Segunda-feira, 27 de Setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra 120

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Manuela Degerine

Capítulo CXX

Epílogo

A mulher que via passar os comboios

Cheguei ontem de Santiago de Compostela. Neste momento desço a Almirante Reis, atenta a quem por mim passa, não apenas por, nesta avenida, a atenção ser necessária, mas igualmente por curiosidade. Não conheço em Paris nada que se assemelhe a esta avenida... Há as prostitutas, não apenas as profissionais do Largo do Intendente que, não raro, vão e vêm, mas também uma ou outra, em fim de carreira que, de vez em quando, tenta por aqui o negócio; e, claro, lá em baixo, na esquina da Rua da Palma com a de S. Lázaro, encontram-se várias de serviço. Há os clientes. Há os chulos e seus assessores. Há os sem-abrigo, cuja cantina se situa em frente da igreja dos Anjos e, por esta razão, pouco daqui se afastam. Há os drogados, com ou sem abrigo, arrumadores ou não de carros, muitos discretos, alguns excitados, não poucos buscando financiamento, outros alheios a qualquer realidade, um parece dormir no meio do passeio, uma arruma o entulho dentro do contentor... Há os vendedores de droga e seus adjuvantes. Há os bêbedos que transbordam das tascas para o passeio. Há romenos assaltando os passantes e romenas arrecadando a receita. Há comerciantes chineses e indianos, há clientes indianos e chineses. (Não confundir os romenos com os indianos. Quanto às romenas e indianas, exclui-se qualquer confusão.) Há os chineses das limousines e seus guarda-costas. Há africanos de todas as origens, atraídos por acasos, tráficos e convívios. Há as brasileiras novas com portugueses velhos. Há as donas de casa. Há os clientes dos cafés, cervejarias, restaurantes e marisqueiras. Há os turistas dos hotéis. Há brasileiros de chinelo, senhoras de chapéu, gente tatuada e perfurada. Há pais que vão buscar os filhos à escola. Há o arquivo fotográfico, seus artistas, técnicos e visitantes. Há a Misericórdia, há as associações. Há os empregados e clientes de supermercados, lojas de fruta, material de cozinha, electrodomésticos, bugigangas, móveis novos e em segunda mão, roupa nova e em segunda mão... Para abreviar, digamos: há de tudo nesta avenida.

Trago na mão a máquina fotográfica. Surge uma cena, um rosto, uma corda de roupa, um pormenor que me chama a atenção: tiro uma fotografia. (De maneira discreta.) Desço portanto a avenida com paragens e ziguezagues.

De súbito reparo numa mulher. Vista de costas, baixa, magra, com o cabelo comprido, nada chama a atenção de maneira espectacular, noto porém que o comportamento dela se parece, de certa maneira, com o meu... E, logo: reconheço-a. Não esperava encontrá-la aqui.

- Rita!

Parece não ouvir. Corro e ultrapasso-a.

- Olá!

Surpreende-me a maneira como se veste. Não me ocorreria associar aquelas peças de roupa, que aliás desconheço, imaginei-a sempre com trajo de caminhada; afinal fica-lhe bem.

Ela enfatiza de imediato o descontentamento.

- Queres o quê?

Eu mostro-me apaziguadora.

- Nada. Ou antes: quero notícias. Enfim... Sem ser indiscreta... Não és obrigada a aturar-me.

- Boa nova.

O tom é quase agressivo; eu sorrio.

- Chegaste a Lisboa quando?

- Ontem.

- E ficas por cá?...

A minha atitude parece exasperá-la.

- Achas a conversa necessária?

Um homem pára à minha frente: haverá gritos e puxões de cabelo?
publicado por Carlos Loures às 10:00
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Sábado, 25 de Setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

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Manuela Degerine

Capítulo CXVIII

Conclusões

Estou a escrever no dia 10 de Setembro de 2010. Regressei há quatro meses e reintegrei-me na vida lisboeta. Quase como antes.

Impõe-se agora questionar:

- O que resta do Caminho de Santiago?

Em primeiro lugar houve um considerável alargamento da minha terra. Até aqui eu conhecia a região de Lisboa, Tomar e os arredores, Sarzedas do Vasco e seu enquadramento, as paisagens do Alentejo, alguns espaços da orla costeira, os museus e cidades do centro e sul do país... Conhecia melhor Portugal do que a maioria dos outros portugueses; mas seguindo sempre pelas estradas. O Caminho de Santiago deu-me outro ponto de vista.

O património de um país não se encontra apenas em museus, monumentos e espaços protegidos pela Unesco; a travessia de Lisboa a Valença revelou-me paisagens de um inestimável património natural. Os percursos entre Arneiro das Milhariças e Fátima tal como entre Barcelos e Valença foram os supremos momentos desta descoberta. (Chorei diante da televisão quando, em Julho e Agosto, vi arder as florestas por onde passei.)

Confirmei o que suspeitava: entre Lisboa e Santarém, fora das auto-estradas e circuitos turísticos, as águas são cloacas, a terra é lixo e os ares serão tudo menos saudáveis. Enquanto caminhava lembrei-me daqueles desenhos que mostram como a Terra pode vir a ser – se não reagirmos. Pois... A região de Lisboa e Vale do Tejo já é assim. Neste ambiente catastrófico sobrevivem alguns animais, algumas plantas e muitos seres humanos. Estes demonstram uma extrema capacidade de adaptação porém, caso haja estatísticas, encontrar-se-á, sem dúvida nenhuma, uma taxa de mortalidade elevada. O desprezo pelos habitantes é evidente até na falta de infra-estruturas tão básicas como os passeios e, quem atravessa esta região, deduz que, para as autoridades, não vivem ali pessoas mas unicamente: mão-de-obra barata e descartável.

Isto não parece ser, apesar de tudo, o que no imediato mais atormenta a população. A poluição mata embora, na aparência, de modo lento; por isso o pior flagelo no presente, que a cada instante condiciona os gestos e o relacionamento – é a insegurança. O medo foi a reacção com a qual mais me confrontei até chegar a Coimbra. A partir dali estes problemas parecem atenuar-se de maneira progressiva; embora variável. Num contexto tão desumano, encontrei todavia pessoas atentas, generosas, curiosas e, à medida que avançava para Norte, notava que se mostravam progressivamente mais afáveis: a sua natural inclinação. O governo actual, como todos os precedentes, descura a segurança: oferece portanto à extrema-direita este problema tão essencial para a vida quotidiana e económica da população.
publicado por Carlos Loures às 10:00
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Quinta-feira, 23 de Setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

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Manuela Degerine


Capítulo CXVI

Vigésima sexta etapa: em Santiago de Compostela (continuação)

Percorro a cidade tentando ultrapassar um mal-estar que, em certos momentos, chega a ser vertigem. Nunca sofri de agorafobia mas aqui há instantes durante os quais, presa na multidão, no aperto de uma rua, preciso de fechar os olhos, respirar com calma – a angústia acalma-se.

Subimos à Oficina do Peregrino, na Rua do Vilar, para requerer a compostela. Pensava não a pedir, todavia agora, acompanho Sérgio; saio com ela na mão. Mais um diploma, afinal, nem mais nem menos importante do que os outros... Nenhum me obrigou a transpirar tanto e, vendo bem, não é certo que, para obter os outros, aprendesse mais.

