Sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2011
Está-se pois a falar de ratings e é de ratings que se fala com a avaliação dos docentes e das instituições universitárias. Numa carta aberta dirigida ao presidente da Comissão Europeia José Manuel Durão Barroso sobre o mesmo tema e no ponto “Dizem-nos ter ‘modernizado’ o sistema de ensino superior”, “modernização” que o primeiro-ministro José Sócrates e o senhor Ministro se orgulham tanto, afirmei:
Flexibilizaram-se os contratos de trabalho, precarizou-se a segurança no trabalho, colocou-se, por essa via, os professores a considerarem a sua carreira como uma espécie de campeonato de futebol onde o importante é marcar pontos contra os outros e impedir que no-los marquem a cada um de nós, onde estão sujeitos a avaliação contínua como se as sucessivas provas públicas deixassem de ter qualquer significado, onde se passa a fazer não o que se deve verdadeiramente fazer mas sim aquilo que o avaliador é capaz de exigir e compreender, de quantificar e, normalmente, trata-se de coisas diferentes. Possivelmente, a partir de agora, cada professor poderá estar mais interessado em compor a montra onde se irão colocar os dados que vão ser quantificados, avaliados, medidos, do que propriamente em preocupar-se com a função para a qual é pago: ensinar. E esta última função passa-se sobretudo na sala de aulas, no que está aquém dela, no que está para além dela mas onde esta é sempre o centro. Aqui, não há métrica que valha mas a lógica neoliberal exige o impossível que é quantificar o que não é quantificável e é assim pela simples razão de que o que lhe interessa não é a qualidade mas a quantidade. Primado absoluto da quantidade sobre a qualidade, primado absoluto da precariedade a que os docentes vão estar submetidos sobre a estabilidade que a estes deveria ser oferecida, primado absoluto, portanto, do número, neste caso das vias que levam à redução dos custos. O que passa a ser preciso é considerar a carreira e a vida como uma escada de acesso a um trapézio muito alto e de onde não se pode cair ou não se deve, já que a queda pode ser mortal. Por essa via, é a profissão que sai minimizada e os estudantes, esses, passam para segundo ou terceiro plano, desejando-se apenas que não nos atrapalhem na subida das escadas da vida de cada um de nós, professores. Adicionalmente, reduz-se a dimensão dos cursos, multiplica-se o número destes, vejam-se só os números de cursos em engenharia espalhados por esse país, multiplicam-se os mestrados e inventa-se a transversalidade para os diversos mestrados, em que um licenciado em direito ou em agronomia ou noutro curso qualquer, onde praticamente não teve economia, pode tirar um mestrado na área de gestão ou de economia e num tempo bem curto. A tudo isto dizem chamar-se “modernização” do ensino superior.
Em suma, “modernizar” o ensino superior pode vir a significar um custoso processo de autonomização e de conservação da ignorância dos estudantes que, em vez de verem a ignorância por si vencida, esta é a função da Universidade, passam é a ser possuidores de uma ignorância mantida ou acrescida, derivada da erosão do tempo em que não se estuda ou em que se passa por cima de quase tudo o que é estudo, com a velocidade de quem tem medo de perder um outro comboio, o de ir procurar e conseguir emprego antes dos outros, os seus colegas concorrentes. Mas, tudo isto faz parte da “modernidade” de que nos falam até à exaustão os nossos políticos..
publicado por Carlos Loures às 21:00
editado por Luis Moreira às 18:26
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Quinta-feira, 24 de Fevereiro de 2011
Ao longo dos últimos anos alimentou-se a esperança nas famílias de mais fracos rendimentos de que os seus filhos poderiam atingir níveis de ensino cada mais avançados, graças ao alargamento do leque e dos horizontes escolares, e que isto era a garantia de uma ascensão profissional e social relativamente a eles próprios. Apesar de as gerações mais novas atingirem de facto diplomas de níveis de ensino superiores às precedentes, não adquiriram no entanto os saberes, os conhecimentos, as competências, que lhes deveriam estar associados, para enfrentarem os concursos aos quais têm o direito de concorrer e perdendo assim a possibilidade de conseguirem a mobilidade social ascendente tão ansiada. São então projectados para os segmentos de mercado que não têm nenhuma relação com o diploma ou o seu nível de estudos. O lugar de operadores de caixa nas grandes superfícies ou os empregados de balcão em lojas são disso um triste exemplo. Muitos destes só agora é que começam a compreender que os deixaram sucessivamente passar em disciplinas, em anos, em níveis de ensino, que do diploma ficaram quase que basicamente só com o certificado, não com os conhecimentos, não com as competências, porque nada ou pouco disso adquiriram. Muitos destes acabam por compreender no terreno dos factos que o ensino secundário não cumpriu uma das suas funções (seleccionar os estudantes capazes de chegar à Universidade), muitos destes acabam por compreender que a selecção se faz cada vez mais tarde, a meio dos cursos quando estes têm qualidade, ejectando-os do sistema, ou então descobrem já na Universidade que a própria entrada no ensino superior é ela própria a garantia de obtenção de um diploma. Neste último caso, a selecção é dramaticamente realizada no final, provocando uma multiplicação e consequente desvalorização dos diplomas, levando isto a uma corrida à procura de mais e mais pós-graduações na tentativa de se diferenciarem e assim poderem ser validados pelo “mercado”.
Aghion e Cohen (2004, p. 62) criticam implicitamente Stéphane Beaud por não avançar com uma reflexão sobre os meios que devem ser utilizados pelas universidades para deixarem de ser “fábricas de desempregados” (entre aspas no original); nas suas próprias palavras:
Stéphane Beaud considera aliás que “a democratização” quantitativa do ensino e a ausência de selecção não fizeram mais do que acrescer o dualismo das fileiras no ensino superior. As classes preparatórias e as Grandes Escolas constituem hoje, mais do que nunca, o viveiro de recrutamento das elites. A Universidade desempenha, ao seu lado, o papel de espaço de descompressão e de filtragem. Com efeito, para fazer face à massificação e à democratização, a instituição universitária adoptou a seguinte prática pedagógica: menos aulas práticas, baixa da taxa de enquadramento pedagógico, diminuição das provas de exame, para facilitar a correcção dos exames, pelo menos em certos cursos e nos primeiros anos. A baixa de selecção no liceu, no ensino terminal, implicou, quase que automaticamente, uma redução de nível do diploma do segundo ano e da licenciatura…
Os franceses ainda têm as “preparatoires” e as Grandes Escolas, nós ficamos sem nada. Sinceramente, senhor Ministro, a França ainda terá elites e o resto, nós apenas o resto… O texto citado foi escrito em 2004 para o primeiro-ministro francês, mas até me custa imaginar o que seria este texto hoje.
Mas como mostram as estatísticas da OCDE, nós crescemos e crescemos bem, mas estas estatísticas medem apenas o número de licenciados, não avaliam a qualidade dos mesmos. Esta não parece, não foi, nunca a pretensão do actual Governo, antes pelo contrário, nem é aqui a preocupação da OCDE. Os resultados em termos de qualidade são, do meu ponto de vista, os descritos no texto que a si, senhor Ministro, lhe foi enviado com a carta aberta entregue ao senhor Presidente da República. Mas dessa carta enviada nenhuma indicação de recepção assinalada e o nosso Presidente deste ponto de vista e do alto da sua honestidade por ele próprio bem afirmada mas nada provada continua a estar bem calado. Não vale a pena, portanto, insistir neste ponto.
A propósito da qualidade de ensino e do seu efeito sobre as capacidades intelectuais de quem dela é um produto, como me custa a imaginar, senhor Ministro, o que entenderá cada um dos “seus licenciados de Bolonha”, face à vida, face ao “mercado”, face ao seu próprio devir. Terá cada um deles capacidade de questionar o que é o Homem? Será cada um deles capaz sequer de sentir que a pergunta tem sentido? Ou será que ganharão esse sentido quando o não sentido que lhes é agora imposto se transformar em corrente humana, na rua, em manifestações, em protestos, conferindo-lhes pela revolta esse sentido de fazerem parte da vida, de fazerem parte da História, como nós o ganhámos nas ruas, nas fábricas, outros nos campos, outros nas universidades, nas campanhas de solidariedade que organizámos, nas manifestações, na capacidade de enfrentar directa ou silenciosamente o poder de Estado, o terrorismo de Estado de então?
Muito mais hoje do que ontem, muito mais do que há cinquenta anos atrás, sinto-me hoje um loser, mas não pelas mesmas razões. Antes, porque o sistema me garantia que não tinha direito a nada, tinha que o conseguir, senhor Ministro, agora como docente sinto-me totalmente enganado por alguns daqueles que outrora me ensinaram.
Gostaria de terminar este assunto sobre a qualidade do ensino na reforma de Bolonha com as palavras de Vitorino Magalhães Godinho (2010, p. 62) que de uma forma só ao alcance de alguém com a sua estatura intelectual podia escrever:
Sobre o caos em que se tornou o ensino universitário abateu-se o chamado processo de Bolonha, obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista. O primeiro acto de qualquer governo com um mínimo de sensatez tem de ser a revogação das abstrusas disposições desse pseudo-acôrdo feito à revelia de professores e investigadores, que não tiveram a coragem de o rejeitar e se sujeitaram a passar sob as forcas caudinas.
A Universidade, a reforma de Bolonha e as avaliações
ente da quantidade”. Nessa mistificação assenta então a sua política mas coerentemente deveria perguntar, tal como o fez o biólogo Martin Enserink, “Who Ranks the University Rankers?”que aqui podemos traduzir por “quem avalia os avaliadores?” ou ainda por “quem o avalia a si, senhor Ministro, por estas políticas?” Os seus destinatários ou os seus mandatários? Neoliberalismo ou democracia, eis hoje a questão shakespeariana que todos devemos saber enfrentar.
