízos, a pessoa sobre a qual eles recaem fez alguma coisa de positivo, produziu um bem passível de a redimir do mal anterior, ou de o atenuar, vá lá. Penso, então, se a morte de alguém que repudiamos será, para nós, esse feito elevado à sua potência suprema, se a borracha que apaga a existência física de uma pessoa tem o condão de apagar também todas as memórias negativas que dela fomos acumulando, como um processo que prescreveu e em relação ao qual não há já nada que nos prenda. Talvez o raciocínio seja: este não chateia mais, portanto vamos poupar quem gosta dele a mais chatices. Eu, no entanto, não descarto a possibilidade de, em muitos casos, aqueles que gostam das pessoas que morrem preferirem ouvir, na morte dessas pessoas, serem-lhes atribuídas pelos outros as virtudes e os defeitos que os mesmos lhes atribuíram em vida, isto pensando, em primeiro lugar, no morto, que, enquanto vivo, teve uma conduta que, se não agradou a gregos e a troianos, foi porque não tinha de agradar, ou até porque não queria agradar. Daí que rasurar o que subjectivamente cada um de nós entende como pecado de uma pessoa na hora do seu falecimento possa equivaler a mutilar a memória dessa pessoa, a bombardear o edifício que ela construiu em vida. Mais do que proferir banalidades e, por vezes, derramar hipocrisia, como cal, sobre o ser que se desmaterializa, talvez respeitá-lo seja tratá-lo na morte como ele fez por ser tratado em vida, reconhecer viva a sua marca, inteira. É que um homem pode ser parte do todo, mas há um todo que é parte dele - e o que parte dele, na morte, é o que menos lhe pertence.

(ilust. Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 16:30
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Domingo, 3 de Outubro de 2010

Ilusão

Marcos Cruz


Na máquina de sujar em que estamos metidos, o stress é o glutão mais eficaz. Tira a mais pequena nódoa de limpeza num abrir e fechar de olhos. Com a desvantagem de que nem é preciso comprar. Ele vende-se. É completo. Produto e promotor, tudo incorporado, dois-em-um que divide como quem corta relva e une como quem varre o chão. Sem darmos por ela, fez de nós seus aliados na luta contra o tempo: nós crentes de que a luta era contra a passagem do tempo, ele ciente de que a luta era contra o seu aparecimento. Uma coisa e outra, claro, são inúteis. No limite, tudo é: o stress não vive menos iludido do que nós. Ele, como o tempo, como nós, também passa. E talvez a melhor maneira de lhe mostrar isso seja fazê-lo crer, como ele nos faz em relação ao tempo, que lutamos contra a sua passagem, estando cientes de que lutamos contra o seu aparecimento. Por outras palavras, viver bem na sua companhia. Dar-lhe o melhor. Dar-lhe amor. Dar-lhe tempo.

Um dia destes fui sujeito a um banho prolongado de lugares-comuns, cascata refrescante de palavras sobre o meu corpo confuso, cansado, sujo. De início, lutei contra o paradoxo de palavras mais velhas do que a sua sombra me tirarem anos (não de vida, mas) de cima dos ombros. No fim, rendi-me à mensagem-massagem que por mim escorria: todos vivemos num lugar-comum. Para quê, então, sofisticar? Para quê o requinte da ironia, o verniz do cinismo? Para quê escondermo-nos neles, se nos deixam tão expostos como as mãos de um bebé que tapa os olhos para se tornar invisível?

Se tudo passa, se até o stress passa, se até a vida passa, o interesse dos outros não fugirá à regra (a fugir, será para mostrar que a regra também passa). O interesse que nos interessa e o que não. O stress que nos stressa e o que não. As obsessões, as paixões, as alegrias, as tristezas, os rios, os mares, as chuvas, os sóis, as tempestades, os fogos, os corpos, as almas, as verdades, as mentiras, as ciências, as religiões. Os conceitos. Os preconceitos.