O roteiro de Sérgio informa que o Parador Los Reyes Católicos, um hotel de cinco estrelas, oferece todos os dias, às 19 horas, o jantar aos dez primeiros peregrinos que apresentem a compostela. Não tenho paciência para isso – marco encontro com o meu companheiro de viagem às oito e meia. Amanhã vou-me embora... Prefiro passar estas horas nas ruas da cidade.

Entro na catedral: a bicha foi vencida. Sento-me a rememorar os encontros. Os bombeiros que me acolheram, o ucraniano que me deu boleia, os habitantes que me encheram a garrafa, os que me explicaram o caminho, os que pararam para conversar, os alberguistas benévolos, a senhora da promessa incumprida, os donos do café e supermercado em S. João de Ver, o automobilista de Grijó, a D. Graziela e o marido, o dono da pastelaria em Ponte de Lima, a massagista de Pontevedra... E Maria: que curou as minhas bolhas. E os venezianos: que partilharam o jantar comigo. E os outros. Muitos outros. Consulto o diário: não me quero esquecer de ninguém. Quase todos são católicos praticantes aos quais devo um agradecimento. Eu não acredito em orações – mas eles acreditam. E por isso me quero lembrar aqui deles.

Volto para a cidade. Dou voltas e mais voltas pela zona histórica. Tiro fotografias de gente a tirar fotografias, inevitavelmente, neste espaço saturado turistas, sentindo-me incapaz de, aqui e agora, atentar no que vejo. Talvez consiga ver a cidade no ecrã do computador – eu, que prefiro sempre as experiências directas. Estranho, não é?...

Agora, embora teime, é-me impossível. Repito a mim mesma que estrago os minutos de que disponho para conhecer Santiago de Compostela porém, ao mesmo tempo, interrogo o que – até hoje – nunca interroguei. Se não conheço Lisboa, onde vivo, hei-de conhecer Santiago? (Começo a tornar-me subversiva: a pergunta destruiria a indústria do Turismo, uma das mais poderosas na UE.) Lisboa é ou não a Torre de Belém? Também é. No entanto, quem visita a Torre de Belém, talvez conheça a Torre de Belém, se acaso conhecer, se não tirar apenas fotografias, antes dos pastéis; não conhece Lisboa. Não ignoro contudo que, para além de Santiago de Compostela (aliás a cidade interessar-me-á, quando voltar ao estado comum), esta catedral me é necessária para compreender a cultura europeia. Mas será que, pela simples presença neste espaço, me confundo com o Peregrino do tango? Sento-me a reflectir nisto tudo.

Eu, entre família e amigos temida como visitadora de museus, exposições e monumentos, aquela que se apresenta na abertura, que permanece até a empurrarem para a rua, nesta cidade de pedra e gente, com palácios, praças, igrejas, ruas, torres, românicas ou barrocas, órgãos, arcadas, colunas, capitéis, terraços, telhados, varandas, galerias, pátios, portais, pirâmides, escadas, grades, cantarias, brasões, fontes, cavalos, conchas, espirais, demónios, anjos, santos, apóstolos, Cristos, Santiagos, Nossa Senhora da Cerca, Fuga para o Egipto, Colexio de San Xerome, lajes gastas pelos pés, estilos justapostos e sobrepostos, pois, nesta cidade de Santiago de Compostela, após vinte e seis dias de caminhada para cá chegar: sinto-me alheia ao que vejo.

A maior diferença entre os peregrinos da Idade Média e os actuais é que agora, se quisermos, compramos um bilhete, apanhamos um avião, chegamos no mesmo dia. Por isso hoje, quem quer conhecer Santiago de Compostela, vem a Santiago de Compostela – não caminha durante vinte e seis dias. Agora o Caminho de Santiago existe por si mesmo; não é o que nos conduz aqui. No fim deste caminho, claro, há Santiago de Compostela, uma cidade que faz parte de outra vida, na qual fomos turistas, percorremos os museus e comprámos prendas, como toda a gente, na qual voltaremos provavelmente a inserir-nos. Eu, neste momento, sou peregrina.

Sinto-me aliviada quando por fim assento que não me encontro aqui para ver monumentos. Hei-de voltar. De avião. Com guias estudados e visita sistemática.

Compro uma sanduíche e como-a deambulando pelas ruas; agora menos cheias. Telefono à família. Cruzo-me com os alemães de Valença, dormiram no Parador Los Reyes Catolicos. (Quando voltar dormirei no Parador.)

Volto a encontrar-me com Sérgio. (O meu camarada traz-me um pedaço de tortilha e outro de tarte de amêndoa. Saboreio com mais apetite.)

Descrevemos várias linhas curvas à volta da catedral. Passamos outra vez pelo falso peregrino. Resistimos a repetidas ofertas de torrão de amêndoa ou de bolo de chocolate. Os Caprichos de Santiago. As Tartas de Santiago. O Casal Coton. Um termómetro indica seis graus.

Regressamos ao Seminário Menor.
publicado por Carlos Loures às 10:00
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Quarta-feira, 22 de Setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

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Manuela Degerine

Capítulo CXV

Vigésima sexta etapa: em Santiago de Compostela

De Ponte de Lima até aqui, isto é, desde que há albergues, pouco nos inquietou a localização, entre sinais e indicações do roteiro, lá nos dirigimos sem hesitar. Por isso e – sem dúvida – por não querer pensar no fim da viagem: não preparei a chegada a Santiago de Compostela. Prepará-la seria informar-me, tanto nos albergues precedentes como entre os peregrinos, sobre as características e localizações dos diferentes albergues. Falaram-me de um situado por detrás da catedral, Sérgio dispõe de uma direcção que lhe corresponde; procuramos. Depois de várias idas e vindas, com as mochilas, claro, mais os vinte e dois quilómetros com elas percorridos, evidentemente, após ziguezagues, questionamento de habitantes e empregados de lojas, quando lá chegamos, declaram-nos que o pretendido se encontra fechado.

Encontramos as peregrinas espanhola e romena. Eufóricas: exibem a compostela.

- Não vão buscar a vossa?!

- Procuramos um albergue.

(A rapariga espanhola apanha, daqui a bocado, um autocarro para regressar a casa.)

Gérard Rousse recomenda o Seminário Menor de Belvis. Fica afastado do centro, cumpre descer uma encosta a pique, depois subir igualmente a pique, escalar altos degraus, o sol queima, a mochila pesa, as costas doem... (Talvez por me encontrar em fim de etapa, quando atinjo o cume, mais árduo – parece-me – do que os quinhentos metros, não reparo na vista nem nestes muros e paredes de pedra...)

Alcançado o píncaro do seminário, com numerosos edifícios, diversas ruas, nada nos orienta, abrimos várias portas, não é ainda ali, inquietos vagueamos, com as mochilas às costas, como se imagina, talvez nos enganássemos, talvez o albergue fechasse, não vemos ninguém, avistamos por fim, ao fundo da rua, lá em baixo, um casal, corro – de mochila ainda às costas – para inquirir, o rapaz estudou no seminário, conduz-nos à recepção.

Entramos. Largamos enfim as mochilas. Fazemos bicha. Chega a nossa vez. Acolhimento maquinal e em inglês, tudo tarifado, a cama, 10 euros, meia hora de Internet, 1,75... And so on. (Na cave há um supermercado, mesas e cadeiras, duas placas eléctricas – e nenhuma loiça.)

Centenas de camas distribuídas por três andares: buscamos as que nos foram atribuídas. Ao lado dormem os espanhóis do telemóvel e, logo a seguir, a rapariga romena. Percorro um quilómetro pelos dormitórios esperando ver Paul – terá ido para outro albergue. (Entretanto encontrei mais duas direcções nos documentos fornecidos em Ponte de Lima: Monte do Gozo e San Lázaro.)

