Quarta-feira, 29 de Junho de 2011

São Pedro - Fernando Pessoa

 

Fernando Pessoa  São Pedro

 

(ilustrações de Almada Negreiros)

 

 

 


 

Tu, que Diabo?, és velho.

És o único dos trez que traz velhice

Ás festas. Tuas barbas brancas

Têm contudo um ar terno

A que o teu duro olhar não dá razão.

Parece que com essas barbas brancas

Por um phenomeno de imitação

Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

 

Carcereiro do céu, isso é o que és.

Basta ver o tamanho d'essas chaves —

As que Roma cruzou no seu brasão.

Segundo aquelle passo do Evangelho

Do "Tu és Pedro" etcetera (tu sabes),

Que é, afinal uma fraude

Meu velho, uma interpolação.

 

Carcereiro do céu, que chaves essas!

Nem dão vontade de ser bom na terra,

Se, segundo evangélicas promessas

Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.

Isso — fecharem-me — não quero eu,

Nem com Deus e o que é seu

Que o estar fechado faz-me mal

Até na beatitude do teu céu,

Entre os santos do paraíso,

(A liberdade — Deus dá a Deus —

Um Deus que não sei se é o teu),

O estar fechado, aqui ou alli, dizia eu

Faz-me terríveis cócegas no juizo.

 

Enfim, que direi eu de ti, amigo,

Que não seja uma coisa morta,

Anti-popular, gongorica,

Por fruste deselegante,

Como de quem. sem saber nada. exhausto,

Começo por duvidar bastante,

Desculpa-me chaveiro antigo,

De que tivesses existência histórica.

 

Mas isso, é claro, não importa

Se nos trazes

A alegria da singeleza

Ou a bondade que não sabe ter tristeza.

O peor é que nada d'isso fazes.

O teu semblante é duro e cru

E as barbas que roubaste ao Deus que tens

Só arrancam aos dandies teus loquazes

Ditos de dandies cinicos desdens.

Que diabo, és uma série de ninguens.

O Santo são as chaves, e não tu.


Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,

Para outros as barbas já citadas,

Para uns o tal fatidico chaveiro

Que fecha à chave as almas sublimadas.

Para uns tu fundaste a Roma do Papado

(Andavas bêbado ou enganado

Ou esqueceste

O teu posto quando o fizeste)

E para outros enfim, como é o povo

E segundo as ideas que elle faz,

És quem lhe não vem dar nada de novo —

Umas barbas com S. Pedro lá por traz.

 

É difficil tratar-te em verso ou prosa,

Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,

Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser

E a alma mais humilde é clamorosa

De qualquer coisa que se possa ver,

Em sonho até, qual se estivesse perto.

 

Olha, eu confesso

Que nunca escreveria

Este vago poema, em que me apresso

Só para me ver livre do teu nada,

Se não fosse para dar um cunho

A este livro da triologia

(Santo António, S. João, S. Pedro —

De popular, que bem que soa!)

 

Mas porque diabo de intuição errada

E que vieste parar a Junho

E a Lisboa?

 

Isto aqui ainda tem

Um sorriso que lhe fica bem,

Que até, até

No teu dia,

(O estupor velho

Como um chavelho,)

 

Nas ruas

O povo anda com alegria,

É fé,

Não em ti nem nas barbas tuas

Mas no que a alegria é.

 

Olha, acabei.

Que mais dizer-te, não sei.

Espera lá, olha

Roma, fingindo que viceja,

Lentamente se desfolha.

Teu ultimo gesto seja

Um gesto volvente e mudo.

Se tens poder milagroso,

Se essas chaves abrem tudo,

Deixa esse céu lastimoso.

Deixa de vez esse céu,

Desce até à humanidade

E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,

As portas do Inferno, e da Verdade.

 

(in  Fernando Pessoa, Os Santos Populares, Edições Salamandra e Casa Fernando Pessoa)

 

(tão desconcertante em relação a São Pedro, como o poema de Fernando Pessoa, é este fado cantado por Amália)


 


 


 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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Terça-feira, 28 de Junho de 2011

Um Novo Coração 36 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 36

 

Arco, 7ª jornada, 16/02/05

 

Chegou-me o novo companheiro de quarto, como previsto. Ele se chama Roberto, simplesmente Roberto, pois assim logo me diz que queria ser chamado. Trata-se de um homem ainda jovem, de pouco mais de quarenta anos, comerciante e originário de Rovereto. Muito cordial, desde o primeiro momento procurou estabelecer uma relação aberta comigo, pedindo que eu lhe indicasse como deveria comportar-se como segundo ocupante do quarto. Ao seu lado está sempre a sua mulher, ativa em preparar todas as coisas indispensáveis à recuperação do marido. Ela trouxe uma bandeja de diversos doces, fazendo uma como festa de inauguração. Insistiram muito comigo, convidando-me a participar com eles da festa, mas eu não posso dar-me ao luxo de comer doces nesses tempos de constantes verificações do grau de minha glicemia. Mas conversamos muito, estabelecendo um relacionamento muito cordial que se prolongou pelos dias adiante e em todas as horas de nossa coabitação momentânea. Ao contrário de Costa, Roberto circula muito pela “Casa de Saúde” e durante as visitas da mulher, preferem estar com outros amigos no grande salão do bar.

 

Assim transcorriam as minhas horas diárias com um novo ritmo sereno. Meus exercícios respiratórios continuavam com progressos vistosos. Já começava a movimentar as três bolinhas com relativa facilidade, todas as três, levando-as como previsto pela regra geral, e simultaneamente,em alto. E assim sentia melhorar a cada dia a minha respiração.

 

Os exames de recuperação se alargavam. Passei a frequentar não somente os instrumentos do sub-solo, mas igualmente a palestra do terceiro andar. Neste andar estão  colocados os mais diversos serviços da “Casa de Saúde” e, caminhando pelos seus corredores, lendo as placas nas portas sempre fechadas de cada setor ou serviço, podia imaginar o que existiria por detrás delas. Além do ginásio de ginástica, local de reabilitação para todos os tipos de internados, tanto os cardiopáticos, quanto os com problemas motores, vejo o de exames de eletrocardiograma, de holter, aquele outro para provas de esforço, um mais para atividades cardiológicas de relax, um maior para atividades respiratórias especiais e, subindo uma escadinha de encontro ao teto, numa mansarda ampla, o espaço de técnicas de relax e de encontros com os especialistas em psicologia. Nesse mesmo andar estão vários consultórios médicos de diagnóstica, ecocardiografia, de testes ergométricos, de respirometria e de hemo-análises. Naturalmente a minha recuperação não exigia o uso de todos eles… Completam o andar os ambulatórios 4 e 5. No 4 estão os serviços de angiologia, psicologia, radiologia; no 5, o cirúrgico, o otorrino, o de urologia e o psiquiátrico.

 

Agora, caro amigo leitor, venha comigo, porque devemos voltar para o setor de ginástica. Quero que você veja diretamente o que ali aconteceu comigo em vários e movimentados momentos.

 

Começo pela bicicleta. Nunca andei de bicicleta e naturalmente nunca tive uma. Cresci convivendo com esta e outras carências de objetos convencionalmente comuns ao crescimento de toda criança de classe média. Quanto à falta de bicicleta, essa não me provocou jamais particulares complexos de inferioridade em confronto com os meus amigos e colegas ciclistas. O mesmo não posso dizer do fato de não ter aprendido a nadar.

 

Devo às muitas bolas de futebol que tive a capacidade de não sentir-me inferior pelas ausências de outros recursos de jogos. Com a bola e com a prática do futebol pude vencer todas as minhas possíveis faltas de brinquedos ou de objetos de várias naturezas. Já aos meus sete anos ela era a minha companheira de todos os dias. Houve um período em que joquei por mais de 5, 6 horas diárias, nas ruas principalmente, mas também em campos de verdade.

 

Como nunca andei de bicicleta, quando comecei o meu exercício de recuperação no setor A, encontrei dificuldades até mesmo para colocar bem os pés nos pedais. Mas logo aprendi como fazer e comecei os exercício na cyclette, a bicicleta fixa. Eu devia pedalar por vinte minutos, com intervalo no décimo. Antes de começar o exercício, a enfermeira me mediu a pressão, tendo sido a mesma retomada no intervalo e no final do mesmo. No início, as minhas pedaladas eram lentas; porém, conquistada a consciência da melhor técnica, logo melhorei e assumi um ritmo bom, mantido até o final da minha corrida ideal. Eu corria parado, mas era como se corresse de verdade, pela primeira vez. Quando a enfermeira tomou a minha pressão, inicialmente essa era de 13/9, em conformidade com a minha habitual. Corri por dez minutos e os quilômetros hipotéticos vinham superados com tranquilidade. Era como se eu tivesse sempre andado de bicicleta. Terminado a primeira etapa, nova tomada da pressão, com resultado igual ao da partida. Corri mais, corri tranquilo, pedalando estático na sala, mas como que subindo pelas colinas de Arco, respirando o ar bom que de perto vinha das muitas plantações e jardins; de longe, das águas do lago de Garda. Terminada a corrida, desci da bicicleta, a enfermeira verificou de novo a pressão, 13/9. Revesti-me com a minha bela roupa de ginástica azul-marinho e, muito satisfeito, saí do ginásio com intenções de descer até o bar do andar-térreo. Desci pelas escadas muito contente comigo mesmo.