Nesta sequência, vale a pena abordar com mais detalhe o reino das quantidades que parece ser o seu domínio de preferência não só no que diz respeito às licenciaturas obtidas, aos professores como também às universidades. Neste ponto, procura-se perceber a questão dos ratings que tanto poderão ser ratings sobre os professores como ratings sobre as instituições universitárias.
Para iniciar este assunto, nada melhor do que assinalar o que diz um relatório do Senado francês sobre ratings no ensino superior (Senado (França), 2004, p. 5):
É verdade que avaliar o ensino é uma tarefa complexa, porque esta actividade responde a objectivos múltiplos que não são todos directa e imediatamente observáveis. Num domínio tão dificilmente quantificável, os indicadores correm o risco de constituírem apenas um pálido reflexo da realidade ou, pior ainda, de suscitar efeitos perversos: com o facto de se centrar apenas em alguns indicadores, parciais pelo seu próprio objecto e imperfeitos na sua medida, pode correr-se o risco de empobrecer a qualidade do ensino.
publicado por Carlos Loures às 21:00
editado por Luis Moreira em 25/02/2011 às 01:52
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Quarta-feira, 23 de Fevereiro de 2011
(Continuação)
Se aos estudantes não cabe resolver as questões do sistema, mas como são parte dele, cabe-lhes pelo menos a obrigação de procurarem não serem arrastados por ele. Mas esse sistema é feito por nós, por todos nós, não o esqueçamos. É aqui que o papel dos movimentos estudantis seria de uma extrema utilidade, mas lamentavelmente até estes movimentos não escapam à voragem da “modernidade” de Bolonha e de todo o sistema e são parcial ou totalmente eliminados ou transformados em máquinas de consumir dinheiro. A possibilidade de eliminação destes das direcções das Escolas, criada sob a pressão legislativa de Mariano Gago, com a consequente perda de práticas e de responsabilidades institucional e democraticamente assumidas[1] mostra que tudo isto é também um produto do actual sistema. Basta também comparar a prática dos estudantes de hoje com as intervenções dos líderes estudantis de outrora, para percebermos como estamos perante uma vaga de obscurantismo assente numa ideologia extremamente simplista, a ideologia neoliberal, que pode levar a democracia para becos de difícil saída quando, em vez disso, deveríamos contar com o voluntarismo e a dádiva que caracteriza a juventude para caminhar no sentido de uma democracia humanamente mais rica.
Onde estão agora os estudantes equivalentes, entre tantos outros nomes, a Jorge Sampaio, a Jaime Gama, a Medeiros Ferreira, a Alberto Martins, a Mariano Gago, e quem são os líderes estudantis de hoje? Quem os conhece? Aqueles, políticos de agora e estudantes de então, eram bem conhecidos, deram um rosto, um corpo, uma ideia ao movimento associativo, ao movimento que alimentou a formação cultural e social da classe política recente. Hoje, qual o quadro de actuação do movimento associativo estudantil na linha da “modernidade” imposta pelos homens de Bolonha entre os quais, ironia do destino, está agora Mariano Gago? A situação de Mariano Gago nos dois momentos do tempo referidos faz-nos lembrar uma situação contada por Macciochi numa sua visita à China muitos anos depois da revolução cultural. Esta reencontrou muita gente que no passado tinha descrito entusiasticamente no seu livro sobre a revolução cultural; parte daquelas pessoas estava a trabalhar em museus a recuperar peças historicamente importantes que durante a revolução cultural tinham estragado. O paralelismo é imediato: aqui e agora destrói-se o que levou, em termos de cultura e de política, anos a fazer através da luta estudantil contra o fascismo, o movimento associativo estudantil politicamente activo, e que agora se está política e culturalmente a esvaziar. A história tem destas repetições, tem destas inversões. Deixemos Hegel, deixemos Marx, sobre as repetições na História…
Sobre Bolonha não estou interessado em discutir mais. De resto, Bolonha pode resumir-se à questão da quadratura do círculo: como é possível ensinar melhor em menos tempo, com menos disciplinas, com menos carga horária por disciplina, com menos anos de curso, quando para complicar ainda mais o problema já de si insolúvel, os estudantes que nos chegam à Universidade são cada vez mais e em maior número de uma incapacidade intelectual preocupante, mesmo aflitiva eu direi.
publicado por Carlos Loures às 21:00
editado por Luis Moreira às 21:37
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Terça-feira, 22 de Fevereiro de 2011
Coimbra, 20 de Fevereiro de 2011
Ex.mo Senhor Ministro José Mariano Gago
Sobre a Universidade, a reforma de Bolonha e a formação de elites na Europa
Senhor Ministro, tomo a liberdade de lhe escrever esta longa carta, que talvez até não leia porque escrita por alguém que, à luz da sua política, das suas hierarquias e do seu modelo de referência, o neoliberalismo puro e duro, deva ser ele próprio um excluído do seu sistema de ensino.
Escrevo-a, digo, enquanto professor, cidadão, pai e avô, porque não me consigo rever no quadro de valores em que assenta a modernização do Ensino Superior em Portugal concebida e assumida pelo actual executivo e por V.ª Ex. dirigida, a reforma de Bolonha e toda a arquitectura que com ela já veio e com o que ainda com ela estará para vir. Escrevo-a porque não consigo alguma vez aceitar a política de simplificação das formações de ensino superior que a Universidade é quase que obrigatoriamente levada a realizar, no quadro das estruturas por si criadas. Escrevo-a porque me recuso a encarar que a Universidade passe a ser ou uma fábrica de desempregados, como no actual sistema francês, ou pior ainda, uma fábrica de não empregáveis sequer, como começa a ser no caso português, agora ou amanhã, deixando a maioria da nossa juventude ao nível intelectual completamente indefesa, imatura e incapacitada até para se defender face à selva em que se está a transformar o mercado de trabalho em Portugal. E tudo isto sem que as autoridades competentes mostrem sinais claros de estarem dispostos a defendê-la. E não se trata aqui de falar de uma questão de gerações, é do mercado de trabalho para todos que estamos a falar. Não se trata aqui de falar de geração rasca, de geração à rasca, trata-se aqui de falar de um país que está a ficar quase todo ele completamente à rasca e não por uma questão de problema de gerações, mas sim pela política seguida, pelo modelo de política económica e social que está em vigor e que está a ser imposto. Trata-se aqui de falar de condições de acesso ou manutenção nos mercados de trabalho quando estes são o resultado deste mesmo modelo que está a ser gerido, afinal, pelos mercados financeiros, onde a união monetária europeia também não é mesmo nada alheia, é certo, e a forma como foi tratada a questão dos altos salários dos gestores públicos na Assembleia da República, num país onde a fome começa a grassar é deste modelo um muito claro exemplo. Escrevo-a porque me sinto numa Universidade em profunda, muito profunda, crise, ainda com fortes tendências a uma maior degradação da sua qualidade, dados os vendavais que já se sentem que sobre ela vão desabar, trazidos por mais um mecanismo imposto pela sua política de modernidade, os ratings, as avaliações, sem sequer se ter feito publicamente a avaliação dos resultados do que está a ser a avaliação no ensino secundário. Escrevo-a porque sinto tão intensamente esta degradação a chegar, trazida ainda aqui até pela sua nova legislação, que me interrogo sinceramente sobre o que da Universidade vai restar se assim continuar. Escrevo-a porque, face a tudo isto, sinto não ter no meu caso pessoal outra solução que não seja a de me ir embora, deixando aqui publicamente e bem claro, mais uma vez, as razões do meu profundo descontentamento.
A Universidade e a reforma de Bolonha
68 anos feitos, hoje. Tempo de balanços, de contas feitas e desfeitas, tempo de razões assumidas e de razões perdidas, tempo de me confrontar não com o meu passado[1] mas sim com o meu futuro, tempo como professor, de olhar não para as cadeiras que não dei, mas sim para as cadeiras que outros irão leccionar, tempo de me questionar não sobre os estudantes que reprovei mas sim sobre aqueles que injustamente passei e a estes, com simplicidade, sinto que devo pedir desculpa. E a ser assim, é tempo de me confrontar com o meu ministro da tutela, que com o seu trabalho está ardilosamente a destruir o futuro de gerações que se nos seguem, o nosso futuro afinal, e estas se o souberem e puderem serão elas que nos irão talvez proteger ou talvez contas pedir.
Quando jovem operário, um pouco perdido na amargura das horas trabalhadas a três escudos por hora, o custo de dois cafés a preço normal, onde cada livro lido, cada livro apreendido, muitas vezes à custa de um sono perdido, de um sono não havido, era mais um passo para quem procurava as referências do que era a vida, era mais um olhar de quem se queria situar num mundo que não compreendia, nessa altura um livro profundamente me marcou. Teria entre 17 e 19 anos, senhor Ministro, e o livro era A Condição Humana, um livro onde Malraux questionava o que é um Homem. Desse tempo, fiquei com a ideia de que o Homem era a intersecção do que foi e aprendeu com o passado dele próprio com o que deseja como seu próprio futuro, como seu próprio devir — fiquei com a ideia a partir de Kyo, ou do seu pai, duas das personagens relevantes desta obra literária, não sei qual delas, nem para aqui isso é agora relevante. O que é relevante é que, em cada momento, o Homem vale também pelo que quer como futuro e é esse futuro que com V.ª Ex.ª venho questionar.