Descemos à cidade. A multidão comprime-se nas ruas à volta da catedral. Já durante a busca do albergue sentimos o barulho, o movimento, os encontrões, a solicitação... As lojas de lembranças, vieiras, bordões, capas, chapéus, cabaças, postais, camisolas, porta-chaves, sobrepõem-se às arcadas e edifícios. Os empregados insistem para nos oferecer torrão de amêndoa, bolo de chocolate e outras iguarias. Convento de Dominicas. Pedras de Santiago. Mejillones en Escabeche. Neste momento as especialidades não me tentam. Fujo da quilométrica bicha para entrar na catedral, mais parece um dragão, valha-nos São Jorge... (Ninguém ignora a repartição de competências entre os santos: o combate com o monstro não é a especialidade de Santiago.)

Avisto o peregrino das publicidades e documentários. Recortei uma capa do Cartaz do Expresso (16 de Maio de 2009) com o título Fé itinerante, Os místicos Caminhos de Santiago apresentados numa série. Não vi a série mas conservo a capa com o cliché do peregrino medievo que, ao lado da catedral, exibe a farda e a fisionomia beata. Neste momento, quanto a estereótipos, também nada lhe falta, a capa, a cabaça, o chapéu com a vieira, o bordão com a vieira... Porém hoje usa óculos (considerados anacrónicos no documentário da National Geographic), traz um cigarro na mão e calça sapatos de dançarino de tango. O kitch turístico... Não é diferente de Bruges, de Veneza ou do Mont Saint-Michel mas, para mim, neste instante: devera sê-lo.

Todos os peregrinos experientes me preveniram, a chegada a Santiago de Compostela não é repousante, após tantos esforços, nem eufórica, após tal caminhada... Não dei ouvidos, certa de, chegada aqui, me adaptar sem transição. Vivo em Paris. Vivo em Lisboa. Sei o que posso e devo esperar numa cidade – seja ela incomparável. (E por isso turística.)

Por conseguinte: não percebo. Digo cá para mim... Isto vai passar. São os primeiros minutos. É a primeira hora.
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Segunda-feira, 13 de Setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra


Manuela Degerine

Capítulo CVI

Vigésima quarta etapa: em Brialhos

Chega um grupo de quinze ciclistas portugueses. São funcionários da CP e vêm de Coimbra, Águeda e Mealhada. Inicialmente havia um dormitório masculino e outro feminino; com a chegada deles, numerosos e todos homens, deixa de haver distinção. (A vantagem dos dormitórios separados é que, em geral, as mulheres ressonam muito menos...)

Pago também o albergue e depois sento-me a escrever. Converso com uma alemã que estuda, através do programa Erasmus, numa universidade galega. Juntando o fim-de-semana e um feriado (segunda-feira), faltando dois dias às aulas, planeou percorrer, com outros colegas mais dois mexicanos (que entretanto conheceram) o caminho de Tui a Santiago. Pretendem chegar no domingo e por isso têm-se apressado. Hoje saíram de Redondela e calcorrearam duas etapas; ora, quando chegaram aqui, cansados como vinham – só restavam três lugares. As raparigas ficaram mas, embora tontos de cansaço, os rapazes prosseguiram na direcção de Caldas dos Reis. Isto por causa dos ciclistas que bem podiam ter continuado até Caldas...

Desço à cozinha, que se encontra no rés-do-chão, para verificar se a frigideira permanece suja. Apanho o alberguista a lavá-la.

- Não a lave: é a frigideira dos alemães!

O senhor encolhe os ombros.

- Acha que é esquecimento? Se quisessem não a tinham lavado? Vão pôr o despertador a apitar mais cedo?... Prefiro lavá-la eu agora. Sabe... Estamos no meio do campo: se não houver cuidado, entram logo aqui ratos.

(Ainda bem que escolhi um beliche superior.)

Deito-me cedo porém, com tanto homem na camarata, volto a ser incomodada. O meu vizinho de beliche é dos mais sonoros; e, o pior: sonha que vai a pedalar. Cada vez que começo a adormecer, a criatura recomeça a espernear – acorda-me!
publicado por Carlos Loures às 10:00
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Terça-feira, 31 de Agosto de 2010

Hoje falei com o Sérgio Godinho

Manuela Degerine

Não pertenci à categoria de adolescentes que cobria as paredes do quarto com imagens dos ídolos. Eu naquela época escrevia poemas-de-álvaro-de-campos ao quilómetro e à compita com a Ana Rodrigues; uma amiga. Reuníamo-nos para ler uma à outra as respectivas obras que achávamos quase tão geniais como as do Poeta. (Anos mais tarde, os textos pareceram-me insuportáveis e, talvez por revelarem, de maneira ingénua e sincera, facetas que preferia ignorar, deitei-os no lixo – o que agora lamento.)

Naquele tempo tão distante que sinto tentações de empregar o latim, in illo tempore cheguei a ter na mão uma fotografia de Fernando Pessoa porém, em vez de a pregar na madeira da estante, o primeiro impulso – arrumei-a numa gaveta. É que, então, para mim, o poeta futurista não se podia confundir com aquele bisavô de chapéu. O Álvaro de Campos continuava a ter constipações e dúvidas metafísicas, era meu contemporâneo e, compreendo agora, por me falar de mim, não podia ter rosto.

Descobri na mesma época as canções de Sérgio Godinho. Perguntará o leitor: qual a relação?... Pois: tal como o Álvaro de Campos, o Sérgio Godinho emprestou-me palavras para a conquista de mim. As suas canções dizem a poesia, a revolta, o amor, a liberdade... Traçam um percurso que, não raras vezes, se cruzou com o meu.

Ouvir uma canção, ler um poema ou um romance, é entrar em colisão com a singularidade de um autor, por isso todos vivemos grandes paixões com os nossos autores preferidos. Durante a adolescência o meu coração balançou muito entre o Álvaro de Campos e o Sérgio Godinho; comparados com eles, os colegas do liceu diziam-me frases bem triviais...

Cresci. Não tanto como pode parecer; mas passei a distinguir a poesia da interacção com os outros. Alguns rapazes começaram a aguentar o peso as comparações, aprendi que ninguém, nem o Álvaro de Campos, poeta futurista e tudo, detém o monopólio do génio, vi-me a aprender o peso ou o sentido da vida, por vezes, nas revelações de homens e mulheres iletrados.

Fui viver para França, os anos sucederam-se; continuei a ouvir o Sérgio Godinho. Nunca assisti a espectáculos pois, sempre que havia algum, não me encontrava em Lisboa. Até que, no princípio do mês de Junho de 2010, um dia, estava a lavar a loiça – e, quando estou na cozinha, costumo ouvir rádio. De súbito entrevistam a Inês Pedrosa, oiço-a expor o programa comemorativo do nascimento de Fernando Pessoa, 10 de Junho; e anunciar um espectáculo de Sérgio Godinho.

Vim, claro. Encontro-me de pé. Desligaram a iluminação na rua Coelho da Rocha e produzem os habituais cenários de luz colorida. Aos quais se juntam aqui, de vez em quando, os pássaros luminosos que, com luzes azuis e vermelhas, piscam acima do palco antes de se poisarem nas pistas do aeroporto. Nunca mais fixarei os aviões com o olhar de antigamente... Depois de me dar palavras de força e rebeldia, o cantor oferece-me esta beleza escondida no quotidiano. (A realidade é o modo como olhamos para a realidade; e um artista verdadeiro, pintor, escritor, cantor, revela-nos de maneira nova o que já pensávamos conhecer.)