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 22:00
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Lançamento de livro de MANUEL SIMÕES

                                  C o n v i t e

 

As Edições Colibri e a Livraria Bulhosa têm a honra de convidar leitores e colaboradores do Estrolabio para a sessão de lançamento do livro


 

 

Tempo com Espectador - Ensaios de Literatura  Portuguesa

 

da autoria de Manuel G. Simões que será apresentado por Roberto Vecchi Professor na Universidade de Bolonha.

 

 

Dia 1 de Julho, às 18h30 Livraria Bulhosa Campo Grande 10-B – 1700-092 Lisboa

 

 


Manuel G. Simões nasceu em Jamprestes-Ferreira do Zêzere

em 1933. Poeta e ensaísta. Foi um dos fundadores da

colecção “Nova Realidade” (1966) e pertenceu à redacção da

revista “Vértice” (1.ª série) entre 1967 e 1969.

 

Viveu em Itália de 1971 a 2003, tendo sido inicialmente Leitor

de Português nas Universidades de Bari e de Veneza

e, sucessivamente, professor associado na Universidade

 “Ca’ Foscari” de Veneza, leccionando as disciplinas de

língua e literatura portuguesa e de literatura brasileira.

 

 

 

Pertence à redacção da revista “Rassegna Iberisti ca”(Veneza), de

que foi um dos fundadores em 1978, e ao conselho editorial de “Estudos Italianos em Portugal” (nova série), a partir de 2005.

 

“Tempo com Espectador” reúne uma série de ensaios sobre literatura portuguesa, que vão da Idade Média ao século XX, na perspectiva de quem observa o fenómeno literário inserido num contexto cultural e espacial externos, o que propiciou a análise do encontro entre duas ou mais literaturas.

 

Daí que frequentemente a exegese contemple o problema da intertextualidade e a abordagem de temas não muito frequentados pela crítica: o percurso do Iluminismo português; a errância e seus efeitos no tecido literário (de “Sôbolos rios” à contemporaneidade); ou a influência da Bíblia na poesia portuguesa finissecular, por exemplo.

 

publicado por Carlos Loures às 19:00

editado por Augusta Clara às 17:17
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Segunda-feira, 27 de Junho de 2011

Um Novo Coração 35 - Sílvio Castro

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 35

 

 

Arco, 6ª jornada, 15/02/05

 

Ainda que tenha usufruido do meu quarto por todo um dia inteiramente para mim, na espera certa da chegada de um novo internado, passei como sempre grande parte da noite no meu habitual posto de leitura, aquele dos encontros dos muitos notívagos em busca dos benefícios de uma xícara de camomila. Ali, somente eu permanecia por tempo inderteminado, noite a dentro, preso pela leitura e isso causava, por parte não somente dos pacientes notívagos, mas igualmente dos enfermeiros empenhados na assistência noturna, muitas manifestações de curiosidade, em geral tendentes à simpatia.

 

Nesses últimos dias me tenho também concentrado num tipo especial de leitura, a de best-sellers, parte por curiosidade em relação a autores seguidos de grande publicidade no mercado literário internacional, mas igualmente em razão de uma pessoal especulação teórica sobre o fenômeno “best-seller”. Li então, com tenacidade, The Rhinemann Exchange, de Robert Ludlum, e Archangel, do inglês Robert Harris. Antes de tudo, caro leitor, lhe quero expor as razões de minha atual particular atenção para esse específico fenômeno da produção literária. Desejo chegar ao máximo de sinceridade na minha exposição, não somente quanto às minhas elaborações teóricas sobre o tema, mas igualmente em relação às ressonâncias mais íntimas que o mesmo possa criar em mim. Começo por aqui e logo confesso um pouco de vergonha pelo que sinto, pois se trata de algo que se aproxima da inveja. Uma sutil inveja do sucesso que o escritor de best-sellers conquista, e não somente de público, mas também econômico. Esse sentimento eu o vivo, mas igualmente não o vivo, pois se trata de um sentimento muito vago, absolutamente indeterminado, que pouco tem a que ver com a minha atividade de escritor. Porém, quando me lanço nas tramas de uma possível teoria do “best-seller”, de certa maneira retomo a certeza de que no fundo o tal sentimento me interessa. Caro e paciente leitor, vou tentar transmitir-lhe uma certa síntese dessas minhas elaborações teóricas. Deixo de fora delas, porque de menor interesse nesse momento de diálogo entre nós, as questões que se referem à potência de uma campanha publicitária sobre um texto, campanha apoiada em grandes somas de dinheiro e em refinadas técnicas de convencimento publicitário. Tais elementos integrados numa cadeia internacional de grandes editores, conjugados com a propaganda maciça em jornais, revistas, televisão e em outros veículos de comunicação de massa, levam naturalmente um texto a uma aceitação quase apriorística, com a construção de um público capaz de absorver acriticamente tais informações. Em geral, o texto “best-seller” é um resultado igualmente de fórmulas mais que artístico-literários, de natureza diretamente editoriais. Isto é, os grandes editores internacionais, depois de uma longa experiência produtiva, conseguiram codificar aquilo que poderemos chamar de “normas editoriais para a realização de um romance best-seller”. Porém, amigo leitor, nem tudo é dessa especial natureza “no reino da Dinamarca”… Existem igualmente best-sellers com qualidades criativas artístico-literárias. Por exemplo, só para citar dois, Il nome della rosa, de Umberto Eco, e Memorial do convento, de José Saramago. Para mim, o que permite a romances como esses dois apresentarem concretamente uma diversa face do fenômeno best-seller, nós o podemos identificar naquilo que chamo “matéria alta”, de que são feitos os mesmos. A “matéria alta” são aqueles elementos culturais, geralmente ligados à história, que dão um tom extraordinário às estórias tão diversas do escritor italiano e do romancista português.

 

No almoço conversei longamente a respeito com o Dr. Citton e dado o interesse demonstrado por ele sobre a minha teoria do best-seller, prometi-lhe que no jantar lhe traria um texto meu já publicado numa revista literária da Suíça de língua italiana e no qual, ainda que finalizado diretamente à análise da obra de José Saramago, eu me servia igualmente do exemplo de Umberto Eco para tratar do assunto. No jantar, preocupado de não fazer perder o apetite ao meu amigo comensal, lí para ele somente uma passagem do ensaio, justamente aquela referida ao primeiro romance de Eco:

 

“Umberto Eco obteve com Il nome della rosa um sucesso internacional de dimensão incomum, transformando-se o seu romance num dos maiores best-sellers dos nossos tempos. Inicialmente, poderia parecer absurdo que tal categoria venha aplicada a um livro como esse tão complexo, resultado de uma rara erudição, produto mais ligado ao campo filológico que àquele do romance. Porém, os milhões de exemplares vendidos nas edições das mais diferentes línguas fazem dele um autêntico, ainda que surpreendente, por essas e outras razões, fenômeno da recepção por parte do público.

 

Como consequência da “matéria alta” de que é feito Il nome della rosa – um romance ligado ao passado, à história de Ordens religiosas e da Igreja da Idade-média, à cultura cristã-medieval – o leitor de Eco se sente enobrecido pela leitura do romance, não somente porque ligado ao sistema cultural típico da tradição humanística ocidental, mas porque o mesmo comunica a quem o lê um sentimento de participação com a cultura do cristianismo – com os seus mistérios, dogmas, rituais – que muitas vezes, ainda que conhecimento ao ponto de transformar-se em pura memória, principalmente nos principais países católicos, se exprime num quase esquecimento. Um texto como este de Eco possui o poder mágico de chegar a un tal “quase esquecimento” e de trazê-lo de novo ao nível da memória participante. Assim, o leitor revitalizado pela magia dos mistérios medievais das tópicas de uma cultura estável do maravilhoso confronto da própria língua com o sentido mágico do latim litúrgico e teologal, da subconsciente poesia contida na retomada dos topônimos que figuram uma geografia fantástica, ainda que real, de toda uma complexidade de provocações “nobres” e “altas”, este leitor se entrega inteiramente à leitura e se multiplica quase automaticamente em milhares e milhares de novos leitores.”