Agarremo-nos, portanto, a um único (e o maior) contra-senso: a consciência de que tudo passa. É verdade que, se tudo passa, a consciência também, mas aproveitemos o contra-senso no seu todo, ou seja, corpo e significado. No corpo, aproveitemos o hífen como ponte e passemos do contra para o senso. Pode ser que, lá chegados, o significado seja outro. Se não for, seja como for, há-de passar.

(ilustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 23:55
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Quinta-feira, 30 de Setembro de 2010

O meu bocado

Marcos Cruz

Muitas vezes tive a tentação de me juntar a alguém com sucesso, alguém que me pudesse atrelar, por piedade ou, de preferência, por me reconhecer valor, e levar-me aonde eu sozinho nunca conseguiria chegar. Mas algo, nessas alturas, me dizia que, uma vez cometido esse acto de compaixão, eu ficaria com uma dívida de gratidão para com a pessoa em causa e moralmente obrigado a não a deixar ficar mal, o que transportaria o padrão de sucesso da operação para ela e não para mim, ou seja, todo o meu percurso a partir daí se mediria pelos passos do meu salvador e não pelos meus. Eu deixaria de ir a reboque da minha exigência e passaria a ir a reboque da dele, ou até, na pior das hipóteses, a reboque da minha exigência projectada nele, que seria igual à minha exigência multiplicada pelas vezes que o achava a ele melhor do que eu. Sim, porque só se justificava aceitar a sua oportunidade se o achasse melhor do que eu. A minha exigência nunca me deixaria pensar: ok, o projecto é dele, por isso já não preciso de me cobrar tanto. Pelo contrário: nesse caso, haveria uma factura dois-em-um para um eventual sucesso um-em-dois. Nada disto significa individualismo, não se confunda o que digo. Significa, sim, consciência da dimensão do indivíduo, nos seus deveres para consigo e para com os outros. Antes de mais, a nossa luta (talvez fosse melhor dizer a minha, por razões de coerência) deve ser para connosco, no sentido de nos tornarmos um projecto de sucesso para consumo interno, de nos construirmos passo nosso a passo nosso, sabendo que podemos infligir os golpes que quisermos no silêncio que ele, como um desenho animado, se reconstitui sempre, volta sempre à forma inicial e última, enquanto nós crescemos, mudamos e nos moldamos golpe a golpe. Já não sei quem o escreveu (aliás, veio esta semana citado num jornal desportivo), mas "saber mais é ser mais", e (como diria La Palisse, que também poderia ter escrito a frase anterior) só se é se se for, devendo este "for" ser lido na sua dupla acepção, ontológica (ser) e accional (ir). Ir sendo ou ser indo, portanto. Sem rebocar e sem ser rebocado. A experiência, a minha, claro, faz-me dar um toque pessoal a uma célebre lição moral de uma das fábulas de La Fontaine: "Guardado está o rebocado para quem o há-de comer". Não vão por mim.

(ilustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 19:30
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Sábado, 25 de Setembro de 2010

Para ti

Marcos Cruz

Hoje vou às palavras. Vou ver se estão boas, se estão fresquinhas, se vale a pena trazê-las e quantas. Gosto mais das palavras soltas, o problema é que as não há, ou então estão mortas, cortadas, mutiladas, como as flores que vemos deitadas na rua, à mercê de solas e rodas. As palavras também têm raiz, todas elas, e é uma pena arrancá-la, em qualquer caso, mas ainda assim prefiro fazê-lo a comprar palavras no mercado, arranjadas e metidas em bouquets para impressionar quem passa. O negócio das palavras, aliás, entristece-me, pelo amor que lhes tenho. Gostava de as ver crescer naturalmente, de as regar, de cantar para elas e com elas, de apreciar a forma como se desenvolvem e ganham novas cores, novos cheiros, novas texturas, novos sabores. Gostava de me perder num campo infinito delas, de fechar os olhos e de as ler nesse estado virginal, de as deixar ensinar-me a lê-las, de me ler nelas. As que mais encontro, porém, perderam a leitura, perderam até o leite, não se reproduzem, não se multiplicam, não se renovam, apenas se repetem, como cromos que se trocam por outros num mercado único, que nos quer ver a todos com a mesma caderneta. Mas depois há o amor, o sensor da surpresa, do desconhecido, o raio mágico que desperta com a palavra nova, solta, sem casa, e num instante cobre tudo o resto de sentido. É por ele que eu continuo a ir às palavras. Hoje trouxe estas. Pega, são para ti.
publicado por Carlos Loures às 19:30
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O desejo