Os outros espectadores cantam as canções com Sérgio Godinho. Eu sinto-me demasiado comovida para poder cantar. Se cantar, chorarei – e será ridículo. Tenho os olhos e as orelhas do tamanho dos pássaros que voam por cima do palco. Para além do autor e intérprete que conheço, este cantor tem 40 anos de profissionalismo e de cumplicidade com o público: é na verdade um grande espectáculo.

Nunca desejei aproximar-me das pessoas que os cantores ou autores também são. Aliás o encontro casual com alguns tem-me confirmado o que sei: põem o melhor de si no trabalho publicado. E, como vivemos numa sociedade que difunde – às vezes – estas obras, se as encontro, compro-as, leio-as, oiço-as... Não preciso de mais nada.

No tempo em que ainda ia à praia, isto é, há muitos anos, estive numa a poucos metros de distância de Sérgio Godinho; evidentemente: não o importunei com a minha admiração.

E hoje... Eu saía do MNAA e tinha ido buscar a bicicleta que, enquanto eu participava numa visita guiada das tapeçarias de Pastrana, ficara presa a um poste, por o museu não dispor de espaço ad hoc, depois subi a pé a Rua das Janelas Verdes para voltar à ciclovia na beira do Tejo. Vi chegar em sentido contrário dois peões que, naquela rua, costumam ser turistas; e, como é natural, por ocupar muito espaço com a bicicleta ao meu lado, quando passavam por mim, colei-me à parede:

- Faz favor...

- Deixe estar!

Era o Sérgio Godinho.


publicado por Carlos Loures às 23:55
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A Manuela Degerine diz: "Hoje falei com o Sérgio Godinho" - e não é que o trouxe ao Espaço VerbArte?

Manuela Degerine


Não pertenci à categoria de adolescentes que cobria as paredes do quarto com imagens dos ídolos. Eu naquela época escrevia poemas-de-álvaro-de-campos ao quilómetro e à compita com a Ana Rodrigues; uma amiga. Reuníamo-nos para ler uma à outra as respectivas obras que achávamos quase tão geniais como as do Poeta. (Anos mais tarde, os textos pareceram-me insuportáveis e, talvez por revelarem, de maneira ingénua e sincera, facetas que preferia ignorar, deitei-os no lixo – o que agora lamento.)

Naquele tempo tão distante que sinto tentações de empregar o latim, in illo tempore cheguei a ter na mão uma fotografia de Fernando Pessoa porém, em vez de a pregar na madeira da estante, o primeiro impulso – arrumei-a numa gaveta. É que, então, para mim, o poeta futurista não se podia confundir com aquele bisavô de chapéu. O Álvaro de Campos continuava a ter constipações e dúvidas metafísicas, era meu contemporâneo e, compreendo agora, por me falar de mim, não podia ter rosto.

Descobri na mesma época as canções de Sérgio Godinho. Perguntará o leitor: qual a relação?... Pois: tal como o Álvaro de Campos, o Sérgio Godinho emprestou-me palavras para a conquista de mim. As suas canções dizem a poesia, a revolta, o amor, a liberdade... Traçam um percurso que, não raras vezes, se cruzou com o meu.

Ouvir uma canção, ler um poema ou um romance, é entrar em colisão com a singularidade de um autor, por isso todos vivemos grandes paixões com os nossos autores preferidos. Durante a adolescência o meu coração balançou muito entre o Álvaro de Campos e o Sérgio Godinho; comparados com eles, os colegas do liceu diziam-me frases bem triviais...


publicado por Carlos Loures às 00:30
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Segunda-feira, 12 de Julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra



Manuela Degerine

Capítulo XXXVI

Inquietude

No dia 1 de Maio volto a Tomar. A viagem é mais demorada do que eu previa: por causa das obras na linha, há transbordo para autocarros. Chego a casa às onze da noite e só então começo a preparar as bagagens para o Caminho de Santiago…

Planeava partir com a mochila das primeiras etapas, logo uma observação rápida me obriga a desistir: uma das anilhas parece prestes a soltar-se. Mais uma… Impõe-se por isso levar a outra, mais pesada, mais desconfortável, mais malcheirosa, mesmo no primeiro dia, por absorver a transpiração – mas mais resistente. Desta vez quero ir tão longe quanto puder. Portanto, de preferência: até Santiago de Compostela.


Ainda hesito se posso incluir isto ou aquilo na bagagem. Opto, para além do que terei vestido, por três camisolas de algodão e uma de fibra especial para as caminhadas que, diz o fabricante, é leve, quente e deixa o corpo respirar, dois pares de calças, dois de peúgas, dois sutiãs e duas cuecas. Crocs para o duche. Uma toalha pequena. O saco-cama dos quinze graus (estamos em Maio). Um saco-lençol de linho, para não dormir em contacto com fibras artificiais; e, se o tempo estiver quente, dormirei com ele apenas. Protecção para a chuva: capa, blusão, polainas. O mínimo de medicamentos e produtos de higiene. O meu diário. Telemóvel, máquina fotográfica e seus respectivos carregadores de bateria. Um canivete. E um saco de produtos alimentares que não encontrarei nas mercearias. Ou seja, leitor trocista... Quase não me atrevo a escrevê-lo. Bem... Como diria o meu admirado A., verdade e mais verdade, não é? Pois, então: trinta e duas barras com proteínas, vitaminas e minerais. Duas para cada etapa; não contando a de hoje. Mais dez doses de (excelente) há. Mais três tabletes de chocolate preto – o meu declarado vício. (Não levo outras por saber que, com o calor, derreterá...) Mais uma sandes para a viagem, uma maçã, uma banana... E meio litro de água. Prefiro nem saber com exactidão o peso que levo: a mochila parece-me absurdamente pesada.

Medito onde convém arrumar as oito odoríferas rodelas de chouriço destinadas aos cães raivosos. Não pode ser na mochila pois, se for atacada por alguma fera, não terei tempo para a abrir antes de ser devorada, só pode por conseguinte ser na bolsa que trago à cintura com o roteiro, o protector solar, as bananas, a garrafa de água e o chocolate quotidiano. Pois... Vou atravessar Portugal perfumada com chouriço. A ideia não me encanta, prefiro o almíscar – mas faço do chouriço coração. Digamos... Eu cá me entendo! Divido as oito rodelas em duas doses de três (destinadas aos cães grandes) e uma de duas (suficiente para um cão pequeno), embalo-as em sacos de plástico finos para, em situação de perigo e urgência, os rasgar e lançar o pitéu ao monstro. Mesmo através da bolsa e do plástico sinto o cheiro do chouriço. Não correrei o risco de juntar todos os cães do distrito atrás de mim?...

Deito-me tarde. Passa das duas horas e levanto-me às seis. Não adormeço logo... Sinto-me pela primeira vez incerta quanto ao meu projecto – e quase inquieta. Não será melhor ficar em casa? Aproveitar estes quinze dias para ler e escrever? Atravessar Portugal a pé representará na realidade uma loucura?

Continuo a achar que não. Fui duas vezes atacada e roubada, a primeira a quinhentos metros de casa e a outra à porta da minha mãe. Não me parece que a clausura constitua solução para a violência urbana; aliás, pelo que oiço, até dentro de casa corremos o risco de ser agredidos. Por isso tomo as possíveis precauções para limitar os riscos – mas quero continuar a viver. E quero conhecer a minha terra para além dos jornais, museus, auto-estradas, aeroportos e supermercados. A caminhada dá-me um ponto de vista que enriquece e estrutura os outros: esta diferença vale os riscos e canseiras.