 

Os romances de Ludlum e Robert Harris pouco têm dessas provocações. Em verdade, eles são feitos de outras, evidentes e muitas vezes atraentes, porém certamente menos “nobres” e “altas”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Domingo, 26 de Junho de 2011

Um Novo Coração 34 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 34

 

 

 

Arco, 5ª Jornada, 14/02/05

 

 

 

Todos os dias desço para as refeições, porém os dietistas da “Casa de Saúde” já nos primeiros momentos de minha internação me prepararam uma espécie de decálogo pessoal para a minha alimentação. Como em geral acontece com os decálogos, esse era principalmente restritivo e o pouco que concedia ao meu epicurismo praticamente não podia ser notado, afogado que era nas vagas das restrições. Em verdade, não é que eu sofresse demasiado com a coisa, pois desde há muito eu vivia um período de quase indiferença pelos prazeres ligados ao paladar. Nesses meus dois últimos meses, almoçava e jantava com uma participação próxima ao espírito estóico. Comia sim, me empenhava em não ficar enfraquecido, mas o fazia sem exaltar-me, mesmo quando me encontrava por acaso diante de alguma especialidade culinária antes a mim grata. Porém, ainda que assim acontecesse por todo aquele já longo período que vinha do começo de janeiro, diante da mesa para o paciente em tratamento, acontecia que me sentia como que ofendido pela restrição visual relacionada ao objetivo plano quantitativo e, em consequência, com mais complicadas reações quanto à maior ou menor adesão à qualidade gustativa dos pratos com os quais em geral me confrontava quase que com desgosto. No fundo se tratava da repetição de um velho comportamento: eu sempre comi moderadamente, ainda que desde sempre frequentador assíduo de restaurantes. No entanto, de modo particular em casa, quando diante de mim aparecia servida uma refeição de quantidade visivelmente pequena, então eu passava a reagir com um sentimento de ofensa sofrida, como se tivesse fatalmente necessidade de pratos fartos. Assim acontecia quase sempre também à mesa da “Casa de Saúde”.

 

Tudo isso eu via como uma culpa daquela espécie de decálogo alimentar que logo criaram para mim. A causa das restrições com os quais esse sistema se justificava partia de uma predisposição pós-operatória à intolerância glucídica que, segundo os exames quotidianos, eu apresentava. Para não aumentar minha taxa glicêmica e, em consequência, para evitar, entre outros males possíveis, que eu aumentasse de peso, nasceram as regras ideais para meu comportamento à mesa, regras que se traduziam principalmente em limitações e restrições. Caro leitor, agora leiamos juntos todas essas regras e então também você verá que eu tenho razão em lamentar-me. Ei-las, numa possível sintese:

 

EXCLUIR o consumo de açúcar, mel, marmelada, chocolate. Para adoçar, “Aspartame”: uma compressa adoça como uma colherzinha de açúcar.

 

PÃES, MASSA E PRODUTOS DE FORNO: preferir pão não saboroso e massa integral (as fibras diminuem a absorção dos carboidratos), numa quantidade de 60/80 gr. de massa no almoço e 30 gr. no jantar. A massa deve ser acompanhada por molhos simples, de tomate ou de verduras diversas, completadas com uma colherzinha de queijo parmesão. Quanto ao pão: 3 pães pequenos por dia (50 gr. no café-da-manhã; 30/40 gr. no almoço e no jantar). Evitar biscoitos e brioches, ricos em gorduras saturadas. Evitar igualmente os cornflakes, porque se apresentam com um índice de açúcar elevado.

  

LEGUMES: limitar o consumo de batatas e cenouras (sempre o famoso índice glicêmico elevado…) Ocasionalmente, 100 gr. de batatas podem substituir 30 gr. de pão insípido. Recomedado o consumo diário de uma quantidade abundante de verdura crua e/ou cozida, seja no almoço, seja no jantar. Leguminosas como feijão, petit-pois, lentilhas, frescos ou congelados (150 gr.) ou secos (40 gr.) podem substituir ou completar os pratos de massas. Quanto às frutas, sempre aquelas frescas da época. Evitar uva, figos, caquí, bananas, frutas em conserva. Quantidade aconselhada: 2-3 porções diárias correspondentes a 150-200 gr.

 

PRATOS FORTES: Variar entre carne magra, branca ou vermelha, peixes de todos os tipos, três ou quatro vezes por semana; ovos, duas vezes por semana, e mais bresaola, presunto ou speck magro, queijo (2 vezes por semana, porém lembrar-se que  não existem queijos magros!).  Para molhos complementares, permitido o azeite puro, sempre cru, não mais de 3 colheres diárias.  Não, absolutamente não! quanto a manteiga, margarina. Leite, 200 gr. pela manhã, com café ou chá, ou senão iogurte natural com 100 gr. de fruta fresca.

 

BEBIDAS: evitar refrigerantes de frutas, bebidas com gaz (senão, o c a s i o n a l m e n t e, escolher bebidas light   <caro leitor, não escrevo aqui os nomes dessas bebidas multinacionais para não alargar a prepotência publicitária das mesmas…>, aperitivos, licores). No caso de permissão do médico, é possível tomar um copo pequeno (120 ml) de vinho, no almoço e no jantar. Ah! meu amigo leitor, você logo vai ver que em determinado momento e isso na última semana de minha estada em Arco, certamente como  sinal de minha melhor recuperação, assumi tal velada hipótese e passei a tomar meu vinho tinto, superando uma dura e longa abstenção.

 

Depois de tudo isso, de todo esse quadro de acentuada desolação, a dietista que assinou o meu decálogo concluia a sua sentença dizendo:  se recomenda a manutenção do peso corpóreo ideal (kg 64)…

 

Só eu sei, porque desses eventos nada disse a ninguém antes de você, caro leitor amigo, como passei os dias da recuperação. Não era tanto porque não comia ou bebia como poderia desejar, mas pelo sentir que meu corpo se fazia cada dia mais leve, mais leve. Então, nas minhas muitas preocupações nas noites indormidas da “Casa de Saúde” me vinha a lembrança e a saudade de minha mãe. Ela, quando eu chegava depois de uma longa ausência, enquanto me abraçava e beijava, me contemplava de cima a baixo   Sílvio, como você emagreceu! você está muito magro, meu filho! precisa comer mais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sábado, 25 de Junho de 2011

Um Novo Coração 33 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 33

 

 

Arco, 4ª jornada, 13/02/05

 

São já dois dias que divido a minha mesa do refeitório com um companheiro que me acompanhará por todo o período que aqui ficarei, e disso tive certeza quando ele mesmo me disse que iria ficar não somente quinze dias, como era o meu caso, mas bastante mais, pois deve seguir uma terapia de recuperação prevista em trinta dias, dos quais já cumprira cinco. O dr. Carlo Citton, assim se chama o meu companheiro de mesa, é um médico, ainda jovem, pois apenas superou de pouco os cinquenta anos, originário de Trento onde também exerce a sua profissão. Ele sofre de problemas motores, com perdas de segurança principalmente nos músculos dos quadris, com reflexos naqueles das pernas e na coluna vertebral. Por isso, no primeiro dia que nos vimos na hora do almoço, eu já estava sentado à nossa mesa, num ângulo fechado do salão. Institivamente eu escolhera a cadeira que se encontrava protegida quase de encontro com as paredes que formavam o ângulo, dali podendo admirar todo o movimento do ambiente, controlar as portas de entradas e saídas, verificar o ir-e-vir das servidoras que, de outra sala, traziam a carrocinha com os pratos que seriam servidos, as frutas, as gárrafas de água mineral e outras coisas mais. Desta maneira, eu deixara livre a cadeira que dava as costas a todos esses movimentos, com pequenos ângulos de visão somente possíveis no espaço limitado ocupado pelas duas mesas que obliquamente ladeavam a nossa. Ao ver chegar o meu companheiro apoiado em duas muletas, sorridente e imediatamente simpático, algo me envergonhei da posição a que inadivertidamente o condenara. O dr. Citton logo procurou liberarar-me desse repentino sentimento de culpa que me acometia e, me dizia,  muito pelo contrário, para mim essa é a melhor posição que eu poderia encontrar. Assim dizendo deixava com vagar e cuidado as duas muletas que eu prontamente recolhia e colocava atrás da minha cadeira, em pé, apoiadas contra as paredes angulares. Desde então começamos uma conversação quotidiana que se dilatava pelos mais diversos assuntos, pois o meu companheiro demonstrava desde logo grande capacidade de comunicação, com interesses os mais variados. Mais ainda, desde o primeiro almoço mostrou-se capaz de grande atenção sobre as coisas do outro e com muita simpatia sempre procurava serenamente fazê-las suas. Cedo descobrimos que, ainda que eu fosse mais avançado nos anos, tínhamos muitos interesses em comum, como você, caro leitor, terá ocasião de verificar nos contos desses dias que vivemos na “Casa de Saúde”.