Há já muito tempo que nos cruzámos nos corredores do Instituto Superior Técnico, ambos a aspirarmos a um outro tipo de sociedade, se a minha memória visual não me começa já a falhar, ela que foi feita passo a passo, sofrimento a sofrimento, para que deles não me esquecesse e com eles aprendesse, nos cruzámos várias vezes e eventualmente também em muitas camionetas, que todos nós estudantes de um devir solidário, a acontecer poucos anos depois, em Abril de 1974, enchemos numa marcha de solidariedade para com os sofridos do fascismo e das águas das cheias que tudo levaram pelos finais dos anos 60, na zona de Vila Franca de Xira. Por aí nos cruzámos, seguramente. Os filhos da burguesia do fascismo de então deslocavam-se em camionetas contratadas pelas associações de estudantes para irem ajudar os operários com rendimentos de pobreza, verdadeiras vítimas do regime de Salazar, atingidos pelas cheias, e com eles ia eu também. Aí me apercebi de um certo sentido da História que um pouco mais tarde haveria de redescobrir a um outro nível, muito mais abstracto, nos contactos com Hegel e sobretudo com as explicações dadas por Jean Hyppolite ou por Kojève, o sentido da História, o sentido também da dialéctica do senhor e do escravo, através de páginas e páginas difíceis de entender que me levariam a seguir até Marx e muito mais tarde, já estudante em Economia, a Piero Sraffa, a Joan Robinson, a Kaldor, a Maurice Dobb e a Mário Nuti, que pessoalmente conheci recentemente em Coimbra. Na pobreza extrema daquelas gentes, pelo singelo das casas que lavámos, das ruas que limpámos, no sentir das pessoas que apoiámos, na simplicidade das pessoas com quem falámos, na força com que assumiam os desaires e o destino que os outros lhes impunham, apercebemo-nos, senhor Ministro, e se lá estava terá seguramente sentido o mesmo, que por ali também passava a força de um futuro a fazer. Bastava só saber ler e olhar para os milhares de papéis, de jornais do Avante, de documentos outros, dir-se-ia na época, subversivos, que nos apontavam uma certa ideia de futuro que mais tarde a História também viria a demonstrar que destino também não era, mas que estava ali, como uma parte da força imensa que sabia dizer não à barbárie do fascismo, organizada ou sustentada pelos pais de muitos daqueles que ali estavam a prestar ajuda.
publicado por Carlos Loures às 21:00
editado por Luis Moreira às 22:59
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Sábado, 19 de Fevereiro de 2011
Aos visitantes de Estrolabio
Os nossos agradecimento a Mário Nuti pelo envio de mais este texto
Um texto de Mário Nuti é sempre um texto a ler com prazer. Este fala-nos da pressão que está a ser exercida pela Alemanha para que cada um dos países membros da UEM inscreva na sua Constituição um limite ao défice orçamental e perto de zero mesmo, posição esta secundada pela França, tão ansiosamente esta anda à procura de não perder o bilhete de primeira classe que a Alemanha lhe oferece para entrar nos mercados de capitais. Cinismo puro, portanto.
Nuti nas poucas páginas descreve-nos exactamente esse cinismo, para não dizer mesmo, que nos fala sobre o jogo da mentira assumido pela Comissão Europeia e pelos seus tecnocratas de serviço, quando esta pretende que o relançamento da economia se fará com a austeridade imposta aos Estados soberanos, por força do Tratado e por força ainda maior das forças que pouco a pouco vou minando a unidade europeia: os mercados finanaceiros, a quem agora se quer que exclusivamente se obedeça.
A analogia com Alfieri é, desse ponto de vista, bem clara. A Comissão Europeia está claramente a amarrar a Europa a está a amarrar-se a si-mesma e a sua afirmação de vontade de saír da crise cai no paradoxo da afirmação de Alfieri: este, se tem tanta vontade como a frase o expressa, não precisa de se amarrar a uma cadeira pata ter ainda mais vontade. A Comissão Europeia, o seu modelo de referência, os seus horizontes, serão afinal os daqueles que se amarram para ter vontade, não a tendo portanto e não é seguramente assim que a ganham. Mas deixem os outros ganhá-la, é a proposta de Mário Nuti.
Júlio Marques Mota, Coiombra, 19 de Fevereiro de 2011.
Em 2009, a Constituição alemã foi alterada para introduzir a obrigação de se praticar uma política orçamental equilibrada ou Schuldenbremse [o travão da dívida]. A partir de 2016 o governo federal alemão será obrigado a um limite do défice na ordem de 0,35% do PIB, a partir de 2020 os Länder não serão autorizados a ter qualquer défice. Uma excepção pode ser feita para situações de emergência, tais como uma catástrofe natural ou uma crise económica. Todos os estados dos EUA, excepto Vermont têm uma disposição constitucional semelhante (Oregon está constitucionalmente obrigado a devolver aos contribuintes qualquer excedente acima de 2%), embora sejamos claros isto não os impede de incorrer em altos valores na dívida pública. Em qualquer caso, nos Estados federados nos Estados Unidos ou nos Lander na Alemanha, a obrigação de orçamento equilibrado não interfere ou com um qualquer estímulo macroeconómico do governo federal ou com as transferências fiscais, de modo que a restrição imposta realmente não é tão relevante como pode parecer. Existe também uma obrigação de equilíbrio orçamental na Constituição suíça. Este tipo de disposição foi por diversas vezes recomendado também para o governo federal dos EUA, mas nunca se conseguiu o apoio da maioria de dois terços / estados em ambas as câmaras, Senado e Câmara dos Representantes, para ser aprovado.
No ano passado, o presidente Sarkozy propôs um regresso ao equilíbrio orçamental em França. Na véspera da reunião do Eurogrupo de 14 de Fevereiro de 2011, o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, líder dos conservadores europeus, propôs a introdução de um tecto, de um valor limite a ser inscrito na Constituição, tipo o que está consagrado na Constituição Alemã, para os outros países da UE. Nas próximas semanas, o ministro francês François Fillon deverá apresentar uma emenda constitucional para forçar a França a especificar uma precisa trajectória temporal de progressiva redução do défice de € 150 mil milhões (2010) até atingir o valor zero, e a ser aprovado pelo Parlamento antes do Verão, trajectória que deverá ser controlada pelo Conselho Constitucional.
Deixemos de lado questões como a viabilidade política de introduzir essa alteração na constituição de um país, e da credibilidade de um compromisso do governo para a realizar. É claro que os actuais níveis de dívida pública são excessivos e insustentáveis já para a maioria dos Estados-Membros da UE, é claro que os défices terão de ser reduzidos a fim de se estabilizarem e, depois, de se reduzirem. A verdadeira questão está verdadeiramente na eficácia das políticas governamentais destinadas a reduzir drasticamente as despesas e inversamente a aumentarem os impostos. Tais políticas reduziriam o défice coeteris paribus, mas ao mesmo tempo, são obrigados a reduzir a procura e, portanto, a reduzirem o PIB assim como as receitas fiscais e numa dimensão ainda maior: o seu resultado final é indeterminado.
Victoria Chick e Ann Pettifor (Financial Times, 04 de Outubro de 2010), utilizando dados do Reino Unido para o período 1918-2009, mostram que uma redução persistente da despesa pública está correlacionada com um aumento da relação dívida/PIB enquanto que a expansão da mesma despesa pública está relacionada com uma diminuição da relação dívida / PIB. Segundo os autores explicam, "este resultado surge porque o governo não está em posição de determinar o seu próprio défice ou excedente. A dimensão dos resultados orçamentais depende dos planos de todo o sistema económico e das suas reacções às acções planeadas pelo governo. "
"Desde que o défice não é um resultado que o governo possa controlar, estabelecer a redução do défice é estar a olhar para o problema pelo lado errado de um telescópio: o caminho para reduzir o défice em tempos de desemprego e de fraca retoma económica é aumentar as despesas públicas ( de preferência conscientemente) para promover o emprego e para conseguir melhorias crescentes nas nossas infra-estruturas, incluindo sobre o nosso "capital humano".
"Keynes olhou através pelo telescópio e pelo lado correcto:" Olhe primeiro para o desemprego e o orçamento vai cuidar bem de si mesmo "(Chick e Pettifor, 2010)..
O que é ainda pior, uma política de restrição comum e simultânea para todos os países em termos de cortes nas despesas públicas e no aumento de impostos irá, obviamente, ter um muito maior impacto em cada um dos países do que a sua adopção por um só e único país - razão pela qual o impacto recessivo da redução do défice é frequentemente subestimado e negligenciado.
Em qualquer caso, enquanto um orçamento equilibrado pode ser uma posição razoável (possivelmente condicional), num esforço para estabilizar a dívida pública, certamente que isso não pode ser realizado num único e só ano: como é natural, em 2003, cerca de 90% dos membros da American Economic Association concordaram com a afirmação: "Se o orçamento federal deve ser equilibrado, isso deve ser feito ao longo do ciclo de da actividade económica , ao invés de o ser anualmente"
O caso de um orçamento equilibrado é muitas vezes interpretado como uma forma de evitar um encargo financeiro para as gerações futuras: assim, o estímulo fiscal é considerado como " pouco mais que um exercício de redistribuição da riqueza dos nossos netos, para os grupos de hoje com interesses especiais" (Darrell Issa, "Obama's Keynesian failures must never be repeated", Financial Times, 08 de Fevereiro de 2011)
John Eatwell comentou que se "o endividamento público fosse realmente um fardo, então o rendimento real per capita dos futuros cidadãos seriam reduzido."
"Mas onde há um empréstimo, e no momento em que é feito, há um crédito correspondente, de modo que os pagamentos de juros e amortizações de capital que podem resultar de pacotes de estímulos de relançamento económico vão dos contribuintes para os seus credores. - Não há portanto perda de rendimento real, há simplesmente um pagamento de transferência" .
"A afirmação deve, portanto, assentar ou no argumento de que as despesas públicas " "eliminam " o investimento privado, o que não é muito credível dada a diferença entre o PIB potencial e o PIB efectivo e dada igualmente a política das taxas de juro ou então que existe uma relação comportamental entre os empréstimos actuais e / ou os níveis futuros de investimento e de crescimento."
"É possível construir modelos e seleccionar exemplos que vão no sentido de uma via ou da outra. O que nunca é porém possível é falar de modo inequívoco sobre o "fardo" do futuro. (o fardo sobre os nossos netos" é um paleio ambíguo, Financial Times Letters, 10 de Fevereiro)."