Por diferentes razões, alheias ao Caminho de Santiago, que me vão atrasando, só parto às 10 horas. Parece-me aberrante ir de comboio para Coimbra e, de lá, de camioneta para Condeixa, com o objectivo de em seguida fazer a pé o trajecto inverso, entre Condeixa e Coimbra. Por isso fico em Soure. Isto é: a 14 quilómetros de Condeixa. Catorze mais dezoito dá trinta e dois quilómetros: excessivo para um primeiro dia de caminhada.

Os meus pés não vêm preparados para tal jornada. Do mês de Novembro para cá, caminhei com frequência, porém em trajectos curtos. E não voltei a calçar as botas. Trouxe, mal por mal, estas, as antigas, as que já percorreram centenas de quilómetros – as que no entanto, em Novembro, me fizeram bolhas. Quantos quilómetros chegarei desta vez a caminhar?

Mudo para o comboio da linha do Norte na Lamarosa: uma estação no meio dos malmequeres. Saio para ver o que há para além deste delírio amarelo. Meia dúzia de casas, se tanto, uma fonte, dois tanques, um homem, um cão... Lembra-me o poema Aldeia de Manuel de Fonseca: Nove casas, / duas ruas, / ao meio das ruas / um largo, / ao meio do largo/ um poço de água fria. Imobilizo-me no silêncio do poema.

Uma turista russa, com uma mala rolante, reconduz-me à estação. Também se encontra ali pendurada durante uma hora: vai para Tomar, vem de Coimbra, não gostou da cidade, é tudo a subir, há a universidade, duas igrejas, muitos prédios, nada de especial. Como é Tomar? Explico que em Tomar tudo é especial. E os prédios situam-se do outro lado do Nabão: podemos ignorá-los. Se quisermos. Onde vou? A Soure, antes de Coimbra, de onde espero prosseguir o caminho para Santiago. A pé?! A senhora tem bigode, o que não me incomoda, mas sublinha o espanto. Fita-me entre incrédula – não percebeu? estarei a brincar? que humor lusitano é este? – e admirativa. Então a pé? Mesmo? Sempre a pé? Para ela já chegam os comboios e camionetas. Esperas, atrasos, confusões, mudanças. Cansaço. Desventuras. Só fala inglês. E russo. De facto o comboio dela tem dez minutos de atraso. Enquanto conversamos a senhora vai atacando primeira sanduíche, segunda sanduíche, uma maçã, uma laranja, um pacote de bolos... Avanço, para a consolar, que Tomar tem bons restaurantes, com boas doses e bons produtos, recomendo dois e até os marco no mapa que ela traz.

Há vento, sinto frio, acabo por vestir a tal camisola, que não me parece assim tão quente. No entanto, dali a pouco, o comboio indica uma temperatura de 20°. Bom tempo para caminhar.

As dúvidas e receios dissiparam-se. Trago, como é costume, curiosidade nos bolsos.

Começa a décima etapa.
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Domingo, 11 de Julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra


Manuela Degerine

Capítulo XLV

Décima terceira etapa: em Albergaria-a-Velha.

No rés-do-chão do centro paroquial há uma grande divisão na qual, de um lado, vemos fogões a gás, uma grande mesa, sacos e bagagens, de todos os tamanhos e variedades, do outro lado, os peregrinos descansam em colchões encostados uns aos outros: prostrados e com os pés a sangrar. Uma senhora vai, com uma caixa de meio metro cúbico cheia de medicamentos, por ordem, de um para o outro, fazendo curativos. (Mais de cinquenta pés: passará nisto toda a tarde.)


O pároco conduz-nos ao cubículo onde se encontram dois colchões e alguns cobertores. Cedemos os colchões aos alemães, sem saco-cama e com uma coluna vertebral mais frágil, nós colocaremos cobertores no chão, em cima dos quais havemos de instalar os sacos-cama. O maior inconveniente: resta livre o espaço contíguo à casa-de-banho, da qual já agora sai um odor nauseabundo... Será possível dormir aqui? Concertamo-nos.

Eu resolvo ficar – quero ver como é. Na minha vida não haverá muitas ocasiões para observar o modus vivendi de um grupo de peregrinos a Fátima... Os alemães também ficam. Maria hesita se deve ou não juntar-se na pensão aos franceses e a um austríaco (com quem Paul já seguiu dois outros Caminhos; Gerhardt começa aqui a Via Lusitana) mas acaba por ficar.

O duche é nos bombeiros. Enchemos um saco com roupa limpa e produtos de higiene, vamos lá, depois damos uma volta pelas igrejas, a Matriz, Santo António, São Sebastião, por toda a cidade, que achamos bonita. (Impõe-se eu voltar aqui para ver as mamoas.) Em seguida lemos na biblioteca o correio electrónico; encontramos Martine. Telefonamos numa cabine; aparece Paul. Mais tarde fazemos compras na mercearia (onde um cliente tenta, num estilo patético, engatar Maria); entram Paul, Martine e Gerhardt. Inevitáveis encontros na via-sacra dos peregrinos...

Caminhei os dezasseis quilómetros da etapa mais dois ou três pela cidade – não me doeram os pés em todo o dia!
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Quarta-feira, 7 de Julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo XLI

Décima primeira etapa: na Mealhada

A rapariga desculpa-se por não ter avisado: há no ginásio, das oito às nove, um jogo de básquete, por conseguinte, como é necessário varrer o chão, pois há, aqui e além, excrementos dos pássaros, convém começarmos a arrumar as bagagens. Não é o que mais nos apetece neste momento... Claro que sorrimos à rapariga, declaramos não haver problema, arrumamos tudo, sem demoras; os bombeiros não são obrigados a acolher-nos e, num ginásio, é mais natural jogar básquete do que dormir e secar roupa. Enfiamos as camisolas, cuecas e peúgas em plásticos, dobramos os sacos-cama, pomos tudo nas mochilas, arrastamos os colchões para o canto onde os encontrámos e, depois do que caminhámos durante o dia, resignamo-nos a calcorrear a cidade.

Ao fim de meia hora, demos a volta completa à Mealhada, uma hora depois, palmilhámos duas vezes as ruas do centro, tirámos meia dúzia de fotografias, mirámos todas as montras, admirámos na pastelaria os bolos de aniversário, entrámos num café para comprar sumos de fruta... Falo à Maria do Luso, do Buçaco, dos vinhos e dos leitões da Bairrada; mas não fazem parte desta viagem. (E até, no que me toca, cochinillo... Não gosto.) As ruas estão desertas. Sentimos frio. Sentimo-nos cansadas. Apesar disto tudo, rimo-nos da situação, cada vez mais cómica…

Regressamos aos bombeiros. Espreitamos para dentro do ginásio: o básquete não acabou. Sentamo-nos no bar. Falamos da violência urbana. Às nove e meia, entramos no ginásio – ainda encontramos três tipos a lançar bolas ao cesto. Vão-se por fim embora.