 

Naquele primeiro dia almocei com mais gosto a comida um puco insípida que nos serviam, passando o tempo de uma hora, uma hora e meia, usado para estarmos à mesa, trocando idéias com meu novo amigo. Uma coisa tive claramente em mente desde que conheci o dr. Citton e sabendo que aqueles nossos encontros se repetiriam três vezes por dia: eu logo imaginei que com ele me interessava falar de medicina; não de doenças, das nossas doenças, dos nossos males, mas da medicina em geral. Misturando as nossas trocas de idéias com tantos outros assuntos, eu aproveitaria dessa feliz circunstância para esclarecer problemas e questões que sempre me interessaram e quase me levaram a fazer-me médico.

 

Acabado o almoço, não subi imediatamente para o meu quarto, mas fiquei no salão do bar, lendo os jornais do dia, observando de esguelha a televisão sempre acesa, mas principalmente atentando aos vários grupos que em diversas mesas, em geral de quatro ocupantes, jogavam baralho. Curioso, porque também gosto de jogar baralho, meu olhar passava de mesa a mesa, tentando captar os movimentos dos jogadores e as vitórias e as derrotas. Os jogos eu os conhecia e praticava todos: nas muitas mesas se jogava principalmente “scala quaranta” e “scopa con l’asso”. Também em alguns grupos de jogadores via-se uma ou outra partida de “briscola”, “tre sette” ou de “madrasso”. A maioria das mesas se dava à “scala quaranta”. Os jogadores são de diversas proveniências, mas as regras dos jogos os unem numa disputa que parece não mais acabar.

 

Quando subi para o 2° andar, depois de admirar de longe os jogos que se repetem todos os dias, entrando no meu quarto tive a surpresa de ver a cama de Umberto Costa livre. Ele tivera alta e saíra de manhã, sem que eu o visse, como acontecera quase sempre entre nós naqueles poucos dias da difícil convivência. Vendo o quarto como que vazio, completamente meu, tive uma agradável sensação. Descerrei a cortina, abri a janela e contemplei como se fosse minha todas as terras descortinadas que subiam verdes para as montanhas. Respirei o ar puro e vi de longe os proprietários verdadeiros que trabalhavam a terra, podando árvores, cuidando das vinhas. Ao lado do proprietário da vinha mais próxima um cachoro girava em torno com a mesma tranquilidade de seu patrão. Deixei a janela e sentei-me finalmente na poltrona diante da cama vazia e ali fiquei por longo tempo. Depois preparei meus livros na mesa comum, apaguei a televisão que eu não percebera acesa e, pela primeira vez, subi na minha cama para procurar repousar no silêncio daquelas horas meridianas. Tudo me satisfazia e tanto que, em determinado momento, senti quanto é difícil conviver em intimidade com desconhecidos e como eu me sentia bem estando sozinho. Um sentimento de culpa se formou em mim, pois eu reconhecia amar mais a solidão que uma solidariedade a nós imposta pela vida nos seus diversos e mais difíceis movimentos. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sexta-feira, 24 de Junho de 2011

Um Novo Coração 32 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 32

 

 

Arco, 3ª jornada, 12/02/05

 

Como me tinha prometido ontem, logo que desci para o café de hoje corri imediatamente para a banca de jornais, procurando L’Unità. A jornaleira me disse   o mesmo senhor de sempre já comprou o único exemplar. Mais que desiludido, curioso, o procurei entre os pacientes que estavam no salão do bar à espera da abertura do refeitório, pois ainda faltavam alguns minutos paras as 8; finalmente o localizei sentado a uma mesa próxima às janelas que dão para o jardim. Trata-se de um senhor de não mais de sessenta anos, robusto, tranquilo, que lê com atenção o seu jornal. Agora sei de quem se trata, mas me parece que ele, igualmente, já sabe que me interesso pelo jornal que tem nas mãos. Quando todo nós nos preparamos para entrar no refeitório, já que agora as suas portas se abriram, o senhor do L’Unità, agora próximo a mim, me diz   logo depois de ter acabado a minha leitura, se assim quiser, lhe deixarei no seu quarto o jornal; qual é o número de seu quarto? Soube depois que o senhor era de Reggio Emilia e que estava igualmente hospedado no 2º andar.

 

Certo de que mais tarde eu poderia ler o jornal que queria, comecei a flanar por toda a manhã nas dependências da “Casa de Saúde”, na espera das horas dos exercícios respiratórios. Passeando descobri num ângulo do corredor junto às escadas que dão para os andares superiores um espaço dedicado a um Internet Café. Para usá-lo tinha de passar pela portaria e comprar uma ficha de 10 euros, com direito a várias horas de uso. Esgotada, bastava renová-la diretamente. Sentei-me diante de um computador, aquele mais próximo à janela da sala que dá para um pátio ajardinado. Assim, além de mais luz, eu podia igualmente distrair-me com a visão de uma lateral do jardim, com árvores e flores. Aberto o computador no meu email, reconquisto a presença inicial dos meus “preferidos”. Leio algumas mensagens, respondo às mais urgentes. Em seguida passo às outras, cancelando sem abrir aquelas publicitárias, mas lendo com atenção outras de desconhecidos, não necessariamente indesejados. Em meio a essas, encontro uma muito curiosa, mandada de Fortaleza por uma mulher de certo jovem e dirigida a Silvio Castro, mas que não sou eu:  Passaram-se cinco anos desde que nos conhecemos em São Paulo e depois não tive mais oportunidade de encontrar o seu endereço, como desejava muito. Agora aqui o tenho e gostaria de restabelecer o nosso encontro. Espero que você esteja bem e em pleno sucesso das suas coisas, tal qual cinco anos atrás.   A mensageira de Fortaleza teve a infelicidade de a sua mensagem haver tomado o canal de uma traidora homonímia.

 

Saindo do Internet Café, depois de ter percorrido por mais de duas horas alguns meandros da comunicação internet, lendo 3 ou 4 jornais, tomando sintéticos conhecimentos dos fatos acontecidos no mundo, pesquisado determinados elementos bibliográficos que me interessavam, me distraía, ainda sem angústias, pensando vagamente sobre a natureza do progresso tecnológico em confronto com as peripécias do dia-a-dia dos homens. Ao mesmo tempo me sentia confortado em poder participar de eventos e sentimentos que iam de Fortaleza até Hong Kong, de Veneza a Lisboa, mas mesmo confortado, caminhando, sentia também que muita coisa de tudo aquilo provocavam estranhas sensações no meu divagar.

 

 

 

 

 

 

 

 

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São João - Fernando Pessoa

 

Fernando Pessoa  São João

 

(ilustrações de Almada Negreiros)

 

 

 

 

 

 

Ó Precursor, fizestel-a bonita!

Não que teu Christo, incarnação do Bem —

Não seja quem seja o teu Divino Anunciado.

O mal são os que após, sem mystica divina

Nem ternura christã, ou só humana,

Metteram a Jesus na cella da doutrina

Com as algemas do ódio manietado

Para depois manchar de falsa fé

O pobre homem que todo homem é

 

A cruel multidão negramente infinita

Que tem sido o algoz ou o ladrão

Da ingénua humanidade afflicta —

Esses que, aqui mesmo, pelos modos,

Dão ao inferno realisação...

 

Ah, não podiam ser peores, nem

Que a mulher do Diabo, se elle a tem,

Os tivesse parido a todos.

 

Eu bem sei que houve muito santo e crente,

Muito puro, bondoso e inocente.

Bem sei, bem sei:

Sei-o eu e sabe-o toda a gente.

 

Mas esses, cuja alma está em Christo

São só isto —

Qualquer remédio que se dissolvesse

No chá que para isso ha,

E cujo gosto nelle se perdesse;

O chá fica sabendo só a chá.

Se o remédio faz bem,

Não o sabe ninguém.

Que o chá não presta, não duvida alguém.

 

Sabemos isso, e sabel-o hia antes

De todos nós teu Mestre que viria,

Propheta, Deus e guia dos errantes,

Quão dolorosamente o saberia?

Sei que houve astros no céu da fé vazia.

 

Sei, mas repara que falso isso soa!

Por mais astros que a noite use brilhantes,

Que Diabo!, a noite não se chama dia.

 

Ó Precursor! Fizeste-a boa!

 

Dahi, para nós, és de Lisboa,

Não és o precursor de nada.

Es um rapaz ainda menino

Que tem por missão boa,

Por missão sorridente e socegada

Ter ao collo um cordeiro pequenino.

 

Lá o que esse cordeiro significa

Não tem cheiro

Para o povo, que tem a alma rica

Da emoção que não conhece.

Para elle o cordeiro é um cordeiro,

E o menino sorri e a vida esquece.