O efeito de evicção "crowding out" é uma ideia de facto que está por detrás da defesa dos orçamentos equilibrados: os multiplicadores da despesa pública são consideradas pequenos, menos do que um ou mesmo "próximo de zero" de acordo com Barro. Adicionalmente considera-se que os indivíduos seguem e aplicam o princípio da equivalência ricardiana: quando o governo reduz as despesas hoje eles esperam então que venham a baixar os impostos no futuro e, portanto, e então as pessoas voltam a trabalhar mais para ganhar mais e para gastar mais . Assim, a consolidação orçamental deve ser considerada uma política expansionista, diz-nos, por exemplo, o recente relatório "As finanças públicas na UEM", ( Public Finance in EMU) ou Rother, Schuknecht e Stark, " The benefits of fiscal consolidation in uncharted waters" ( As vantagens da consolidação orçamental em águas desconhecidas, BCE, (2010).
No entanto, trabalhos empíricos recentes como os de Christiano, Eichenbaum e Rebelo, “When is the government spending multiplier large” (Quando é que o multiplicador das despesas públicas é grande), 2009, ou de Corsetti, Meier e Mueller “ What determines government spending multiplier?”, 2010 "O que é que determina o multiplicador dos gastos do governo?", mostraram que os multiplicadores das despesas públicas "tendem a ser muito maiores, entre um e dois, quando a política monetária expansionista tem como seu limite inferior sobre as taxas de juro o valor zero, (the zero lower bound on the nominal interest rate), quando as taxas de câmbio são fixas, quando um grande número de famílias estão com restrições de crédito. Isto é mais ou menos a situação actual: um certo número de países estão a enfrentar a desalavancagem por parte das famílias, as taxas de juro do bancos centrais estão baixas, a evitar uma adaptação pela parte do banco central a uma política de contracção orçamental, e os países da zona euro têm, por definição, as taxas de câmbio fixas "(Raphael Cottin, Public Finances in 2011: a happy austerity , Eurointelligence.com, 2011/01/28).
Cottin sublinha que os serviços da Comissão Europeia reconhecem implicitamente o seguinte: o mais recente relatório da Comissão "As finanças públicas na UEM" menciona (Parte III, secção 6) que a expansão fiscal é susceptível de ser expansionista nas actuais condições: "mas o argumento simétrico, que as política de consolidação fiscal são susceptíveis de ser restritivas, é cuidadosamente evitado."
O escritor italiano Vittorio Alfieri (1749-1803) é famoso, entre outras coisas, por se ter fortemente amarrado a uma cadeira com uma corda, a fim de se disciplinar para o trabalho duro e para estudar sem interrupções. Isto é tradicionalmente considerado como uma prova da sua forte força de vontade, como o alegou numa sua célebre frase "Volli, Volli Semper, fortissimamente Volli"[1]. Com certeza, se Alfieri realmente fosse tão forte como o teria desejado, então não teria tido necessidade de ser tão fortemente amarrado à sua cadeira. Sarkozy e Schauble podem-se amarrar a si mesmos e ao seu próprio orçamento com cordas e com vários nós, mas deixem os outros Estados membros sozinhos prosseguirem uma política orçamental mais racional e esclarecida do que a deles.
[1] A frase pode ter a seguinte leitura : um estímulo a uma ainda maior força de vontade que já é boa para seguir na vida e ultrapassar as dificuldades o que mesmo assim nem sempre se consegue ,
Segunda-feira, 17 de Janeiro de 2011
Os nossos agradecimentos à colega Manuela Silva, minha antiga professora de tempos idos e nessa qualidade presente em memórias que a crise não levou e que o tempo veio seriamente a reconhecer pelo seu trabalho inovador de então, pela calorosa recepção às duas versões deste texto que previamente lhe foram entregues, expressa no seu blog: http://http://areiadosdias.blogspot.com/
E aproveito para saudar a iniciativa de que terá sido um dos promotores, o manifesto Para uma nova economia, Uma tomada de posição pública, presente no mesmo blog, um texto que pessoalmente consideramos de leitura obrigatória.
Informamos os visitantes de Estrolabio que o texto:
Fiat Lux, a propósito de CDS: apenas uma nota pessoal
foi escrito com a finalidade de servir de apoio a um texto de Henri Sterdyniak a apresentar ainda esta semana, sobre a crise na Europa.
Júlio Marques Mota
O que é um CDS, um Credit Default Swap?
Um CDS, Credit Default Swap, é um contrato bilateral, um swap, inscrito fora de balanço, entre duas contrapartes: uma, o vendedor (dito também writer ou seller), oferece ou vende à outra parte, o comprador (buyer), a protecção contra o risco de um acontecimento de crédito sobre títulos de crédito de uma terceira parte, a entidade de referência (reference name ou devedor de referência), contra o pagamento de prémio de risco, a que se chama taxa de CDS ou ainda spread. Desta forma o CDS é, portanto, um derivado de crédito pois é um produto financeiro que tem como subjacente um crédito ou um título representativo de um crédito e tem como finalidade a transferência do risco relativo a esse mesmo crédito, o subjacente, do comprador do CDS para o vendedor do CDS, sem a transferência dos activos considerados e sobre os quais se coloca o risco de crédito. O risco de crédito é assim transferido através do CDS da entidade de referência, da entidade de quem se receia um acontecimento de crédito, para o vendedor da segurança contra o risco, o seller, em quem se confia. Este próprio, o fornecedor da segurança, pode entrar em situação de falência e veja-se o caso da AIG. Neste,, o segurado deixou assim de ficar segurado.
A entidade de referência, a terceira parte, a que se refere a transacção pode ser uma empresa, um banco ou um Estado. No caso de ser um Estado, os CDS começaram inicialmente por ser utilizados na cobertura de risco sobre as emissões de títulos da dívida soberana quando emitidos em moeda estrangeira - como exemplo, os títulos da Grécia emitidos em ienes ou dólares e não em Euros, o que deu azo ao famoso swap com a Goldman Sachs -para assim proteger, portanto, o comprador dos títulos do risco da variação cambial. A protecção era portanto essencialmente feita sobre os títulos da dívida pública emitidos em moeda estrangeira mais do que sobre os títulos emitidos em moeda nacional.
As duas contrapartes do CDS, vendedor e comprador, são geralmente bancos, companhias de seguros, hedge funds, os chamados fundos especulativos de alto risco, mas podem sê-lo igualmente grandes empresas ou mesmo Estados.
Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2011


Refazer a realidade, senti-la na sua falta de precisões, de contornos, de delimitações, problemas que não são dela mas da nossa visão, ou da nossa incapacidade de ver o mundo, parece-me ser a perspectiva deste quadro que nos reenvia, por isso mesmo para a nossa capacidade de imaginação. Olhar para este quadro, hoje, é como se esteja a ver a realidade surda e violenta, violência, não palpável, não delimitável, violência na nossa vida mais íntima à violência nas fábricas, no mundo onde se constrói o mundo! Salva-nos a beleza de um corpo que não sabe se quer expor, salva-nos a beleza de um outro corpo que se deseja, que se mostra nos seus contornos, mas só contornos, e parece que não se tem, não se pode ter ou será que nem sequer se quer dar?. Mesmo aqui, o não à vontade parece uma constante, de quem se quer dar, de quem quer dar, mas também já não se sabe bem a quem! Os amarelos, confirma-nos esta mesma ideia, os amarelos, a tensão, diremos da nossa incomodidade , e os cinzentos das fábricas, do mundo, tapam-nos um pouco a perspectiva, a dizer que os temos de limpar, de eliminar, se o para além da tristeza daqui queremos na verdade alcançar.. Tudo isto a lembrar outros pintores, como o não pintor, Michelangelo Antonioni, do Deserto Vermelho, apenas que aqui, diferentemente de lá, a vida não parece um plano inclinado ao fundo do qual não está ninguém. Cito de cor Monica Viti. E um último olhar para a ternura da relação naquele casal, símbolo dos tempos que correm em que o que resta, o que recupera, o que dá vida é ainda e apenas o amor.. , Pinta-se a vida, dá-se cor à alma, dá cor à esperança. E a vida é assim.