Marcos Cruz



Nada expressa com a eloquência do desejo os limites do pensamento, como nada expressa com a eloquência do filho os limites do pai. O desejo nasce atado às expectativas de quem o criou, não podendo o abrir dos seus olhos dar-lhe a ver a liberdade essencial que o constitui. O meu pensamento formula um desejo e atem-se a ele, à sua sorte, prende-se a algo que lhe escapa, a uma magia cujo truque desconhece, ficando a glória ou a revolta do pensador suspensas do cumprimento ou da frustração desse desejo. Até que o pensamento se dilua ele próprio no céu da vida, muitos desejos partirão para lá como seus enviados, não causando surpresa que uns lá não cheguem e outros de lá não voltem. É preciso crer para ver, e crer mais não é do que viver. Crer é amar. O desejo representa a incapacidade, o medo de crescer, a recusa em abrir os olhos da alma. Daí que a expressão “matar o pai” adquira tanto significado na psicologia: matar o pai é justamente matar o desejo a que cada filho nasce agarrado.

Então, se em vida todos somos filhos e pais, por que haveria o pensamento de dispensar essa ruptura? E o que acontece quando o pensamento se livra do desejo que o agrilhoa? Ele voa consciente de si mesmo, ele plana e bate as asas consoante a eternidade, pois tudo se compacta para ele em cada momento, fazendo dele mesmo esse tudo, mostrando-lhe que ele é tudo e tudo pode, incluindo deixar de o ser. E ele deixa, claro. Ele deixa até que novo e novos voos o enraízem à liberdade, até que o amor de pensar em cada um afague no seu colo o medo do que cada um pensa de si, como uma mãe recebe, extenuada e feliz, o recém-nascido que tanto lhe custou dar à luz, depois de arranques e recuos, de conquistas e perdas, de ânimos e desesperos. Creio, aliás, que se não existe um equivalente materno da expressão “matar o pai” é porque a mulher, passando pela experiência de ser mãe, de conceber, desmonta a mecânica do desejo, encarna o sentido da vida e percebe que vale sempre a pena cobrir de amor e gratidão a nudez do sofrimento. Dar à luz é, pois, tirar às trevas, é salvar. Libertarmo-nos dos nossos desejos, aceitarmos plenamente o que nos oferece a experiência de existir, é dar à luz em cada instante. É darmo-nos à luz.

(ilustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 08:00
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Domingo, 5 de Setembro de 2010

Os pés pelas mãos

Marcos Cruz



A minha filha está na cozinha, em bicos de pés, a tentar chegar com as mãozitas a um pacote de bolachas que eu afastei o suficiente, julgo, da borda do balcão. Afinal, julgo mal: ela fez cair o pacote. Ponho-me a imaginar o que pensará ela sobre a conquista - se achará que foram as mãos as responsáveis, se atribuirá o mérito à inclinação dos pés, se premiará o conjunto ou se nem perderá tempo a reflectir sobre isso, que é o mais provável. O meu pai está na cozinha, sentado, a dizer-me que a ciência, mesmo sendo um cemitério de hipóteses, é o único caminho para a verdade, ao passo que a filosofia é, na generalidade, um amontoado de disparates. Segundo ele, a filosofia é apenas um degrau, um degrau que está abaixo da ciência. Eu pergunto-me, e pergunto-lhe por outras palavras, sem que ele mostre vontade de me ouvir, se esse degrau não estará para a ciência como os pés da minha filha estarão para as suas mãos na abordagem ao pacote de bolachas.
publicado por Carlos Loures às 16:30
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Domingo, 22 de Agosto de 2010