 

O resto são fogueiras

E os saltos dados a gritar

Com um medo exaggerado

Feito tudo de maneira

A mostrar

O riso, as pernas e o agrado.

E quente e anonyma a aragem,

Tudo é juventude e viço

Num arraial multicolor e vasto.

Bonito serviço

Como homenagem

A quem, ainda com cabeça, foi um casto!

 

Mas é assim que és

E é assim que serás,

Até que pisem esta terra os pés

Do ultimo fado que o Destino traz.

 

Então, esperamos, eu e todos,

Ver-te "surgir no céu", como quem vence

Tudo que é realidade ou illusão

Por o menino ser que lhe pertence,

E os seus bons e santos modos

"Com o cordeirinho na mão",

Como te viu Catullo Cearense.

 

Mas, desçamos à terra,

Que, por enquanto, o céu aterra,

Porque antes d'isso mette a morte.

Ha muita coisa desconhecida

Na tua vida.

Tens muita sorte

Em ninguém saber da partida

Que em mil setecentos e dezassete

Tu fizeste à Egreja constituída

Estás, eu bem sei, cansado

Com o que a Egreja se intromette

Com tua vida e o teu divino fado.

 

(E) foi então que, para te vingar

E à maneira de santo, os arreliar

Desceste mansamente à terra

Perfeitamente disfarçado

E fizeste entre os homens da razão

Um milagre assignado,

Mas cuja assignatura se erra

Quando em teu dia, S. João do Verão,

Fundaste a Grande Loja de Inglaterra.

Isto agora é que é bom,

Se bem que vagamente rocambolico

 

Eu a julgar-te até catholico,

E tu sahes-me maçon.

Bem, ahi é que ha espaço para tudo,

Para o bem temporal do mundo vario.

Que o teu sorriso doure quanto estudo

E o teu Cordeiro

Me faça sempre justo e verdadeiro,

Prompto a fazer fallar o coração

Alto e bom som

Contra todas as fórmulas do mal,

Contra tudo que torna o homem precário.

Se és maçon,

Sou mais do que maçon — eu sou templário.

 

Esqueço-te santo

Deslembro o teu indefinido encanto.

 

Meu Irmão, dou-te o abraço fraternal.

 

(in Fernando Pessoa, Os Santos Populares, Edições Salamandra e Casa Fernando Pessoa)

 

 

Nota: Se não fosse a Carla, não haveria cantiga para o São João porque eu desconhecia esta interpretação da Amália. Vamos ver se alguém descobre uma para o São Pedro.

 

 

 

 

 

 

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Quinta-feira, 23 de Junho de 2011

Um Novo Coração 31 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 31

 

 

 

Arco, 2ª jornada, 11/02/05

 

 

 

Desde as 6 da manhã desta sexta-feira que é hoje, espero pelos eventos que quero afrontar num primeiro dia intenso de meu período de recuperação. Estou pronto para confrontar-me com as diversas experiências que me aguardam e, depois de ter feito a  barba e tomado o banho de chuveiro, como sempre faço na expectativa da alva que teima em não anunciar-se, aguardo a chegada dos enfermeiros para os exames de todos os dias. Logo  chegam e com eles a certeza de que a manhã começa. A primeira enfermeira chega com o termômento e logo se vê que a minha temperatura corpórea é sempre normal, 36º. A segunda, uma panamense que me fala em espanhol,  ¿Usted me comprende? Sí, ciertamente, señorita!   Todos os dias ela recolhe o meu sangue – e em determinado período a recolha será intensa e repetida, às horas 11, 14, 18, 21, o mesmo sendo feito com a urina, com resultados exemplares como: glicemia fracionada, às 11, 250 mg%; às 14, 219; às 18, 101; às 21, 108; quanto à urina, em todas as horas, resultado negativo - para o teste de glicemia e também, mas em dias alternados, com uma grande balança ambulante, nos pesa a todos. Chega uma terceira, esta igualmente uma estrangeira, mas comunitária, vinda da Polônia e  que fala perfeitamente o italiano; me toma a pressão: 13 e 9, tudo bem. Mais tarde passará o médico de turno para a visita quotidiana, mas sem horário certo. Por isso mesmo, muitas vezes não o espero e saio para os meus passeios indispensáveis à minha sede de deambulação, deixando aos alto-falantes a incumbência de reclamar pela minha presença. Hoje, como sempre, anseio por deixar a cama e poder descer para o café da manhã, que começa às 8. Entro no refeitório, numa sala menor, onde encontro a mesa que me é destinada definitivamente e que deverei dividir com um outro paciente. O meu companheiro de mesa não chega antes que eu tenha terminado de tomar o suco de fruta e o chá insípido, comer as frutas quase todas, desde a maçã até a pera e as tangerinas, mastigado sem prazer o pão fresco e uma ou duas fatias de pão-tostado. Não tenho muita fome e logo deixo o meu lugar para procurar conhecer melhor o ambiente. Antes de sair leio o menu do almoço: sopa de legumes com aveia, filé de truta “ai ferri”, vagens ao vapor, verdura crua, fruta, pão integral. Sei que posso modificar em alguns pontos o menu, se assim o desejar, basta ir numa sala ao fundo do corredor onde está uma funcionária e o seu computador que tudo pode registrar. Quando me levanto, a idéia que me guia é ir até lá, mas o faço com lentidão, passando primeiro pelo setor dos jornais, onde procuro L’Unità –  não tem mais, o único exemplar que tínhamos foi logo comprado por um outro senhor. Amanhã como primeira coisa devo procurar o jornal antes que o vendam. Deixo a jornaleira e começo a caminhar pelo corredor em meio aos grupos alegres de cardiopáticos e pacientes de problemas motores que conversam, olham as vitrines das butiques, as várias butiques da “Casa de Saúde”, que expõem à venda os mais diversos objetos e mercadorias para uma melhor, mais agradável permanência nesse hotel, centro comercial, hospital, todos em busca da recuperação da saúde abalada. Nota-se, desde uma primeira vista, que no ângulo mais visível do passeio interno encontra-se instalado um grande serviço automático “24 Horas” para quem precisar de todo e qualquer tipo de câmbio bancário. Também eu admiro as vitrines, gozando as ofertas de roupas especiais para a situação aqui vivida, roupas de ginástica de todas as cores, roupões, robe-de-chambre, chinelos, sandálias, tênis das mais diversas marcas e preços; e ainda toalhas, perfumes, sabonetes, cremes para a pele, cremes para a barba. Admiro com particular atenção determinados tipos de meias especiais, de uso  para as pernas inchadas. Penso em minhas pernas depois de liberadas dos ferrinhos da operação e que agora se apresentam grossas, duras, com difícil circulação, os pés com uma inchação teimosa. Leio o preço das meias, 35 euros, nada barato. Mas entro, provo, logo as compro e visto uma par delas. Saio e caminho de novo pelo corredor; me parece que meus pés riem de alegria.

 

Na sala aos fundos a funcionária com o computador acerta com uma multidão de pacientes, verdadeiramente tranquilos, mas curiosos, as possíveis modificações dos menús. Ela fornece a cada cliente uma lista dos pratos alternativos que podem ser escolhidos e que custam um quase nada – porém, caro leitor, nesse momento eu não lhe faço ver a lista alternativa, será para uma outra oportunidade, isso porque resolvi que não vou fazer qualquer variação ao menu de hoje. Tenho pouca fome e me são mais importantes outras coisas. Daqui a pouco, às 11 horas começam os exercícios respiratórios que muito me interessam. Quero respirar melhor, quero respirar o ar frio desse inverno, subir as montanhas, caminhar, correr sem cansaço como fazia quando corria para as conquistas dos gols e então não me detinha nenhum adversário pegajoso. Livremente, quero correr livremente.