Voltamos a instalar os colchões, a estender a roupa na baliza, a pôr ao alcance da mão os objectos necessários. Prendemos a porta com o baraço. Notamos que, lá em cima, perto dos pássaros, haverá janelas ou outras aberturas – sentimos o vento. Antes de nos metermos nos sacos-cama, vestimos toda a roupa seca de que dispomos, mesmo assim, é como se estivéssemos na rua: temos frio. Também ouvimos passar muitos camiões e, antes da madrugada, já os vizinhos pássaros nos fazem grande chilreada... Para mim é a terceira noite consecutiva sem dormir. Mas não tenho que ir dar aulas, pois não?... A ideia basta para me dar ânimo.

Mais do que na redução das necessidades ao conteúdo da mochila, experimento nestas situações a minha capacidade de adaptação.
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Segunda-feira, 5 de Julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra-39

Manuela Degerine



Capítulo XXXIX




Décima primeira etapa: Maria.





Encontro-me às nove horas, na mesma Praça do Comércio, com a rapariga da véspera. Falamos em espanhol: boa ocasião para eu praticar o que aprendi, já lá vão tantos anos, na universidade. Maria tem trinta e quatro anos, vive em Málaga e é professora de inglês. Vai no quarto caminho de Santiago todavia, nos anos precedentes, seguiu sempre o Camino Francés. Agora começou em Lisboa porém, por falta de tempo, fez de autocarro o percurso entre Fátima e Coimbra. As primeiras etapas, em particular quando atravessou o vale do rio Trancão, assustaram-na pois, a certa altura, um carro com três indivíduos acompanhou-lhe, durante uma eternidade angustiosa, o ritmo da caminhada; quando por fim, sem ela perceber porquê, eles desandaram, já Maria se via nos piores apuros. Ser roubada é sempre aborrecido, pior que tudo é ser violada: Maria está hoje radiante por encontrar companhia.


Surge entre nós uma simples e imediata cumplicidade. Conversamos durante todo o dia. Os caminhos de Santiago. As opções de vida. As nossas cidades (eu acumulo: tenho quatro.) Os amores. A família. A alimentação. As leituras. Todos os pormenores da paisagem e das localidades que atravessamos.

O Caminho continua sinalizado de maneira inconstante, há sinais redundantes e, de repente, nada de nada. Nestas ocasiões recorremos ao roteiro Sur le Chemin de Saint-Jacques de Compostelle, Le Chemin Portugais (Via Lusitana) de Gérard Rousse.

- Vê lá o que o teu Gérard diz...

Dali a pouco já dizemos o nosso Gérard, depois passamos ao diminutivo: o nosso Gegê.

Maria conta-me que pratica com frequência turismo aleatório. Quando dispõe de uns dias livres, fecha os olhos, aponta na direcção do mapa, depois reflecte se aquela direcção lhe parece ou não apetecível. Isto lembra-me, é evidente, o grupo OULIPO, cujos membros usam esta táctica para a escrita de narrativas de viagem imaginária.

Para além disto, Maria é sinestésica. Ou seja: os sons e os números correspondem, na percepção dela, a cores. Falamos longamente da sinestesia e, claro, de Baudelaire e das suas Correspondances. Que Maria não conhece... Comme de longs échos qui de loin se confondent / Dans une ténébreuse et profonde unité / Vaste comme la nuit et comme la clarté / Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Entre conversa e risadas, doem-me os pés e as costas, quase não me apercebo destes pormenores. Isto é... Apercebo-me, mas lá longe, por detrás do resto, mais interessante, percurso, paisagem, conversa, que agora capta, de maneira intensa, a minha atenção. (No entanto, com o defeito da auto-análise, não deixo de notar também a situação. Tenho, como tem o leitor, uma estrutura de cebola, a primeira camada, a segunda, a décima...) Vem-me à memória um grafito que João Alves da Costa cita em América em Carne Viva: Sometimes I feel good and I’m God. Estou hoje assim... Não é desagradável!
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Sexta-feira, 2 de Julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra - 36


Manuela Degerine

Capítulo XXXVI

Inquietude

No dia 1 de Maio volto a Tomar. A viagem é mais demorada do que eu previa: por causa das obras na linha, há transbordo para autocarros. Chego a casa às onze da noite e só então começo a preparar as bagagens para o Caminho de Santiago…

Planeava partir com a mochila das primeiras etapas, logo uma observação rápida me obriga a desistir: uma das anilhas parece prestes a soltar-se. Mais uma… Impõe-se por isso levar a outra, mais pesada, mais desconfortável, mais malcheirosa, mesmo no primeiro dia, por absorver a transpiração – mas mais resistente. Desta vez quero ir tão longe quanto puder. Portanto, de preferência: até Santiago de Compostela.


Ainda hesito se posso incluir isto ou aquilo na bagagem. Opto, para além do que terei vestido, por três camisolas de algodão e uma de fibra especial para as caminhadas que, diz o fabricante, é leve, quente e deixa o corpo respirar, dois pares de calças, dois de peúgas, dois sutiãs e duas cuecas. Crocs para o duche. Uma toalha pequena. O saco-cama dos quinze graus (estamos em Maio). Um saco-lençol de linho, para não dormir em contacto com fibras artificiais; e, se o tempo estiver quente, dormirei com ele apenas. Protecção para a chuva: capa, blusão, polainas. O mínimo de medicamentos e produtos de higiene. O meu diário. Telemóvel, máquina fotográfica e seus respectivos carregadores de bateria. Um canivete. E um saco de produtos alimentares que não encontrarei nas mercearias. Ou seja, leitor trocista... Quase não me atrevo a escrevê-lo. Bem... Como diria o meu admirado A., verdade e mais verdade, não é? Pois, então: trinta e duas barras com proteínas, vitaminas e minerais. Duas para cada etapa; não contando a de hoje. Mais dez doses de (excelente) há. Mais três tabletes de chocolate preto – o meu declarado vício. (Não levo outras por saber que, com o calor, derreterá...) Mais uma sandes para a viagem, uma maçã, uma banana... E meio litro de água. Prefiro nem saber com exactidão o peso que levo: a mochila parece-me absurdamente pesada.

Medito onde convém arrumar as oito odoríferas rodelas de chouriço destinadas aos cães raivosos. Não pode ser na mochila pois, se for atacada por alguma fera, não terei tempo para a abrir antes de ser devorada, só pode por conseguinte ser na bolsa que trago à cintura com o roteiro, o protector solar, as bananas, a garrafa de água e o chocolate quotidiano. Pois... Vou atravessar Portugal perfumada com chouriço. A ideia não me encanta, prefiro o almíscar – mas faço do chouriço coração. Digamos... Eu cá me entendo! Divido as oito rodelas em duas doses de três (destinadas aos cães grandes) e uma de duas (suficiente para um cão pequeno), embalo-as em sacos de plástico finos para, em situação de perigo e urgência, os rasgar e lançar o pitéu ao monstro. Mesmo através da bolsa e do plástico sinto o cheiro do chouriço. Não correrei o risco de juntar todos os cães do distrito atrás de mim?...

Deito-me tarde. Passa das duas horas e levanto-me às seis. Não adormeço logo... Sinto-me pela primeira vez incerta quanto ao meu projecto – e quase inquieta. Não será melhor ficar em casa? Aproveitar estes quinze dias para ler e escrever? Atravessar Portugal a pé representará na realidade uma loucura?

Continuo a achar que não. Fui duas vezes atacada e roubada, a primeira a quinhentos metros de casa e a outra à porta da minha mãe. Não me parece que a clausura constitua solução para a violência urbana; aliás, pelo que oiço, até dentro de casa corremos o risco de ser agredidos. Por isso tomo as possíveis precauções para limitar os riscos – mas quero continuar a viver. E quero conhecer a minha terra para além dos jornais, museus, auto-estradas, aeroportos e supermercados. A caminhada dá-me um ponto de vista que enriquece e estrutura os outros: esta diferença vale os riscos e canseiras.