publicado por João Machado às 08:00
editado por Luis Moreira em 11/01/2011 às 02:07
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Domingo, 2 de Janeiro de 2011
Júlio Marques Mota
Em tempos idos pensava que o neoliberalismo não avançava tão rapidamente na sociedade portuguesa como o está a fazer actualmente no ensino, mesmo quando o sistema dá sinais evidentes de estar quase defunto. Feita a reforma do ensino superior, dita reforma de Bolonha, pensava eu, ingenuamente, que algum pudor haveria em avançar com mais reformas antes de estabilizar esta e portanto que se passaria primeiro por uma análise em profundidade desta reforma, na óptica de quem a lançou no terreno, neste caso na óptica de Mariano Gago e de quem o acompanha, de quem o defende, de quem o serve ou d equem é obrigado a servi-lo. Mas não, mais uma vez me enganei. O ritmo de reformas avança, e agora é a avaliação dos docentes que avança, é o sentido da classificação, da quantificação da qualidade que se pretende, pretende-se assim o impossível mas como não é crível que intelectuais e técnicos assumidos andem a trabalhar para querer o que toda a gente sabe que é impossível, então o objectivo é outro, para mim é certo de que o que se pretende é garantir, agora ou depois, um certo ritmo da desclassificação, um certo ritmo de redução de custos. De resto, agora nem sequer se fala em promoções. Então avalia-se oara quê? Alguém é capaz de me dizer? Penso ter razão e, se assim é, ninguém mente pois nos tempos de crise que se vivem em que todos os cofres estão vazios, promover, significa agora despromover, e é disso que se anda à procura. Evita-se a mentira de o dizer.Num texto sobre Bolonha afirmámos e passo a citar:
Por se seguir o caminho inverso daquele que a situação exige, inverteu-se a lógica da democracia quanto à função do Estado. Uns obscuros departamentos de trading de alguns poderosos bancos de investimento, uns poderosos e quase que anónimos hedge funds, uns obscuros especuladores, o mercado afinal, determinam num obscuro mercado os valores dos CDS, em que ninguém nos explica como funcionam, como se determinam as suas taxas; questão extraordinariamente importante quando são estas taxas que vêm a determinar o valor das taxas de rentabilidade implícita dos títulos da dívida pública e o peso do serviço da dívida soberana, quando depois é este que determina o volume de impostos a receber e o volume de despesas a cortar, os grandes investimentos públicos para o futuro a desaparecer. Tudo isto em nome das gerações futuras. E assim se determina o sentido das políticas nacionais e se anula a democracia. Quer-se agora sacrificar os próprios Estados, a própria democracia, no altar da soberania absoluta dos mercados financeiros, cada vez mais opacos, comme il faut. O resto é a plêiade de discursos dos nossos políticos e dos nossos intelectuais a glorificar o caminho imposto pelos mercados financeiros, prisioneiros que são, explícita ou implicitamente, do sentido da eficiência que a estes continua ainda a ser atribuída. E tanto é assim que até os traders, ou gerentes desses obscuros agentes, nesses obscuros mercados, com bónus na ordem das muitas dezenas de milhões de dólares por ano, são também eles classificados, avaliados, por empresas também elas internacionais, globais, e também elas sujeitas às agências de notação . Com tanta avaliação, do primeiro ao último elo da cadeia, quem se atreve a pôr em dúvida a eficiência dos mercados? E aqui a analogia com Bolonha é imediata: também a Universidade vai ser submetida à mesma lógica de eficiência, à mesma lógica dos rating, das avaliações, mas com uma grande diferença. Enquanto os rating para os traders marcam o ritmo dos bónus futuros, o ritmo dos milhões de dólares a receber, na Universidade, porque não há dinheiro, não há sequer tostões, Os rating para os professores têm apenas uma função ideológica: cumprir o modelo!Estamos pois a falar de ratings,, e é de ratinhos que se fala com a avaliação dos docentes. Num outro texto sobre o mesmo tema afirmei sobre a modernização do Ensino Superior de que o primeiro Ministro e Mariano Gago se orgulham tanto : Dizem-nos ter “modernizado” o sistema de ensino superiorFlexibilizaram-se os contratos de trabalho, precarizou-se a segurança no trabalho, colocou-se, por essa via, os professores a considerarem a sua carreira como uma espécie de campeonato de futebol onde o importante é marcar pontos contra os outros e impedir que no-los marquem a cada um de nós, onde estão sujeitos a avaliação contínua como se as sucessivas provas públicas deixassem de ter qualquer significado, onde se passa a fazer não o que se deve verdadeiramente fazer mas sim aquilo que o avaliador é capaz de exigir e compreender, de quantificar e, normalmente, trata-se de coisas diferentes. Possivelmente, a partir de agora, cada professor poderá estar mais interessado em compor a montra onde se irão colocar os dados que vão ser quantificados, avaliados, medidos, do que propriamente em preocupar-se com a função para a qual é pago: ensinar. E esta última função passa-se sobretudo na sala de aulas, no que está aquém dela, no que está para além dela mas onde esta é sempre o centro. Aqui, não há métrica que valha mas a lógica neoliberal exige o impossível que é que seja quantificável o que incomensurável e é assim, pela simples razão de que o que lhe interessa não é a qualidade mas a quantidade. Primado absoluto da quantidade sobre a qualidade, primado absoluto da precariedade a que os docentes vão estar submetidos sobre a estabilidade que a estes deveria ser oferecida, primado absoluto, portanto, do número, neste caso das vias que levam à redução dos custos. O que passa a ser preciso é considerar a carreira e a vida como uma escada de acesso a um trapézio muito alto e de onde não se pode cair ou não se deve, já que a queda pode ser mortal. Por essa via, é a profissão que sai minimizada e os estudantes, esses, passam para segundo ou terceiro plano, desejando-se apenas que não nos atrapalhem na subida das escadas da vida de cada um de nós, professores. Adicionalmente, reduz-se a dimensão dos cursos, multiplica-se o número destes, vejam-se só os números de cursos em engenharia espalhados por esse país, multiplicam-se os mestrados e inventa-se a transversalidade para os diversos mestrados, em que um licenciado em direito ou em agronomia ou noutro curso qualquer, onde praticamente não teve economia, pode tirar um mestrado na área de gestão ou de economia e num tempo bem curto.
Em suma, “modernizar” o ensino superior pode vir a poder-se considerar como um custoso processo de autonomização e de conservação da ignorância dos estudantes que, em vez de verem a ignorância por si vencida, esta é a função da Universidade, passam é a ser possuidores de uma ignorância mantida ou acrescida, derivada da erosão do tempo em que não se estuda ou em que se passa por cima de quase tudo o que é estudo, com a velocidade de quem tem medo de perder um outro comboio, o de ir procurar e conseguir emprego antes dos outros, os seus colegas concorrentes. Mas, tudo isto faz parte da “modernidade” de que nos falam até à exaustão os nossos políticos .O modelo subjacente à política do Ensino Superior é o modelo neoliberal na sua versão mais dura, naquilo que leva a que cada um de nós se molde na nossa interioridade aos parâmetros do sistema, de um contra todos, o mesmo se passando quanto à nossa exterioridade. Se queremos sobreviver, terá que ser assim, o trabalho que se faz deve ser feito fundamentalmente para a quantificação. Neste modelo a quantificação é primordial, pois não tem valor tudo o que não se possa medir, aferir, comparar, quantificar: Neste modelo é fundamental o rating, como o é em qualquer Bolsa e, descobrimo-lo agora de forma bem terrível, como o é também assim com o nosso pão de cada dia, porque as nossas vidas, dependem das políticas económicas seguidas e estas dependem, também elas do rating da dívida pública. Condenados, cercados pela lógica do rating, eis pois a condenação do cidadão moderno. Procure-se, por todas as esquinas, por todas as praças de Lisboa, por esse mundo quem nos assegure um pouco de paz, quem nos assegure um rating de qualidade e triplo A que seja!.Boa sorte.Vou-vos reproduzir uma fábula, passada num país qualquer, a que damos o nome de Numerolândia, o país do número, e claramente esse país poderia estar actualmente a ser governado por um qualquer governo da Eurolândia. Qualquer deles ficaría aí muito bem.A fábula, portanto.
A verdade da fábula
Um dia na região onde se desenrola esta fábula, a Agência dos Avaliadores informa o Centro de Investigação Regional de que os seus Peritos viriam da capital para avaliar a investigação, as equipas, e o Instituto na totalidade dos seus serviços, com excepção dos investigadores.Neste país entre os países, os Estatísticos pediram um dia ao governo autorização para incluir informações de ordem étnica nos seus inquéritos. O debate abriu-se. Houve gente “por”, ou gente “contra”, e a controvérsia transcendia, e de longe, a clivagem habitual entre partidos do governo e da oposição.As pessoas que defendiam a inclusão deste tipo de dados , os do “por” explicavam que dado que se podia, a partir de agora, aceder à informação, não tinha sentido privarem-se dela: é a utilização de um saber que se revela boa ou má, não o saber em si- mesmo. E de momento, só se faziam coisas boas, porque somos todos os democratas - não é assim ? - e somos todos bem conscientes das nossas responsabilidades.Os “Contra” sublinhavam que o número étnico, no caso, não traria nenhuma informação suplementar sobre as pessoas, mas abriria a caixa Pandora que ninguém seria capaz de controlar depois. Quem sabem entre que mãos cairiam estes inquéritos e para que fins poderão eles servir, então? Na sua grande sabedoria, o governo transigiu: poder-se-ia incluir dados étnicos nos inquéritos, mas apenas durante um tempo limitado. Dois anos. E nenhuma publicidade é feita em redor dos resultados. Então, este país esqueceu.
Mas, tecnicamente, descobriram-se desvios importantes entre as administrações, entre as administrações e o sector privado, e no interior do sector privado. Inventou-se então um índice que permitisse medir a relação de negros, árabes e judeus, num meio socioprofissional dado , número que se baptizou imediatamente como “o índice NAJ”, porque se gosta de siglas, nesse país. Não se tratava, certamente, de um número bruto de que se deduz simplesmente, no momento do inquérito, o número de Negros, Árabes ou Judeus porque então teria sido impossível proceder a comparações portadoras de significado.
Não, tomava-se o maior número de Negros, Árabes e Judaicos citados pelos seus colegas durante os cinco anos precedentes, ponderado por uma combinação linear de Negros, Árabes e Judeus efectivamente presentes, depois, dividido por uma per-equação incluindo média nacional, regional, e tendo em conta a classe profissional considerada. É munindo-se de todas as precauções que se pode explicar a precisão, e mesmo, ousamos , a equidade deste índice. O NAJ era diabolicamente interessante.
Alguns meses depois, a Agência dos Avaliadores preveniu o Instituto de Investigação
Regional - porque a região onde se passa esta fábula orgulhava-se de possuir um Instituto de Investigação - que os seus peritos viriam da capital para aplicar as suas funções e avaliar, em boa e devida forma, a investigação, as equipas, o Instituto na sua totalidade mas não os próprios investigadores, porque tal não era o seu mandato. Agitação no Instituto!Publicou bastante?É necessário preparar-se para o melhor como para pior, é necessário reservar o restaurante, mandar limpar as instalações sanitárias, preparar as exposições bem como o nosso balanço dos quatro anos transactos. Publicou bastante? Bastantes contratos com o privado? Bastantes patentes? Como foi o enquadramento dos estagiários? Quanto a responsabilidades internacionais? Ninguém não se interrogou: fez descobertas?