 

Pego o elevador e com ele desço para o andar subterrâneo. Aqui está o salão C, dos exercícios repiratórios. Entro no salão, sou o primeiro a chegar, o fisioterapista me acolhe alegremente, quase como um esportista, e toma nota de meu nome. Logo em seguida começam a apresentar-se os outros pacientes, todos cardiopáticos. A maioria são idosos, alguns jovens. Eles parecem um pouco atemorizados com a novidade, mas logo o fisioterapeuta os tranquiliza. Dentre os mais velhos, um homem e uma senhora de belos cabelos brancos branquíssimos são os mais chocados com a impossibilidade que denunciam de fazer qualquer exercício físico. Todos nós os consolamos e incentivamos a começar a experiência. Os exercícios são de dois tipos: gestual, o primeiro; mecânico, o segundo. O fisioterapeuta convoca a atenção de todos para os seus gestos que em seguida deveremos repetir numa sequência de dez operações, com intervalos de repouso. Distende lateralmente os braços; com a boca fechada, faz uma profunda inspiração partindo do estômago, com contrações dos músculos abdominais, até chegar aos pulmões. Em seguida, libera a respiração pela boca e pelas narinas. Quando começamos o exercício, mais do que nunca compreendemos como as pessoas em geral não sabem respirar e como quase nunca usam os músculos abdominais para fazer com que o processo de melhor intensificação respiratória parta de muito longe, e não só e imediatamente dos pulmões. O exercício mecânico se faz com um aparelho muito simples que vem dado gratuitamente a todos e que deverá servir para uma continuação indefinida dos exercícios, mesmo depois do período previsto para a permanência na “Casa de Saúde”, isso porque é recomendado que devemos repetir a cada dia em privado, por um total de cinquenta vezes, em cinco etapas de dez cada uma, os nossos exercícios. Simpatizo com o método porque logo penso que ele é concebido como uma ginástica respiratória fortemente passível de condicionamento por parte de uma vontade individual ativa. O aparelho é dividido em duas partes: a primeira é um tubo azul de plástico macio, de30 cm, que termina em um bocal branco, também esse de plástico, porém mais duro, pelo qual se inspira profudamente e se respira para fora da boca, prolongadamente. O tubo azul se liga e fixa-se numa estrutura incolor de plástico duro, de10 cmde altura, dividida em três espaços, cada um contendo internamente uma bolinha de plástico, sendo as três de cores diferentes. A primeira é cinzenta-clara; a segunda, cinzenta mais escura; a terceira, cinzenta-escura. O exercício consiste em fazer subir as três bolinhas até o alto dos 10 centímentros. Para conseguí-lo o paciente deve, para elevar a primeira bolinha, cinzenta-clara, realizar uma aspiração de 600 cc por/seg.; para a segunda, 900 cc; para a terceira, a cinzenta-escura, de 1200 cc p/seg. Assim como para quase todos é relativamente fácil levantar a primeira bolinha, logo acompanhada pela segunda, mais difícil é fazê-lo com a terceira. Agora, caro leitor que me acompanha com continuada atenção, quando escrevo tudo isso e ao mesmo tempo me vejo aspirando pelo tubo azul, conseguindo depois de exercícios vários levantar por 20, 30, 50 vezes as três bolinhas, gosto de pensar que você também está fazendo o mesmo exercício e assim rodopiamos juntos e felizes, sentindo o ar puro que brota dos nossos pulmões e nos inebria.

 

Já que estamos integrados com forte empenho no exercício respiratório, quero lhe dizer ainda, caro leitor, que em seguida fui realizar um exame médico muito interessante nesse sentido, o do aparelho nasal, em procura do estafilococo nasal. O êxito final foi: narina dx: negativo; narina ex: negativo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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S. João - Marcos Cruz

 
Marcos Cruz  S. João
 
(Adão Cruz)
 
 
João estava são, mas não tencionava ir ao S. João. Era uma contradição quase evidente, pois, no Porto, só não vai ao S. João quem estiver em má fase, morto ou doente. Mas João tinha uma explicação assaz convincente: o seu cão, pouco paciente, não lhe daria paz em noite tão exigente. Uma solução era deixar o cão na vizinha, mas esta, tripeira dos quatro costados, queria também ir à festa, e sozinha, sem atrelados. O que fazer, então? Das tripas coração? Talvez não. Afinal, o S. João não valia tanto, para o João, como aquele espanto de animal. No entanto, mais do que ninguém, estava o dono seguro de que quem troca o pão, mole ou duro, e a sardinha na brasa por passar, com o cão, em casa, um serão distinto, sem um grãozinho na asa, não sabe o que perde, pois como isso não há nada, nem o chouriço, o vinho, verde ou tinto, a martelo, nem a própria martelada. Bailarico popular é o S. João, e só ficam a ganhar os que lá vão. Foi já resignado à desdita que o João, acabrunhado, teve súbita visita de uma cantora de fado. Ainda ela lhe dizia que viera de Lisboa rever uma velha amiga mas não a tinha encontrado, logo o João, animado, deu corda à imaginação, pensando se não seria a sumida rapariga a sua vizinha do lado. Era mesmo, pois então, e foi em tom de cantiga que o bom do João propôs à querida fadista condição oportunista para lhe dar guarida até ao regresso da amiga: tomar-lhe conta do cão. Ela ficou convencida e, pronto, missão cumprida, lá foi ele, feliz da vida, cumprir também a tradição.

 

 

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Quarta-feira, 22 de Junho de 2011

Um Novo Coração 30 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 30

 

 

 

Arco, 1ª jornada, 10/02/05

 

Aqui está Arco e logo nela a “Casa de Saúde”. Gianni estaciona o carro e vamos para a portaria, passamos o jardim sob o ar frio, mas acolhedor, do meio-dia invernal, entramos na recepção. Todos nos esperavam e cada detalhe se completa com Anna Rosa que acerta tudo, enquanto eu e Gianni olhamos o ambiente interno, os corredores, salas, salões. Impressiona o som melodioso que vem de alto-falantes escondidos. O baile pode começar!

 

Registrado definitivamente, subo com minha mulher no elevador para o 2º andar, aquele destinado aos cardiopáticos. O meu quarto é o 225. Nele encontro já as coisas que me servirão para a vida quotidiana que agora começa, todas correspondentes à presença da “Casa de Saúde” no empenho prático de minha reabilitação clínica. São objetos de utilidade direta, como o roupão branco com a marca da empresa médica, as toalhas também elas brancas e felpudas, tanto as menores, de rosto, como as maiores, as de banho; um par de chinelas quase chinesas, dada a leveza e volatilidade das mesmas; uma farta bolsa de plástica transparente, sempre exibindo os dados publicitários da “Casa de Saúde”, com uma escova de dente, um tubo de dentifrício, sabonete, um vidro de xampu, um pente marrom, até mesmo uma touca para a proteção dos cabelos nos banhos. Anna Rosa, enquanto eu preparo as coisas do banheiro, arruma todas as minhas roupas no armário colocado na entrada do amplo quarto.

 

Depois de termos almoçado juntos no restaurante do meu quase hotel, Anna Rosa e Gianni partem para Veneza. Agora me encontro sozinho diante dessa nova realidade que é a “Casa de Saúde”. Reentro no grande salão do bar, deixando quase sem querer o ar frio envolvente do jardim e de longe vejo ainda o automóvel que volta para Veneza, numa visão que se obstina. Sinto uma perplexidade geral que me envolve e inebria, diante desse novo ambiente a que me devo adaptar. Sinto como se meu pensamento pairasse em torno a tudo quanto me circunda e que me traz a sensação de alguma coisa desconhecida, ainda que procurada. Saberei aderir verdadeiramente a esse espaço que as circunstâncias me impuseram e ao qual eu jamais pensara?

 

Agora o salão do bar está praticamente vazio, o bar fechado, a televisão apagada, as salas do restaurante, com mesas para quase duzentas pessoas, silenciosas. Hoje almocei numa sala dedicada aos hóspedes, e assim será ainda para o jantar. Porém, a partir de amanhã, mudarei para uma outra, onde terei uma mesa dividida com um paciente-hóspede como eu, e assim por todo o tempo de minha estada. Procuro integrar-me com o salão vazio, mas sinto que aqui estou vagamente, como que fora do espaço e sem conhecimento de um tempo feito de fisionomia indefinida. Já agora, não é uma sensação inteiramente desagradável, a que sinto. Mas, possivelmente, não é nem mesmo uma sensação porque, mais que sentir alguma coisa, em verdade circulo dentro de mim mesmo e com vagar, sendo assim que participo das coisas externas. Este vagar interior não se parece com uma aparente sonolência, nem procura o sono, sonhos, pois sei e vejo que estou começando uma nova experiência, ainda que de fronteiras indeterminadas. Nela como que me fecho, cerro suas janelas verdes, e estou dentro. De repente, porque me parece que poderia ser somente de repente, sinto como que um vento de vozes que me faz retomar a visão do espaço que me circunda. São pessoas que entram aos grupos no salão, se dirigem para o balcão do bar novamente aberto, conversam com animação. Eu não sabia, mas já se passaram três horas desde quando eu não sonhara e agora a “Casa de Saúde” retomava seus movimentos, depois do quase geral repouso da tarde. As horas aqui são concretas e sempre contadas. Agora são as 17 e daqui a duas todos descerão para o jantar, os pacientes do 1º andar empenhados na reabilitação motora e neuro-motora, bem como os como eu, na cardiológica. Entro no ritmo coletivo, pronto a participar. Acabado o jantar, me levanto e depois de passar alguns minutos contemplando o crescente movimento do salão não vou ao bar, como talvez fosse de minha intenção, mas quase como uma auto-censura o evito, pois não tenho certeza se já posso, se me convém tomar um café, beber um copo de vinho. Sem tristezas me levanto e começo a caminhar pelos corredores, evito o elevador, subo as escadas que me conduzem ao meu quarto, o 225.