Por diferentes razões, alheias ao Caminho de Santiago, que me vão atrasando, só parto às 10 horas. Parece-me aberrante ir de comboio para Coimbra e, de lá, de camioneta para Condeixa, com o objectivo de em seguida fazer a pé o trajecto inverso, entre Condeixa e Coimbra. Por isso fico em Soure. Isto é: a 14 quilómetros de Condeixa. Catorze mais dezoito dá trinta e dois quilómetros: excessivo para um primeiro dia de caminhada.

Os meus pés não vêm preparados para tal jornada. Do mês de Novembro para cá, caminhei com frequência, porém em trajectos curtos. E não voltei a calçar as botas. Trouxe, mal por mal, estas, as antigas, as que já percorreram centenas de quilómetros – as que no entanto, em Novembro, me fizeram bolhas. Quantos quilómetros chegarei desta vez a caminhar?

Mudo para o comboio da linha do Norte na Lamarosa: uma estação no meio dos malmequeres. Saio para ver o que há para além deste delírio amarelo. Meia dúzia de casas, se tanto, uma fonte, dois tanques, um homem, um cão... Lembra-me o poema Aldeia de Manuel de Fonseca: Nove casas, / duas ruas, / ao meio das ruas / um largo, / ao meio do largo/ um poço de água fria. Imobilizo-me no silêncio do poema.

Uma turista russa, com uma mala rolante, reconduz-me à estação. Também se encontra ali pendurada durante uma hora: vai para Tomar, vem de Coimbra, não gostou da cidade, é tudo a subir, há a universidade, duas igrejas, muitos prédios, nada de especial. Como é Tomar? Explico que em Tomar tudo é especial. E os prédios situam-se do outro lado do Nabão: podemos ignorá-los. Se quisermos. Onde vou? A Soure, antes de Coimbra, de onde espero prosseguir o caminho para Santiago. A pé?! A senhora tem bigode, o que não me incomoda, mas sublinha o espanto. Fita-me entre incrédula – não percebeu? estarei a brincar? que humor lusitano é este? – e admirativa. Então a pé? Mesmo? Sempre a pé? Para ela já chegam os comboios e camionetas. Esperas, atrasos, confusões, mudanças. Cansaço. Desventuras. Só fala inglês. E russo. De facto o comboio dela tem dez minutos de atraso. Enquanto conversamos a senhora vai atacando primeira sanduíche, segunda sanduíche, uma maçã, uma laranja, um pacote de bolos... Avanço, para a consolar, que Tomar tem bons restaurantes, com boas doses e bons produtos, recomendo dois e até os marco no mapa que ela traz.

Há vento, sinto frio, acabo por vestir a tal camisola, que não me parece assim tão quente. No entanto, dali a pouco, o comboio indica uma temperatura de 20°. Bom tempo para caminhar.

As dúvidas e receios dissiparam-se. Trago, como é costume, curiosidade nos bolsos.

Começa a décima etapa.
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Quinta-feira, 1 de Julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra



Manuela Degerine

Capítulo XXXV

Passeio pelos museus (conclusão, por ora)

Museu Nacional do Azulejo: O vermelho e o preto

O Museu do Azulejo expõe um trabalho intitulado Casa Perfeitíssima, 500 anos da fundação do Mosteiro da Madre de Deus, 1509-2009. Esta exposição – de paredes vermelhas, uma cor aqui, esta sim, muito significativa – centra-se na figura da fundadora, a rainha D. Leonor, esposa de D. João II e irmã de D. Manuel I, fundadora não só deste convento mas também das Misericórdias e do Hospital das Caldas da Rainha. O conjunto é composto por peças encomendadas pela rainha, oferecidas à rainha ou, de alguma maneira, significativas do ambiente cultural e religioso em que ela viveu. Por exemplo: a Noticia da Fundação do convento da Madre de Deos de Lisboa das religiosas descalças da primeira regra de nossa Madre Santa Clara, publicado em 1639. Ou a tapeçaria de lã e seda, fabricada em Bruxelas, representando o Baptismo de Cristo, uma encomenda de D. Leonor para o convento. Ou o Retábulo das Sete Dores da Virgem, do pintor flamengo Matsys, por ela comprado para o altar da igreja.



D. Leonor atravessou os reinados de D. Afonso V, D. João II, D. Manuel e até o início do reinado de D. João III, o que fez dela uma contemporânea dos faustos, mudanças e inovações trazidas pelos descobrimentos. Não só rainha mas também rica (tanto por herança do pai – o Infante D. Fernando, duque de Viseu e Condestável do Reino, herdeiro universal do Infante D. Henrique – como por mercês a ela atribuídas por D. João II e D. Manuel I), encoraja o teatro de Gil Vicente e a introdução da imprensa, compra – como esta exposição mostra – numerosas obras de arte, vive rodeada pela elite intelectual do seu tempo, funda instituições de socorro a pobres e doentes... Defensora da devotio moderna, numa prática austera da fé, funda em 1509, já viúva, o convento da Madre de Deus, onde se recolhe e fica sepultada – no chão, à entrada da igreja, num espaço de passagem e com a simples inscrição: Aqui está a rainha Dona Lianor mulher del-rei Dom João o segundo que é fundadora deste convento. Ao lado jazem a primeira abadessa do convento e Dona Isabel, duquesa de Bragança, irmã da rainha.

A chegada das relíquias de Santa Auta a Lisboa em 1517, oferecidas pelo imperador Maximiliano I, suscita a encomenda de um retábulo a um pintor cujo nome desconhecemos: o mestre do Retábulo de Santa Auta. Um dos quadros mostra a cerimónia da entrada das relíquias no Convento da Madre de Deus. Vemos, no canto inferior direito, quase fora da imagem, um músico a tocar, da direita para a esquerda vai a procissão – só de homens – transportando as relíquias na direcção da igreja, cujo portal se encontra forrado com panos de brocado. E, do lado esquerdo, por detrás da figura evocadora da santa, num estrado com toldo, igualmente revestido de brocado, acompanhada por outras senhoras, trajando o hábito de religiosa – encontra-se a rainha. Numa modéstia emblemática, não se pode falar aqui de retrato, apenas de uma silhueta… Ou antes: de um acto de presença pia.

Outro presente do imperador Maximiliano, um grande quadro a óleo intitulado Panorama de Jerusalém, chegou a Lisboa com um espaço reservado para ali ser pintada a imagem da rainha. De facto nele aparece, orando, com o hábito negro de religiosa, de joelhos através dos séculos, a rainha D. Leonor, modelo das virtudes que o seu tempo concedia à mais poderosa das rainhas: Princesa Perfeitíssima.
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Quarta-feira, 30 de Junho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo XXXIV

Passeio pelos museus:

Museu Nacional de Arte Antiga e Museu Nacional de Arqueologia

No Museu de Arte Antiga demoro-me diante de uma vista de Goa no século XVII, de um mestre desconhecido, localizando a praia de Chapora, onde passei dois meses, o forte de Aguada, onde tanta vezes fui... Pintado em Goa no século XVI, o retrato de Afonso de Albuquerque continua a impressionar-me pela força e autoridade que dele emana – ao lado, D. Francisco de Mascarenhas é apenas uma imagem oficial.