A pergunta pareceu absurda, fora de questão. Mas uma voz elevou-se na sala: “não seria necessário que estudávamos nós o nosso índice NAJ? Evidentemente, não estamos nada de acordo com este índice. Revela uma sociedade em cheia deliquescência, uma sociedade em que só vale o que é contabilizável. Mas, por outro lado, é necessário ter em conta que os nossos avaliadores não se privarão de o calcular e, se não está está conforme, atacar-nos-ão desse ponto de vista. O nosso Instituto passará então do nível A para o nível B e nós perderemos os nossos créditos. Acabam-se os contratos de trabalho de duração determinada para empregar os nossos técnicos, os nossos engenheiros. Acabam-se os postos de investigadores e de professores.Preparar uma argumentação idóneaEnquanto se formos nós a calculá-lo, nós saberemos antecipadamente o que é que temos que enfrentar e podemos assim preparar uma argumentação idónea. É certo, o nosso índice NAJ é mais elevado -ou mais baixo , isto será assim o resultado do estudo - que a média internacional. Mas é necessário ter em conta que se trata de uma herança histórica. Na nossa disciplina , os negros eram naturalmente os primeiros, enquanto que os judeus e os árabes só de longe seguem a média indicial. É por esta razão, dada a nossa preocupação total com a excelência preocupámo-nos em empregar mais negros, ou menos árabes e menos judeus, adaptar-se-á a argumentação, guiados, voltemos a sublinhá-lo por outras palavras, em melhor convencer os nossos respeitados avaliadores e provar também o nosso entusiasmo, unicamente, pela ambição de sermos os melhores num contexto internacional altamente competitivo e de elevar bem alto a bandeira do nosso país”.Os investigadores estavam contentes. Como eles se saíram, uma vez mais brilhantemente, da armadilha estendida pelo Governo! Com uma tal inteligência, eles não arriscaram verdadeiramente nada. Foram os investigadores do outro Centro que tiveram problemas para se desenrascarem, mas não estes. Estes simplesmente iam ganhar velocidade e ultrapassar os Avaliadores que - surpresos e contentes, saciados igualmente porque se lhe tinha reservado um muito bom restaurante - mantiveram a classificação ao nível A. Tinham escapado de boa . As comparações com o sistema são totais. Produz-se um produto NAJ, sem sentido, e é-se avaliado com A, produz-se um produto tóxico qualquer, sem sentido, igualmente, precisa-se de um rating, obtém-se este rating triplo A, pela avaliação externa, a saagências de notação, lança-se na bolsa, e tudo está bem. Viva Numerolândia, viva o rating, vivam os mercados financeiros. Esta é a lógica do neoliberalismo.
Sábado, 1 de Janeiro de 2011
Robert Reich(Enviado por Júlio Marques Mota)Um texto importante - Robert Reich, ex-ministro do Trabalho na Administração Clinton escreve sobre a América. A ler com atenção e com atenção descobre-se que escreve também sobre o que está para além da América.E sobre a América cada vez mais dividida entre a América dos ricos e a América dos pobres, deixa-nos uma sugestão, uma sugestão a pensar numa regime democrático. Diz-nos Reich: «Haverá, certamente, um momento em que a diferença entre as duas economias será tão grande e tão evidente que ninguém mais a poderá ignorar. Progressistas, gentes esclarecidas do Tea Party, Independentes, organizações de trabalhadores, minorias e os jovens formarão um novo movimento progressista com a missão de voltar a unir a América.» E é tudo. Parece pouco mas é muito. Júlio Mota
O que é que se vai passar na economia americana em 2011? Se nos estamos a referir aos benefícios das grandes empresas e a Wall Street, o próximo ano será provavelmente um bom ano. Mas se falamos da média dos trabalhadores americanos, estamos muito longe de pensar que será um bom ano .
As duas economias da América - a da Grande Finança e a da economia da família média de trabalhadores - vão continuar a divergir. Os lucros das empresas vão continuar a aumentar, como o dos mercados bolsistas. Mas os salários típicos não irão em nenhum lado aumentar , o desemprego continuará a ser elevado, as longas filas dos desempregados vai continuar a aumentar, a retoma do alojamento permanecerá no ponto morto e a confiança dos consumidores continuará em baixa.A separação entre os lucros das empresas e o emprego deverá continuar até porque as grandes empresas americanas dependem cada vez menos das vendas que efectuam nos Estados Unidos e dos trabalhadores dos Estados Unidos. Os seus enormes lucros vêm de duas fontes: (1) do crescimento das vendas na China, na Índia e noutros países de crescimento rápido, e (2) da redução da massa salarial nos Estados Unidos.
Numa retoma clássica , o aumento dos lucros conduz a uma maior contratação. E é assim porque numa retoma clássica, os consumidores americanos retornam aos centros comerciais - e as suas compras justificam mais contratação. Não é assim, desta vez. Todo o discurso mediático sobre as vendas de Natal nas últimas semanas mascaram o facto de que os consumidores americanos procuravam os produtos a preços de saldo . E a baixa dos preços reduziu consideravelmente as margens dos vendedores. Resumidamente, os lucros não têm como origem os consumidores americanos - e os lucros também não virão dos consumidores americanos em 2011.
A maior parte dos Americanos não tem dinheiro. Estão ainda profundamente endividados, não podem contrair empréstimos com hipotecas sobre as suas casas, e devem começar a poupar para a reforma.
O Índice da indústria Dow- Jones tem estado a aumentar devido às vendas para o estrangeiro. A General Motors está a fazer mais automóveis na China do que nos Estados Unidos, e os dois terços do total das suas vendas são para o estrangeiro . Quando esta realidade se tornou pública no mês passado fizeram-se rasgados elogios ao facto de que perto da metade dos seus automóveis serão feitos à volta do mundo e em zonas onde a remuneração do trabalho é inferior à 15 $ por hora.
Walmart não faz bem particularmente à América, mas Wal-Mart Internacional está em franco desenvolvimento. E Walmart contrata como loucos mas fora dos Estados Unidos.
General Electric está a reduzir a sua folha de salários nos Estados Unidos, mas prevê investir 500 milhões de dólares no Brasil e pretende contratar 1.000 Brasileiros, e investir 2 mil milhões de dólares na China.
A América das grandes empresas ( a Corporate América) encontra-se face a uma retoma em forma de V. Isto representa boas notícias para os investidores e para todos aqueles cujas poupanças estão aplicadas principalmente em acções e obrigações. Isto também representa boas notícias para os altos quadros e para os traders de Wall Street, cujas remunerações estão ligadas às cotações das acções. Todos esperam fazer de 2011 a sua bandeira.
Mas a maior parte dos trabalhadores americanos é apanhada na armadilha de uma retoma na forma de L. Que más notícias para a Main Street, para a gente da rua, para a população que vive de modestos rendimentos e para as pequenas empresas em 2011. É também mau presságio relativamente aos preços das casas e para o volume de vendas, e para todos aqueles em que tudo o que têm está principalmente nos seus lares.
Os preços das casas nas principais zonas metropolitanas caíram durante o mês passado, a terceira baixa consecutiva mensal. Eu penso que os preços das casas continuam a cair no próximo ano. Estamos num mercado do alojamento que assume a forma de W , em grande parte porque o desemprego continua a ser tão mau que milhões de americanos não podem pagar a sua hipoteca .
Nada disto é de bom augúrio para o emprego dos Estados Unidos no ano próximo. Penso que a taxa de desemprego oficial manter-se-á em cerca de 9 por cento.
Por outras palavras, se 2011 é um grande ano isso vai depender, em termos económicos, de se saber em que economia é que se está - se naquela em que os lucros continuam fortemente a crescer, na das grandes empresas e de Wall Street, ou se está naquela em que se vai continuar a lutar com pouco empregos e salários miseráveis.
Infelizmente, com o próximo Congresso é pouco provável que se venha a fazer muito para inverter tudo isto. A maior parte dos republicanos e também muitos democratas são tributários da América das grandes empresas e de Wall Street. A sua versão da reforma fiscal é a de reduzir os impostos sobre os mais ricos e sobre as grandes sociedades, e então fazer subir outros impostos (as taxas de IVA e sobre os bens imobiliários estão já a subir) ou reduzir as despesas sobre os programas destinados a apoiar as famílias de trabalhadores economicamente dependentes.Haverá, certamente, um momento em que a diferença entre as duas economias será tão grande e tão evidente que ninguém mais a poderá ignorar. Progressistas, gentes esclarecidas do Tea Party, Independentes, organizações de trabalhadores, minorias e os jovens formarão um novo movimento progressista com a missão de voltar a unir a América.
Robert Reich, New Year's Prediction, 29 de Dezembro de 2010Disponível em http://robertreich.org/Robert Reich, Fmr. Secretary of Labor; Professor at Berkeley; Author, Aftershock: 'The Next Economy and America's Future'
Quarta-feira, 29 de Dezembro de 2010
(Enviado por Júlio Marques Mota)
Não o esqueçamos, a crise financeira de 2007 a 2009 não foi provocada por políticas orçamentais descabidas dos países da zona euro. A crise deve-se à cegueira e à avidez dos mercados financeiros assim como às estratégias macroeconómicas insustentáveis dos países anglo-saxónicos e dos países muito competitivos (Alemanha, China). Antes da crise, os países da zona euro não praticavam políticas extravagantes quanto a aumentos das despesas públicas. Pelo contrário, a parte das despesas públicas no PIB tinha diminuído de 2,5 pontos de 1997 a 2007; em 2007, o saldo público global dos países da zona apresentava apenas um défice de 0,6% do PIB, inferior ao nível requerido para estabilizar a dívida. No entanto desde a criação da zona euro, o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), mal concebido, foi uma fonte permanente de tensões entre a Comissão e os Estados-Membros. As instâncias europeias, polarizadas sobre normas arbitrárias em termos de défice público, foram incapazes de levar a cabo uma coordenação satisfatória das políticas económicas que apoiasse um crescimento satisfatório na Europa e que evitasse o crescimento das disparidades entre os Estados-Membros.