Fim da linha

Marcos Cruz


Será que os pássaros vivem a crise? Será que há menos gente a dar-lhes migalhas nos jardins? E todos os outros animais? Será que partilham as angústias do Homem sobre o estado do mundo? Será que sofrem de forma indirecta? Pelo que me é dado ver, não. A generalidade dos animais ditos não racionais habituou-se a viver em liberdade, coisa de que o Homem, no exercício da razão, quis prescindir. Cioso da sua mais-valia, despediu-se da cadeia de ADN global para se fazer a uma vida destacada, para escrever uma história acima do universo, mero contexto, paisagem, folha lisa. Capítulo após capítulo, encontra-se hoje perante a realidade irrefutável de ter criado um Deus à sua imagem, chamado dinheiro, Deus esse que, cada vez menos, por ser filho de um Homem desligado, de um recorte físico do infinito, está em todo o lado. Ora, se a ideia de que a salvação e a felicidade se baseiam na posse é hoje do domínio da lógica, do código subjacente à vida da espécie, há então que lutar com unhas e dentes por esse Deus. A este raciocínio interpõe-se, no entanto, um problema: o que fazer com as pessoas que se sentem felizes sem possuir ou querer possuir a dita felicidade? Pois excomungá-las, atirá-las para outra espécie, uma espécie inventada, uma espécie nova, que, tendo em conta a teoria evolucionista, quem sabe justificaria a reciclagem do termo super-homem. Hum…, não, não faria sentido evocar anacronicamente uma estrutura mítica cuja falência teve, aliás, expressão retumbante na realidade. Fosse ele um pássaro, como admitia a célebre pergunta dos homens que o viam pela primeira vez a rasgar os céus, e ainda andaria aí, imune à crise, mesmo que não a salvar pessoas, mesmo que não a aliar-se ou a substituir-se ao Deus dinheiro. Mas, enfim, talvez lhe assentasse bem a designação de supra-homem, um “supra” ligado à superação, à sublimação, à transcendência - uma transcendência inclusiva, porém, não uma transcendência irresponsavelmente mística, magicamente religiosa. Cumprida essa limpeza, deixada a nova espécie ao sabor dos pássaros, aprendendo a voar, a ser livre, o Homem poderia retomar a escrita da sua obra-prima, do seu grandiloquente livro técnico, sem romance, com menos personagens e mais Deus disponível para cada uma delas, e tirando proveito de, através do erro, ter aprendido uma lição extraordinária, imprescindível ao desejado final feliz: reprodução, jamais.
publicado por Carlos Loures às 22:30
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Terça-feira, 17 de Agosto de 2010

Integrar é preciso

Marcos Cruz



Imagine-se numa discoteca em que, ao soar de uma música conhecida, toda a gente converge para a pista. Você, por não estar seguro dos seus dotes rítmicos, fica a ver. Dentro de si, a vontade de participar no movimento colectivo debate-se com a falta de autoconfiança. Põe a hipótese de o melhor ser sair dali, mas, depois de antever a violência de se reconhecer como um derrotado, como um incapaz, opta por dar a ideia de que se sente bem assim, parado, apenas a olhar. Apoia-se, entretanto, na bebida e no tabaco - e, cada vez menos dono de si, questiona-se também sobre se estas ‘muletas’ não prejudicarão a imagem que está a transmitir aos outros, se não o tornarão ainda mais fraco aos olhos do todo, de que não sente fazer parte. A páginas tantas, junto a uma pessoa sua amiga que se aproxima e pergunta por que não dança, você assume não conhecer o léxico dos passos, não sentir o ritmo, não acreditar nas suas capacidades, enfim, tudo somado, confessa-lhe que é a pessoa errada no lugar errado.