Este museu é um festival da língua portuguesa: encho duas páginas com palavras. Selecciono agora o ceboleiro, recipiente onde germinam os bolbos (de jacinto, por exemplo), as doceiras e compoteiras, pelas delícias que evocam, o ventó, caixa-escrivaninha indo-portuguesa... Detenho-me a ver pratos de religiosas aristocratas com o nome e as armas da proprietária: SOROR BRITES THEREZA DEIEZUS. Isto é... Soror Brites Teresa de Jesus. Revejo as naturezas-mortas de Antonio Pereda y Salgado, há pouco expostas na fundação Calouste Gulbenkien, passo pela Salomé de Lucas Cranach, reparando na aparência daquela rapariga: nossa contemporânea no trajo e penteado, se apanhasse o Metro, chamava a atenção apenas por ser bela e elegante. Imobilizo-me em êxtase perante o retrato de um aristocrata pintado em 1700 por Nicolas de Largillière: o vermelho da capa, o ouro da casaca, o branco da cabeleira, o gesto e o olhar... tudo é superlativamente espectacular. Rococó, claro! E concluo a visita fotografando, é claro e evidente, duas esculturas que representam Santiago.

No domingo seguinte vou ao Museu de Arqueologia. Começo pela exposição sobre os vestígios, encontrados na Quinta do Rouxinol, perto de Corroios, de uma olaria romana com actividade ao longo de 250 anos, que produzia ânforas, telhas, loiça, lucernas... Trago para casa a palavra lucerna, de que muito gosto, tomo até a decisão de escrever um texto com palavras encontradas nos meus passeios de domingo, aponto uma citação de Duarte Nunes de Leão (Descrição do Reino de Portugal, 1600, capítulo XIII, folha 34 v°): Outra coisa tem o Tejo com que se avantaja de outro rios de Hespanha, que é da grossa pescaria que nele se faz de diversos géneros de pescado. As ânforas destinar-se-iam portanto ao transporte de pastas e molhos à base de peixe e marisco de que os romanos eram muito apreciadores.

Nas Antiguidades Egípcias miro os sarcófagos de Irtieru e Pabasa, oiço conversas de outros visitantes, tá bem pintado, não tá?, aponto uma passagem do Livro dos Mortos (do capítulo 125): Não blasfemei contra os deuses / Não roubei os bens do pobre / Não fiz sofrer / Não fiz passar fome / Não fiz chorar / Não matei / Nunca fiz mal a ninguém. Também está bem dito. (E bom era se, trinta e cinco séculos mais adiante, isto começasse a ser praticado.)

A secção Tesouros da Arqueologia Portuguesa expõe a técnica, estética e funções dos metais preciosos da pré-história à época romana. Miro a estátua de guerreiro usando um torque semelhante aos que, em ouro, aparecem expostos, divertem-me os comentários de alguns camponeses suíços... Expressão dubitativa e hesitante de quem não compreende por que carga de água dão, naquele museu, tanta importância a anéis, colares e pulseiras:

- Agora podia-se fazer isto tudo!

Concluo a visita na exposição Religiões da Lusitânia perante os quatro varrões ou berrões de Cabanas de Baixo. Imagens de fertilidade?... Regresso a casa. A Lusitânia permanece para mim obscura e esta exposição, pouco explicativa, não me ajuda a esclarecer nada.
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Terça-feira, 29 de Junho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra

Manuela Degerine

Capítulo XXXIII

Passeio pelos museus:

Museu da Cidade e Museu Rafael Bordalo Pinheiro


No Museu da Cidade, aponto Felicitas Julia Olisipo, o nome latino de Lisboa e a frase de Estrabão (Geografia, livro 3°, primeira parte): o rio é muito rico em peixe e abundante em ostras. Tomo aliás nota desta descrição cada vez que venho ao museu... E até a cito num romance. Agora, olhando para uma litografia do século XIX que representa o Palácio das Necessidades, no largo do qual passam vários cavaleiros, ocorre-me que seriam hoje ciclistas – vemos cada vez mais por Lisboa, não é?... E um quadro de Albertino Guimarães, Largo da Senhora da Saúde, pintado em 1839, mostra uma rua da Mouraria que não reconheço: resta a igreja. Mas, de então para cá, ganhámos a tão bela calçada representando a projecção da sombra da igreja. E... também ganhámos o centro comercial da Mouraria com o que lá dentro se passa. (Esta frase não é apenas irónica: gosto de deambular por este espaço heteróclito, de aqui comprar quiabos, lentilhas e chá indiano.)

Vejo a exposição que assinala os cem anos do Museu da Cidade: Lisboa tem histórias. Aponto os versos de Bocage sobre a estanqueira do Loreto, célebre pelo tamanho do nariz: Disse-lhe um sério taful / Que tabaco lhe comprara: / A sua loja é pequena; / Por que não vende na cara? / Deu a estanqueira um espirro / Gritam os vizinhos seus, / Julgando ser terramoto: / Misericórdia, meu Deus! A fotografia da jovem peixeira Ilda Fernandes, eleita Rainha dos Mercados em 1929, aos dezasseis anos, ajuda-me compreender alguns fados (A Rosinha dos Limões, por exemplo; cuja letra, como os leitores se recordam, se conclui com um engraçado atalho narrativo: ...fico pensando / Que, qualquer dia, por graça / Vou comprar limões à praça / E depois caso com ela). Na mesma exposição, uma imagem legendada Pretas calhandreiras leva-me a recordar uma palavra que ouvi, em várias ocasiões, a minha mãe empregar a propósito de um ou outro maldizente: é um calhandreiro. Uma metáfora eficaz pela pestilência que evoca, sendo o calhandro um pote para o qual se despejavam os bacios; cabia aos mais pobres, não raro escravos, irem despejar, com frequência para o rio, aquela sujidade: os calhandreiros, portanto. Ora, como todos sabemos, os maldizentes arrastam matérias não menos fedorentas...


No Museu Rafael Bordalo Pinheiro encho uma página com palavras e frases. A que eu prefiro: o arola. Para Rafael Bordalo Pinheiro arola é o português que voltou rico do Brasil e se quer dar ares; mas podemos modernizá-lo. Encontramos por aí diversas espécies de arolas, algumas internacionais, as outras não... O arola automobilista. O arola africano. O arola da Portugália. Casta lusitana: a arola do balcão. Por ser nativa desta zona social, só temos a dificuldade da escolha. Caracteriza-se pela insolência no trato com os fracos que ali se expõem, utentes ou clientes. Podemos indicar a subespécie: arola ao balcão da Air Portugal, arola ao balcão da segurança social... Uma arola rara em França, país que tem, em contrapartida, outra variedade muito feia, o revisor gallicus: o arola revisor nos transportes públicos. Em Portugal, pelo contrário, esta variedade parece rara: no que me toca, nunca encontrei nenhum, só funcionários amáveis – é um prazer apresentar-lhes o bilhete. Cabe aos leitores estabelecerem as suas próprias listas e, se tiverem paciência para isso, comunicar-mas... para eu me rir.

Passo duas horas acompanhando as desventuras do Zé Povinho com a albarda, o manguito e a moleza. (Mais obscura do que ele: a Maria da Paciência.) Legenda de O Zé Povinho na História: “Nunca se levanta que se não deite” (Comédia Portuguesa, 23 de Julho de 1903).

Comove-me a auto-caricatura na qual um Rafael Bordalo Ribeiro, curvado e pesado, com a luneta caída, pede ao Rafael Bordalo Pinheiro jovem, perspicaz e insolente: “Por favor, empresta-me o seu lume?”
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