 

Divido o quarto com um senhor alto, de meia-idade, de poucas palavras e muitas angústias. Umberto Costa me deu de imediato a sensação de que o nosso convívio circunstancial seria difícil. Desde logo compreendii que ele fazia notar com gestos mudos que quase tudo daquele quarto ali estava para ele, e tão somente. Sua cama se encontrava próxima da janela e ele administrava a cortina que fechava ou liberava a visão da paisagem externa conforme a sua vontade acintosa; assim era para com a única poltrona disponível, com a mesa que desde sempre acolhia e mantinha as suas coisas, com a televisão. A minha cama estava na parte da entrada, próxima à porta do banheiro. Desde logo me preparei mentalmente para ficar o mínimo possível no espaço do quarto. Resolvi vestir-me com a roupa de ginástica nova que me dera Anna Rosa, azul marinho e muito confortável, de ar chique como o daquele meio-sério, meio-mundano da “Casa de Saúde”. Era feita de uma lã suave, mas consistente e forte, ideal tanto para a vida interna, quanto para as saídas em busca do frio ar livre do jardim e das ruas próximas. Depois do jantar, quanto voltei ao quarto, notei que o meu companheiro sombrio não descia ao refeitório, consumindo as refeições no quarto. A televisão estava acesa, ainda que ele principalmente a ignorasse. Logo preparei a minha cama e saí para a sala-de-estar, com um livro nas mãos. Como sabia que quase não dormiria, me preparava para muitas horas de leituras.

 

A sala-de-estar não o era de verdade, pois não passava de um espaço livre diante das portas dos dois elevadores que subiam e desciam. O espaço estava preparado com várias cadeiras e poltronas que ladeavam um grande recipiente, dividido em duas partes, cheias de chá ou camomila, já adoçados ou não. Por toda a noite os pacientes insones delas se serviam. Ali me sentava e lia, lia sempre com grande prazer, não só pela leitura em si mesma, mas porque com ela a noite passava. Ler assim acrescenta um novo, insólito prazer aos muitos reconhecidos desde sempre por aqueles que amam a leitura e os livros. Trata-se de um gozo que está no livro e na leitura, mas igualmente fora deles. Eu leio; enquanto percorro palavras frases períodos, supero páginas e páginas tanto com o tato que reconhece o papel, quanto com a atenção que se integra com as revelações da linguagem que escorre narrativa, e junto a tudo isso sinto igualmente a noite que não passa e eu que nela entro, cada vez mais dentro, cada vez mais dentro. São poucos agora os notívagos que se socorrem do chá quente. Então fecho o livro, me levanto e vou para o meu quarto. Com cuidado, abro a porta e de novo a fecho. Dentro, uma luz atenuada, mas visível, descobre as sombras. A luz vem da televisão sem voz, mas não apagada, e se confunde com o pesado silêncio insone de Umberto Costa, que eu não conheço.

 

 

 

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Se eu adormecer - Ethel Feldman

Ethel Feldman

 

 

se eu adormecer
no teu corpo
deixa-me estar
até que eu saiba ouvir
o som longe da brisa
que vem do mar
quando meu corpo 
se perder no teu 
abraça-o até que ele 
saiba despertar 
noutro lugar 
beija agora 
meus lábios 
sem descanso 
enquanto falamos


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Terça-feira, 21 de Junho de 2011

Um Novo Coração 29 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

 

Capítulo 29

 

 

 

A recuperação gozosa está por interromper-se. Logo na manhã seguinte à minha rápida reconquista do bem-estar quotidiano, chegam os dois homens do transporte sanitário e assim começa a minha viagem para Arco.

 

Na cadeira de rodas chego ao canal dos Carmini onde nos espera o taxi aquático. O percurso que deve ser feito é curto e por isso mesmo vem realizado com lentidão. Deixado o canal dos Carmini, o Rio de Santa Margherita, se entra naquele longo e curvo, o Rio Novo, que vai até a Praça Roma, saída de automóveis e ônibus de Veneza. O taxi percorre o Rio Novo com grande lentidão, mas não temos, Anna Rosa e eu, qualquer curiosidade de olhar para fora do barco, pois a paisagem nos é mais que conhecida.

 

Descemos no ancoradouro habitual dos pacientes, vítimas das mais diversas doenças, que chegam a Veneza ou dela saem, e Paola nos acolhe logo ali com a gentileza que é sua e que nos faz partir daqui para Arco no seu carro pessoal. Paola, apenas soube que eu iria para o tratamento de recuperação na “Casa de Saúde”, queria nos levar pessoalmente até lá; mas, não podendo, deixou o automóvel com o seu e nosso amigo Gianni que nos conduzirá, a mim e Anna Rosa. Depois de deixar-me em Arco os dois retornarão a Veneza.

 

O carro já estava ali junto do ancoradouro, naquele mesmo ponto onde ficam as assistências que partem depressa para Mestre, com o doente de Veneza, ou chegam sempre depressa vindas de Mestre, com o doente para Veneza.

 

Diante do automóvel de Paola, ela quer que eu tenha o lugar privilegiado ao lado do motorista. Mas, surpreendo todos quando digo que me sentaria atrás, porque não posso usar o cinto-de-segurança por causa do meu esterno tão maltratado e ainda dolente. Quando digo isso todos imaginam qual absurdo seria um acidente na viagem, mesmo se se tratasse de um pequeno acidente, capaz de arruinar toda a dolorosa conquista de meu peito em restauração.

 

Gianni parte pegando a auto-estrada da Serenissima que indo de Veneza para Milão hoje nos interessa somente até Verona, porque dali tomaremos outra estrada que vai para o Brenero, sabendo que depois a deixaremos em Rovereto Sul.

 

Partimos esperando passar as duas horas da viagemem tranquilidade. Enquanto AnnaRosa e Gianni conversam na frente, no banco de traz estou em silêncio e medito sobre a minha nova etapa que já começa nesse carro que corre seguro.

 

O rodar do automóvel é um passar sereno por pensamentos indistintos que abarcam passado e futuro próximo, mas que não quer fixar-se nem neste e nem naquele.

 

Superada Pádua, quando estamos deixando a sua entrada-saída Sul, na entrada da circunvolução estradal, enquanto Gianni continua sua corrida tranquila de 120 quilômetros por hora, de repente ele freia, conseguindo assim evitar o choque com uma camionete que vinda de fora invadia a primeira pista sem nenhuma atenção. Gianni evitou o choque, porém atrás eu não posso senão imaginar sobre o que teria acontecido com o meu esterno se eu estivesse cinturado no banco da frente…

 

Verona logo fica para traz e corremos agora na direção do Brennero. A paisagem começa a mudar, deixando a gentil serenidade das terras vênetas para a outra manifestação de ar gentil, esta mais exteriorizada, mais consciente de um passado fixado em castelos e fortalezas, a paisagem trentina.

 

Rovereto nos indica a nossa saída, da qual Arco dista 9 quilômetros. Porém nos parece que percorremos mais de 9, passando por diversos centros habitados, descortinando colinas e vislumbrando ao longe ângulos altos do Largo de Garda.

 

 

 

 

 

 

 

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O Paquete - Adão Cruz

 

Adão Cruz  O Paquete

 

(Adão Cruz)

 

O Paquete entrou no serviço de urgência inchado como um tonel tenso como um balão a que só falta o alfinete para estoirar fígado pulmões ventre de pandeiro tudo está encharcado como uma esponja por um coração entupido sem ar como se morresse afogado ou dentro da linguagem médica como peixe fora d’água.

Insuficiência cardíaca grave insuficiência cardíaca descompensada anasarca…os vários termos para rotular o sofrimento atroz de um jovem sem culpa igual a tantos outros que jogam ténis.

Socorrido na primeira fase de compensação e um tanto aliviado foi internado para estudo e veio fazer um ecocardiograma.

O Paquete tem vinte e seis anos e uma cara aciganada morena de si e roxa da cianose.

Começou a trabalhar como moço de trolha aos treze anos vergado ao peso da tábua e do balde e à força de cachaços lá se erguia quando aninhava com o abafa.

Nunca alguém o levara ao médico.

Não tive coragem de colher a sua história antes desta idade a história da sua infância.

A meio do exame diz-me o Paquete a medo e quase em segredo Sr. Doutorestou à rasca para mijar deixe-me ir mijar pelas almas… no meio de tais máquinas perante aquela gente de bata branca que ele nunca vira mais gorda o sofrimento da sua vida levava-o a pensar que pedir para mijar era quase um crime.

O Paquete tem uma gravíssima estenose mitral com severa insuficiência mitral e tricúspide e um coração do tamanho de uma melancia está numa fase inoperável a rebentar pelas costuras… se operado fosse tudo não passaria de remendo em calças a desfazer-se.