Agora imagine que o lugar errado é o lugar, ponto. Ou seja, não há outro. Você tem de aprender a dançar. Rendido à inevitabilidade, já depois de aceite o facto de que prolongar a recusa só lhe vai causar mais sofrimento, percebe que, para se integrar, necessita de superar os seus medos. Aí, a sua amiga ajuda-o a relativizar o peso dos outros, da massa dançante, dizendo que cada um está entregue a si mesmo, que se alguém olhar para si e gozar consigo, com o seu processo de aprendizagem, é porque esse alguém não usa da verdade, ele próprio não está seguro de si e assume a estratégia mais fácil e mais cobarde para se legitimar ali, que é procurar sacudir para outra pessoa a chacota de que teme ser alvo. Você, contudo, nesse momento, acha mais possível a mimese do que a expressão individual - está nos antípodas da liberdade e só quer passar despercebido. A música, por outro lado, não bate cá dentro, não faz eco no seu corpo, não o aquece, só o petrifica. A sua amiga passa por si, pisca-lhe o olho e diz-lhe para sentir, mesmo parado. Diz-lhe para ver como um direito o que se lhe afigura como um dever. Diz-lhe que numa piscina há os que nadam impecavelmente, os que disparatam, os que brincam, os que chapinam, os que dão mergulhos, e todos se divertem. É nisto que as metáforas são úteis. Você reflecte e faz um gesto tonto. Ri-se. Depois faz outro. Ou seja, assume o ridículo, é-lhe mais fácil, para início. Está na margem oposta à do pretendido, mas está porque quer, não porque almejou a outra e, dando um passo maior do que as pernas, caiu ao rio. Pelo menos, sente, já está lá, no quadro grande, no todo. Pouco a pouco, vai pondo um pé na água, outro, molha a perna até ao joelho, depois demove-se, com o frio e a corrente, espera um bocado, volta a fazer o mesmo, depois as coxas, ainda sentado na margem, e alguma coisa, que já não alguém, que já não a amiga mas alguma coisa sua, uma voz interna, lhe vai dizendo que o processo não é assim tão mau, até provoca sensações curiosas, agradáveis. Paralelamente, a ideia de chegar ao outro lado vai perdendo importância, embora com uma lentidão que retira nitidez a uma consciencialização sua das pequenas vitórias que grão a grão, como numa ampulheta que se vira ao contrário, está a acumular. Mesmo que demore muito a sentir a utilidade deste trabalho pessoal para o todo, já sente a utilidade pessoal de todo este trabalho, e isso é fundamental. Tem aí, de resto, um sinal claro de que o objectivo tende a abstractizar-se à medida que o processo se concretiza, ou seja, de que ele existe apenas para desaparecer, qual miragem no deserto, e isso, por paradoxal que pareça, não só não o demove como o motiva, fá-lo aumentar a capacidade de saborear as coisas, os momentos, cada vez com mais detalhe, dando-lhe a ideia de que a sua sensibilidade se subdivide, se reproduz, se multiplica. O eu que fiscalizava dilui-se pouco a pouco no eu que se mexe e, de um modo cada vez menos racionalizado, entram ambos no ritmo, dançando juntos. O primeiro passo fluído da dança é o primeiro passo fluído da integração, o eu e o eu já só um, olhando o tu olhos nos olhos, com apetite. A partir de então, como numa penetração sexual, tudo se humedece e abre, espantosamente. Parece que o mundo é seu, mas é e não é, ou melhor, é tão seu como do Outro. O orgulho da autosuperação leva-o a exibir-se, a exagerar na presunção de domínio, a abusar do poder. A sua amiga aproxima-se e, gentilmente, pontua-o, lembrando-lhe que uma guerra ganha tem muitas batalhas perdidas. A noite desliza consigo e, música a música, corpo a corpo, você vai percebendo que um novo dia está para nascer. Seja bem vindo ou bem regressado.
publicado por Carlos Loures às 19:30
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Sexta-feira, 6 de Agosto de 2010