Em 2010, o défice público global da zona euro é inferior ao dos Estados Unidos ou do Reino Unido. Porque é que então todos os países da zona Euro estão praticamente sob a ameaça de um procedimento de défice excessivo (PDE)? Porque é que os mercados continuam a especular contra certos países da zona, impondo-lhes taxas de juro insustentáveis, apesar da garantia do Fundo de Estabilidade Europeu e do Banco Central Europeu (BCE)?
A organização económica da zona euro não é satisfatória dado que a solidariedade dos países-membros não é automática, dado que o financiamento do défice público de um Estado-Membro não é assegurado, contrariamente à situação doutros dos países desenvolvidos. Isto permite aos mercados especular sobre a ruptura da zona, sobre a expulsão ou sobre a falência de um país membro. Assim, os mercados impõem a certos países taxas de juro exorbitantes que reforçam o risco de ruptura. Ameaçados de ver a sua dívida degradada pelas agências de notação, as agências de rating, todos os países da zona se sentem obrigados a praticar políticas restritivas, num período onde a procura é já insuficiente. Pode-se aceitar que as políticas económicas na Europa estejam permanentemente sujeitas aos diktats dos mercados? Estes até agora não demonstraram nenhum sinal de clarividência, como antes da crise.
A prioridade deveria ser a de repensar a organização da zona euro para garantir as dívidas públicas, para as subtrair aos humores dos mercados e para permitir aos países levar a efeito as políticas orçamentais adequadas em período de recessão.
O facto é de que a Comissão não tirou todas as lições da crise financeira. Antes pelo contrário, esta parece querer utilizar a crise grega para fazer esquecer a crise financeira e o período em que ela teve que aceitar colocar o Pacto de Estabilidade e Crescimento debaixo do tapete. Agora quer utilizar a ameaça das agências de rating para impor o seu primado: controlar as políticas , subtraí-las aos governos que estão sob mandato de voto democrático, obrigar os países a reduzir as suas despesas públicas e em particular as suas despesas sociais.
A 12 de Maio último, a Comissão tinha publicado uma primeira comunicação intitulada “reforçar a coordenação das políticas económicas “: A Comissão defendia contra toda a evidência que “as regras e os princípios do PEC são pertinentes e válidas” é somente necessário obrigar os países a respeitá-las.
A 30 de Junho, a Comissão propôs introduzir um primeiro “semestre europeu”, onde todos os Estados-Membros apresentariam as suas políticas orçamentais, de curto e de médio prazo, e os seus projectos de reformas estruturais à Comissão e ao Conselho Europeu, que dariam o seu parecer antes do voto dos Parlamentos nacionais no segundo semestre. Os Parlamentos nacionais por conseguinte estarão mais ou menos condicionados pelas decisões tomadas a nível europeu. Certamente, tal processo poderia ser útil se se tratasse de definir uma estratégia económica concertada, mas há o risco que este “semestre” seja para aumentar as pressões a favor de políticas de austeridade orçamental e de reformas liberais. Vê-se hoje: a Comissão lança PDEs, mas não pede aos países que têm margens de manobra em matéria de política orçamental ou salarial de empreenderem políticas expansionistas para compensar os esforços que fazem a Grécia, a Irlanda ou a Espanha. Esta proposta foi aceite pelo Conselho a 7 de Setembro de 2010.
A 29 de Setembro , a Comissão apresentou um conjunto de proposições que visam reforçar a governança económica que, de facto, irá diminuir a autonomia dos Estados membros obrigando-os a respeito rigoroso de regras sem significado económico e diminuiria a sua capacidade de estabilizar a sua economia.
OFCE, Paris, 26 de Outubro de 2010
Júlio Marques Mota, nasceu em 1943 na freguesia do Fratel, concelho de Vila Velha de Ródão, distrito de Castelo Branco. Faz parte do corpo docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Por sua iniciativa foram traduzidos e publicados títulos significativos no meio editorial português dos últimos cinco anos, tais como, O Futuro do Sucesso: Viver e Trabalhar na Nova Economia, de Robert Reich (Lisboa, Terramar, 2004); A Democracia e o Mercado, de Jean Paul Fitoussi, (Lisboa, Terramar, 2005); As Deslocalizações de Empresas: Ainda Teremos Empregos Amanhã?, de Philippe Villemus, (Lisboa, Edições Asa, 2007),; Tornar Eficaz a Globalização, de Joseph Stiglitz, (Lisboa, Edições Asa, 2007). Algumas destas obras foram ou são utilizadas nas unidades curriculares a que está afecto.
Com Luís Peres Lopes e Margarida Antunes, organiza os Ciclos Integrados de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC desde 2005-2006. No âmbito destes Ciclos, organizaram-se também sessões de projecção e debate de documentários e filmes temáticos, com a presença de variadíssimos professores e investigadores, de várias áreas científicas e de vários institutos e universidades portuguesas e estrangeiras.
É autor dos seguintes ensaios: Caderno de Exercícios Práticos de Finanças Internacionais, Coimbra, FEUC, 2004; Mercado Cambial e Integração Financeira: Mercado Cambial, Produtos Derivados e Globalização Financeira, Vol. 1, Coimbra, FEUC, edição revista 2004; Comércio Internacional, Crescimento Económico e Termos de Troca: A Análise Neoclássica, Coimbra: FEUC, 2007; Preços Relativos e Evolução das Remunerações Reais dos Factores, Coimbra, FEUC, 2007; Complementos de Ricardo e a Contribuição de Stuart Mill, Coimbra, FEUC, 2007.
Com colaboração de Luís Peres Lopes e Margarida Antunes, publicou: Crise do Sistema Monetário Internacional e a Criação de um Sistema Monetário Regionalizado: O Caso Europeu, FEUC, Coimbra, 2006;
Em co-autoria com Luís Peres Lopes e Margarida Antunes publicou A Crise da Economia Global: Alguns Elementos de Análise, Lisboa, LIVRE, 2009. Também em co-autoria com Luís Peres Lopes e Margarida Antunes publicou os seguintes artigos: “A Economia Global e a Crise da Dívida Soberana na União Europeia: A Situação de Portugal e Espanha”, Indicadores Econômicos FEE, vol. 38, nº 2, 2010; “Vom Stabilitäts - und Wachstumspakt zu den Finanzmärkten: der Fall Portugals und Spaniens” (“Do Pacto de Estabilidade e Crescimento aos Mercados Financeiros: Os Casos de Portugal e Espanha”), Kurswechsel, vol. 3, 2010, pp. 101-108; “História de um Ciclo de Cinema, de uma Visão do Ensino Superior”, Rua Larga, Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, n.º 28, Abril, 2010, pp. 51-55. Em co-coordenação com Luís Peres Lopes e Margarida Antunes publicou o seguinte livro, Financeirização da Economia: A Última Fase do Neoliberalismo, Lisboa, LIVRE, 2010.
Domingo, 26 de Dezembro de 2010
(Conclusão)
Marc Roche
(Texto enviado por Júlio Marques Mota)
Nem sabemos por que partitura devemos começar para apresentar Sean FitzPatrick, o homem orquestra deste banco que se tornará em 2007 o primeiro banco do país em termos de capitalização bolsista? Pelas pratos da história atormentada desta terra céltica, pelos címbalos da bolha imobiliária ou pelo violino deste que pretendia enganar o seu destino de contabilista? Este filho de pequeno agricultor, jogador e grande adepto do jogo do rugby na sua juventude, confundir-se-ia.
Com um diploma no bolso de estudos comerciais do University Colégio de Dublim, Sean Fitz Patrick entra em 1976 como tesoureiro para um pequeno banco de negócios, o Irish Bank of Commerce. Passa rapidamente a figura dominante neste banco . No fim de uma série de fusões-aquisições audaciosas, nasce, uma década mais tarde, Anglo Irish Bank na sua forma actual.
A obsessão deste personagem estranho , pequeno em estatura e de sorriso malicioso, era a de alcançar o pelotão da frente. Na ausência de uma rede de balcões não pode fazer forte concorrência aos dois mastodontes locais, Bank of Ireland e Allied Irish Bank, como banco comercial. Sean FitzPatrick atira-se de frente para o sector do imobiliário , ferro de lança da formidável expansão da economia irlandesa. O estabelecimento bancário financia-se junto do mercado interbancário.
Para satisfazer as necessidades dos promotores apressados, o Anglo Irish concede os seus empréstimos em poucas horas enquanto que os seus rivais exigem várias semanas de reflexão. Para este negociador impar com uma moral de aço, só o resultado conta, disposto a sacrificar as verificações habituais . O dinheiro brilha.
O microcosmo de Dublin olha para com ironia para a carreira deste outsider que não quer continuar a sê-lo. Porque Sean Fitz Patrick anda mesmo à procura de respeitabilidade. Este sujeito exuberante por vezes incómoda, “Seanie”, que não actua nem com discrição nem de luvas brancas está totalmente sintonizado com os seus mais fortes clientes , uma dúzia de promotores do imobiliário. “Self-made-men reaccionários, filisteus cúpidos, novos ricos no pior sentido do termo”, martela Frank McDonald, jornalista do Irish Times.
A elite financeira tira-lhe o seu chapéu. Acedendo em 2000 à presidência da associação bancária irlandesa, Sean FitzPatrick torna-se uma das peças soberanas deste famoso triângulo tóxico que compreende banqueiros, profissionais da construção e políticos. O patrão de Anglo Irish Bank joga evidentemente com mestria o jogo dos pequenos truques e das cunhas que são a norma nesta sociedade clânica onde todos se conhecem. Administrador da Dublin Docklands Development Authority, a organização responsável pela renovação dos estaleiros da capital, nomeia o presidente desta instituição para o seu conselho fiscal.