Sem a mínima ideia do que se passa ele submete-se humilde desconfiado medroso como sempre aconteceu em toda a sua vida tem medo que lhe ponham a tábua à cabeça ou o balde na mão e com aquela falta de ar…ele que sempre pediu para o deixarem respirar um pouco antes do peso de outra tábua e de outro balde.

O Paquete nunca fora ao médico e nunca ninguém lhe dera a mão para se erguer todos lhe esfacelaram o coração e a vida até rebentar.

Pobre Paquete pobre barco tão frágil.

Com as lágrimas nos olhos saí do hospital e escrevi esta história de hoje de há séculos e escrevo-a em especial para os meninos e jovens que brincam que jogam que sonham e que vão ao médico.

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publicado por Augusta Clara às 19:00
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Segunda-feira, 20 de Junho de 2011

Um Novo Coração 28 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 28

 

 

 

Depois de muito tempo ausente, hoje estou voltando para casa. Ter finalmente recebido a alta do hospital se revela um ato cheio de significados. Quando Giorgetto me serve o café-da-manhã, como o fizera tantas vezes sempre alegre e palrador, sinto nele modificações que denunciam uma participação particularmente afetiva. Assim continua por toda a manhã, enquanto eu me preparo para a saída: depois de ter feito a barba, como acontecia todos os dias, mudo de roupa, deixando o pijama e a casaca vermelha para vestir-me com a calça de veludo verde-claro, uma camisa branca, um pulover verde-escuro. Com a enfermeira-chefe troco idéias sobre a minha cartela clínica que desejo completa, bem como também sobre todos os papeis que documentem a minha longa hospitalização. Troco as últimas impressões com o doutor Tessari e dele recebo igualmente as últimas recomendações. Colho ainda aquele imperceptível sinal de atenção vindo das enfermeiras – uma delas, Elena, é a mesma que um dia me vendo em passeio pelos corredores com um exemplar de L’Unità nas mãos, me disse   que prazer ver um senhor que lê L’Unità! Também percebo que as jovens auxiliares encarregadas de preparar as camas hoje não tocaram a minha, deixando-a como está, com os sinais da noite passada, e certamente o fizeram com a intenção de não obrigar-me a procurar outros assentos, como aconteceria se a minha cama já estivesse preparada para o próximo internado.

 

Anna Rosa chega ao meio-dia e com ela os dois jovens do transporte sanitário que me levarão para fora. Devo dizer a Giorgetto, decepcionado, que não vou almoçar, ainda que ele proclame, provocador, que hoje tem lasanha à bolonhesa…

 

O táxi-motoscafo nos espera no habitual ancoradouro na margem da laguna defronte à ilha do cemitério de Veneza. Ali chego sentado numa cadeira de rodas conduzida por um dos jovens, ainda que eu tivesse a intenção de caminhar com as minhas próprias pernas.

 

O táxi parte, saindo das margens da laguna – vejo na corrida que começa, ficando sempre mais para traz, as janelas de meu quarto do hospital – para penetrar no Canal Grande, nele caminhar lentamente e chegar até Ca’ Rezzonico, onde descemos e eu de novo na cadeira conduzida percorro toda a minha familiar Calle Lunga San Barnaba até a porta da minha casa. São mais de duzentos metros de percurso, passando por todos os bares, tratorias, negócios vários, com a gente que, como sempre, flana indolente, conversa, olha vendo e não vendo, e eu enquanto passo na cadeira carregada pelo jovem operário sanitário não sei se o sentimento que me vem de encontro então é de vexação pelo meu atual estado, de tímida vergonha ou de indiferença.

 

Chego finalmente e tudo em mim se refaz na dimensão serena do habitual. Com Anna Rosa feliz de me ver de volta à casa, subo os 32 degraus da nossa escada interna. Então me recordo da recomendação do doutor Ventura depois de alguns dias da operação, no meu ato de alta de Mestre,   recomendo, é preciso fazer muito exercício, não receie de usar as escadas de sua casa, como fará com os degraus das pontes de Veneza, suba e desça sempre que puder.

 

Subo e chego no salão das muitas janelas e de muita luz. Minha poltrona predileta me espera e logo tomo posse dela. Dali contemplo as variadas coisas que compõem com nossos gestos o salão: os quadros – que depois se alojam em todos os cômodos, na sala de visita que também é de jantar, no meu escritório e naquele de Anna Rosa, no quarto de dormir, nas escadas, na mansarda, quadros que me seguiram nos anos, de Rincicotti, Variola, Aldo Bresciani, Licata, Gianquinto, Zigana, Antonioni, Naletto, OPS, A. Teixeira Lopes (o mesmo artista português autor das portas da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro), Gil Teixeira Lopes, Emeric Marcier, Adir Botelho, Benjamim Silva, Sônia von Brusky, Lena Bergstein, Gonçalo Ivo, Maria Lacerda e outros, a estante vermelha de livros de arte, aquela outra branca dos livros de história, a televisão, os vasos de flores sempre vivas, os tapetes, a mesa branca redonda no espaço mais apartado do salão, esculturas de Sônia von Brusky e Matteo Lo Greco, o meu escritório com as minhas cadeiras, o elegante divã de legítimo Oitocentos veneziano, com os meus tumultuados livros de literatura nas três estantes, em filas duplas e triplas, que fecham a visão das paredes para ressaltar aquela multicolorida das centenas e centenas de volumes. Tudo me recorda a repetição quotidiana da vida familiar e me restauro, me retomo como dantes e sinto nas veias atormentadas o perpassar de um refrigério que é doce satisfação.

 

Anna Rosa prepara tudo, chama pelo telefone o ansiado cabelereiro, me serve um almoço leve, me conta das coisas. Depois chega Danilo, o cabelereiro, me corta finalmente os cabelos compridos, me conforta com sua atenção e me recorda, enquanto fala de tantas coisas da vida veneziana, meu pai quando recebia no escritório seu barbeiro amigo, com ele ficava por um tempo que não acabava mais em conversação, enquanto cortava o cabelo e fazia a barba. Comigo Danilo não demorou tanto e logo partiu, contente ele também.

 

Depois repouso no meu escritório, sentado na velha poltrona e diante da escrivaninha coberta de papéis e dos livros de literatura nas grandes estantes. Repouso passando dispersivamente o olhar pelas estantes e como lendo as centenas e centenas de volumes, fixando somente suas lombadas. Quanto mais passo de volume em volume, mais meus olhos se fecham num quase sono que se esboça, se adensa e me toma em enevoados embalos.

 

Voltar para casa, ainda que sabendo que na manhã seguinte partirei de novo na procura da cura, agora na Arco da reanimação obrigatória, este voltar caseiro é alguma coisa de lenitivo que compensa os dias de suspensão vividos até então nos hospitais. Tudo se faz equilíbrio e cada objeto conhecido assume um significado restaurador. Mesmo os mais insignificantes: aperto os interruptores das luzes e provo muitas lâmpadas; tomo nas mãos e o manobro repetidamente o controle-remoto, correndo pelos canais televisivos sem qualquer interesse direto; me sento no sofá azul que agora é amarelo-ouro e recupero o hábito de estender as pernas, apoiando-as nas mesinhas baixas e brancas que devem servir para oferecer as bebidas às visitas, mas que estão sempre cobertas de outras coisas; entro no banheiro e seguro um pente e me penteio fazendo a linha na direita, e tomo uma escova de dente e a manobro ainda que sem dentifrício, mas sempre com o sabor daqueles já passados, e pego numa toalha, a minha entre as minhas, sem confundir com as de minha mulher. Vou para a cozinha: gosto de me sentar na cozinha, de comer na cozinha sentado à pequena mesa, e gosto como sempre de conversar nessa posição, como fazia com minha mãe sempre atarefada no fogão, escondida por detrás da meia-parede que dividia a nossa antiga cozinha em duas partes, mas que não conseguia escondê-la de mim.

 

Anna Rosa prepara o jantar.

 

Chega a noite e reencontro a minha cama. Nela subo, sempre me apoiando na corda aqui colocada por Anna Rosa, e meu osso esterno não sente que estou para deitar-me numa cama completamente diferente daquelas dos hospitais. Esta me acolhe com os benesseres que confortam o corpo todo, assim larga, profunda, os colchões que parecem o prolongamento de meus membros, músculos, pele, ossos. A tepidez desse colchão neutraliza qualquer desgosto vindo da humidade e do frio, nos conduz para o repouso que pode quase sempre transformar-se em sono profundo. Mas para mim agora o dormir é sempre difícil. A posição supina me constringe a uma concentração muscular que se faz reação nervosa. Na cama recuperada vivo a tentação de virar-me para a esquerda ou para a direita, na ambição de refazer a compensadora posição fetal e logo institivamente me auto-censuro e reajo e não durmo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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