O sofá de pedra



Marcos Cruz

A história que vos vou contar podia sair-me das mãos numa rajada, mas eu não nasci para ir directo aos assuntos. Percebi isso quando perdi a virgindade. Foi estranho. Os meus amigos tinham-me pressionado tanto a invadir a minha namorada que, na hora h, parecia que o meu pénis ia às finanças. Claro que ejaculei precocemente. O que vale é que não culpei o acto em si, culpei-o em mim, isto é, compreendi que sem sol não se faz praia, que cada prazer pede o seu clima. Com essa namorada, porém, o destino estava escrito. Como Deus, quando fecha uma porta, abre uma janela, o mesmo destino quis que, antes de conhecer a minha terceira namorada (e não a segunda porque à segunda nem as mamas lhe apalpei, apesar de ter andado dois meses com ela), eu descobrisse um sítio mágico, hoje dir-se-ia um spot, numa zona rochosa da praia de Cabedelo, para lá do Hotel Casa Branca, quem vem do Porto. Era um calhau talhado pela bravura do mar em forma de sofá ou chaise longue, um presente romântico do grande arquitecto para a minha pequena pessoa, como a lembrar-me de que nem tudo estava perdido. Reconheci logo ali um potencial extraordinário. E, assim que pude, numa noite cravejada de estrelas, levei lá a rapariga que, entretanto, me entrara pelos olhos. A conversa, a brisa costeira, a aura de altar impossível, com um véu lunar a sair-nos dos pés, na incerteza da água, para um horizonte também ele indefinido, mistificaram o beijo que acabaríamos por dar, certos de que haveria de ser o primeiro de muitos, como foi, e certos de que haveríamos de ser os últimos um do outro, como não fomos, nem sequer naquele sofá.



Se é verdade que os casos de amor deixam sempre marca, a rocha ergonómica nunca se viu beliscada - também, quem é que ia beliscar uma rocha… - na sua infalibilidade como acendalha da mais crepitante das ilusões. Pelo tempo fora, tive ali a boca de cena perfeita para o ritual iniciático da paixão, uma espécie de zona (pouco) franca entre o divã e o confessionário, onde me encontrava sempre com cada nova mais-que-tudo, como num casting mútuo, de olhos apontados ao filme mais estrelado, a passar desde o princípio das noites na tela infinita. Um dia, ao cabo de muitos anos, dei-me conta de que a marginal de Gaia estava a ser substancialmente alterada, para que o usufruto de toda a linha de praia ganhasse qualidade, quer na perspectiva de quem passa, de carro ou a pé, pois a proposta era melhorar as estradas e construir um percurso pedonal de madeira até Espinho, quer na de quem fica, uma vez que iria ser ampliada a oferta de bares e esplanadas. Eu, claro que afastei essas promessas como quem abre as cortinas do quarto à espera de que o dia não esteja chuvoso e fui, disparado, procurar o calhau, mas, depois de umas voltas para trás e para a frente, não vislumbrei sequer o meu ponto de referência, que era uma curva, uma curva que já era, pelos vistos. Fiz uma espécie de varrimento emocional, que é como quem diz um apelo à memória afectiva para vestir a pele de detective, e corri as áreas rochosas, saltando de pedra em pedra, sem, contudo, descortinar o paradeiro do sofá. Se, por um lado, se me afigurava impossível, criminoso até, alguém ter removido dali o ex-libris costeiro do Grande Porto, por outro eu era obrigado a reconhecer que mais ninguém, além de mim, lhe atribuía esse estatuto, donde a minha frustração tinha uma raiz essencialmente egoísta. Voltei lá depois disso, em ocasiões dispersas, só para confirmar o desaparecimento, e ainda hoje, devo confessar, há um cantinho de mim que não se dá por convencido. Mas é mera teimosia. Afinal, a mulher com quem vivo, o amor da minha vida, nunca se sentou naquele sofá. Foi a primeira e única, como se, fechando a porta dos enganos, Deus me tivesse aberto, enfim, a janela da verdade. Por isso, acho que está na hora de pôr uma pedra sobre o assunto. 




(Ilustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 11:00
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Sexta-feira, 16 de Julho de 2010

O criador de pássaros

Marcos Cruz


Hoje entrou uma gaivota na minha loja. Era escura, como se tivesse saído de uma chaminé, e tinha o bico preto. Um senhor que vinha a passar, também ele escuro, talvez indiano ou turco, não sei, é que me explicou que as gaivotas nascem assim e só uns meses mais tarde, como a luz que emerge das trevas, se cobrem de branco e amarelecem o bico, naquilo que mais parece um disfarce, uma candura enganosa, pouco condizente com os seus dejectos fecais, largados lá do alto, quais mísseis, para corroer as superfícies edificadas do mundo. À minha mercê, e logo à minha, ou não fosse eu um Cristo da fisiologia voadora, estava um tenro exemplar de gaivota, num precário equilíbrio de patas, mas aparentemente sem medo, curioso até, revelando vontade de fazer uma vistoria à loja e observar com detalhe cada um dos objectos expostos. O meu primeiro impulso foi olhá-la, certificar-me de que nada de errado, para além do óbvio, que era uma gaivota entrar, com ares de cliente, numa loja, lhe teria acontecido, tipo uma queda, uma luta, um ferimento. Depois decidi dar-lhe o seu tempo, deixá-la estar, até que, presenciando o crescer do seu conforto, optei por ir ao café em frente comprar um pão e seduzi-la com migalhas para junto da porta.

Sem gestos bruscos, debicou uma e deitou-a fora, esclarecendo-me sobre a sua falta de fome. Na rua, alguns transeuntes iam parando, pelo insólito de uma montra-ninho. A vizinha do lado, tirada dos seus vagares, prontificou-se a resolver o caso e, assertivamente, mas com a necessária delicadeza, pôs a gaivota fora da loja. Como pegar-lhe e devolvê-la à mãe passou, então, a ser o problema. Alguém ali se lembrou de um caixote. Veio uma caixa de cartão apanhada no lixo. Assumia protagonismo a mais desastrada falta de jeito quando uma mão vinda não se sabe de onde ergueu majestosamente a ave e, contemplando os presentes com um olhar sagaz, explicou: “Fui criador de pássaros”. Eu já tinha visto a cena do médico que aparece exactamente quando um indivíduo cai no chão, acometido por um problema cardíaco, ou algo assim, mas o súbito surgimento daquele criador de pássaros, como um relâmpago vindo de todas as incapacidades ali presentes, afigurou-se-me extraordinário. Talvez por se ter apercebido disso, ou então por outra qualquer razão, quem sabe até por uma razão derivada da que levou a gaivota a entrar na minha loja, o rapaz escolheu os meus olhos como alvo da intrepidez, quase loucura, que enchia os seus. “Para lhe pegares, é assim, por trás”. Disse isto e ia-me passar o bicho, que gritava e tentava à força toda espetar-lhe uma bicada, arrancar-lhe a ponta do nariz. Eu, para trás, dei mas foi um salto. O criador de pássaros não me disse mais nada. Desandou, rua fora, com a gaivota nas mãos. Eu segui-o e vi que, minutos depois, já estava ela no seu habitat, provavelmente pondo a mãe ao corrente da aventura. Voltei para a loja constrangido, como quem acabou de ser ensinado mas não aprendeu a lição, e questionei-me sobre o sentido que faria o recém-terminado episódio, se é que fazia algum ou estava destinado a fazer. Mais tarde, na varanda de casa, interpelando a noite, ouvi um ruído de gaivota. E, como se uma luz alva tingisse o cinzento das minhas penas, assolou-me a ideia de que os sentimentos escuros não são mais do que pequenas águias que encalham no nosso íntimo e dele não saem enquanto não os conhecermos o suficiente para sabermos como e por onde lhes pegar, aonde querem ir e como os ajudar. Aprendê-lo, desprendê-los, deixa a mãe deles descansada e poupa-nos à sua visita. Bem hajas, criador de pássaros.
publicado por Carlos Loures às 19:30
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