Autoritário, o patrão de Anglo Irish Bank é um adepto do exercício solitário do poder. A direcção oferece-se a si-mesma salários e bónus exorbitantes, vantagens em espécies e em planos de reforma colossais sem sequer informar a Administração . Este decepador de cabeças rebeldes neutraliza os controladores de riscos. A imprensa é silenciada pelos rendimentos em publicidade da bolha imobiliária. Irish Times, o jornal diário de referência, que investiu maciçamente num site de anúncios imobiliários, passa sob silêncio as advertências dos raros peritos que gritam à avisar dos perigos de sobreaquecimento, da bolha..
Luxuosos escritórios de representação são abertos nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e na Suíça, a fim de financiar grandes obras à Nero. Um departamento de fusões-aquisições, a actividade de cambista, a gestão de tesouraria e um banco privado são assim criados para oferecer toda a gama dos serviços aos promotores. Se tal loucura das grandezas houve, esta foi claramente inspirada e incentivada pela explosão das actividades financeiras . Anglo Irish Bank sonhava simplesmente imitar Goldman Sachs. É de resto o responsável das actividades americanas, David Drumm, que Sean FitzPatrick escolhe, em 2005, para lhe suceder na Direcção-Geral. Um delfim de 38 anos não fará sombra àquele que se tornará o presidente não executivo.
A partir daí, em meados de 2007, a máquina ganha embalagem . Sob o efeito do rebentamento “da bolha”, as cotações na Bolsa caem a pique . Anglo Irish Bank jura alto e bom som que não há fogo no lago e que o Banco sairá das suas dificuldades: Mas o contribuinte deve levar a mão à carteira. Em Dezembro de 2008, Sean FitzPatrick e David Drumm são forçados à demissão.
De um dia para outro, os ídolos dos jovens diplomados irlandeses tornaram-se uma caricatura dos novos ricos . Os grandes conversadores como são as gentes de Dublin diziam mal deles nos pubs com o mesmo ardor com que os elogiavam ainda há pouco tempo antes . Cada um se interroga sobre a atitude incompreensível dos revisores de contas e auditores que não deram nenhum sinal de alarme quando ainda era tempo, sobre a carência das autoridades de tutela que nada foram capazes de prever e enfim sobre a forma ligeira dos políticos que fecharam os olhos .
Sobretudo, um dos mitos fundadores da República do Sudeste ganhou nesta tormenta: o acesso à propriedade. Na National Gallery de Merrion Square, um quadro de Erskine Nicol datado de 1853 mostra uma família de roupa esfarrapada que carrega com os seus magros haveres a lançar um último olhar para a exploração agrícola de que acabam de ser expropriados. “Como a fome e as perseguições, a proibição aos católicos de comprar um bem imobiliário imposta pelo colonizador britânico até 1882 permaneceu no imaginária de um povo durante muito tempo oprimido”, insiste o senador independente David Norris, professor de Literatura comparada.
“A casa de um Irlandês é o seu castelo ”, tinha-se o costume de dizer aquando do triunfo do Tigre céltico, parafraseando a obsessão dos vizinhos britânicos em tornarem-se proprietários. Nestes dias, os muros do Shelbourne Hotel, lugar diariamente frequentado por James Joyce, ressoam com a advertência de Finnegans Wake, um das suas obras-primas: “A casa de um irlandês é o seu caixão“.
(Marc Roche, Anglo Irish Bank - Un scandale irlandais, Le Monde, 19.12.2010 )
Sábado, 25 de Dezembro de 2010
Um texto sobre a Irlanda, sobre a forma como se alimentou a dimensão da bolha, da crise, que agora a maioria de todos nós está a pagar. Viveu-se e vive-se um período em que para alguns tudo era ou é permitido enquanto que a outros tudo era ou passou agora a ser exigido, é o que texto também mostra. Estranha duplicidade de critérios, marca inegável do neoliberalismo que os governos dos Estados membros da UEM, de direita ou de esquerda apelidados, assim como a Comissão Europeia tudo fazem para manter. Talvez por isso ninguém viu, ninguém previu o que aí estava a acontecer, salvo por ironia ou por destino, James Joyce quandon escreveu: “A casa de um irlandês é o seu caixão“..
Júlio Marques Mota
Anglo Irish Bank- Um escândalo irlandês
Roche Marc
Como um pequeno banco de retalho criado em 1964 se transformou num imenso casino que desmoronou como um castelo de cartas? A História da ascensão e da queda do Banco que é símbolo dos erros da economia irlandesa. Por Marc Roche
Simon Kelly é um jovem promotor imobiliário irlandês. Antes de ter estar falido, era frequentemente convidado a tomar o pequeno - almoço com os emissários do Anglo Irish Bank, o seu principal Banco para obtenção de fundos . O cenário: uma pequena sala do Shelboume Hotel forrado a tecido almofadado, ao abrigo dos ouvidos indiscretos. A ementa: ovos mexidos com bacon e chouriço. E também café. Uma primeira cafeteira, depois uma segunda. “Tudo se passava nesta fase da conversa, recorda-se o promotor. Um simples aperto de mão selava um projecto de várias dezenas de milhões de euros. Anglo Irish Bank financiava, de olhos fechados, os projectos mais loucos.
Simon Kelly fez destes encontros no velho Hotel a base do seu livro, Breakfast with Anglo, consagrado a maior falência financeira da verdejante Irlanda . O actual presidente do Anglo Irish Bank, Alan Dukes, terá sem dúvida todo o tempo de se irritar ao olhar para as vitrines dos livreiros. Os dias do seu poder , símbolo dos erros e abusos da forte expansão imobiliária irlandesa entre 1997 e 2007, estão de facto contados. Face ao falhanço da operação de resgaste financeiro e ao facto das perdas líquidas atingirem uma profundidade abissal, a União Europeia e o Fundo Monetário internacional exigiram, com efeito, o encerramento do banco, declarado em falência a 19 de Novembro de 2010, como uma das condições para a concessão de uma ajuda internacional à Irlanda.
Como o céu de Dublin, Alan Dukes passa do sorriso o mais feliz a uma tristeza latente: «os antigos dirigentes cometeram o grave erro de se concentrarem num único sector , a construção , violando assim todas as normas de prudência », explica este ex-ministro da economia que alcançou este seu posto algumas semanas antes do banco ter sido colocado sob a tutela do Estado, em Janeiro de 2009.
O Estado-maior anterior deixou atrás de si o caos. Com a sua chegada, a nova equipa de direcção descobre um sistema gangrenado, cheio de conflitos de interesses e de compromissos . Na primeira fila estavam os antigos dirigentes que encheram bem os seus bolsos. O anterior presidente, Sean FitzPatrick, tinha uma gestão, no mínimo muito pessoal , como testemunham os empréstimos concedidos de 88 milhões de euros a si-mesmo, a título privado e no maior segredo. Estes fundos foram investidos com associados seus numa plataforma de exploração petrolífera na Nigéria, num complexo hoteleiro na Hungria, num casino em Macau. Por seu lado, o director geral, David Drumm, também levantou 8 milhões de euros sem o conhecimento dos outros para comprar duas vastas propriedades, uma em Dublin, a outra em Capa Cod, no Massachusetts.
Fazer crer que há uma riqueza que não existe e dissimular uma dívida que existe: ao longo dos anos, a maquilhagem das contas do balanço tinha-se tornado a norma contabilística. Assim, uma instituição financeira irlandesa que trabalhava sobre hipotecas , uma caixa que trabalhava no imobiliário, emprestou cerca de 7,3 mil milhões de euros através de incríveis acrobacias para esconder os prejuízos na véspera da publicação dos resultados de 2007 do Anglo Irish Bank. Por último, recorrendo a produtos financeiros sofisticados para confundir as pistas, o banco financiou em cerca de 28% o seu aumento de capital com as contas de um grupo de clientes . E isto será apenas o princípio . Porque até agora, o inquérito da polícia tem-se defrontado com uma sabotagem dos códigos informáticos que permitem aceder aos documentos mais comprometedores. Além disso, os faltosos transferiram os seus activos (casas, automóveis luxuosos, etc.) para as suas esposas. Como é que uma pequena sociedade criada em 1964, especializada no seu início no financiamento da compra de material electrodoméstico, se conseguiu transformar num imenso casino que se desmoronou como um castelo de cartas ?
(Continua)
Sexta-feira, 17 de Dezembro de 2010
Júlio Marques Mota
Sobre o caos em que se tornou o ensino universitário abateu-se o chamado processo de Bolonha, obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista. O primeiro acto de qualquer governo com um mínimo de sensatez tem de ser a revogação das abstrusas disposições desse pseudo-acôrdo feito à revelia de professores e investigadores, que não tiveram a coragem de o rejeitar e se sujeitaram a passar sob as forcas caudinas.
(Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal, os problemas da Europa, 2.ª ed., Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 62).
Introdução
Num documento da Comissão Europeia, Educação & Formação para 2010: A urgência das reformas necessárias para o sucesso da Estratégia de Lisboa, pode ler-se: “Na recente reunião que realizaram em Berlim, os Ministros da Educação reafirmaram firmemente o seu empenho na criação de um quadro europeu de referência para as qualificações de nível universitário e solicitaram a aceleração das reformas necessárias na arquitectura dos diplomas, nos sistemas de garantia de qualidade e no reconhecimento mútuo de qualificações” .Este excerto é elucidativo das intenções da reforma de Bolonha. O que aqui está em causa é o reforço da construção do mercado único europeu e, em particular, a intensificação da mobilidade do trabalho no espaço da União Europeia. Pretende-se assim que o “quadro europeu de referência” seja um espaço de homogeneização e de medida das diferentes habilitações que cada um dos Estados-membros possui e que no mercado devem ser valorizadas, avaliadas, certificadas, como investimento.Na concepção do mercado único europeu está o primado da livre concorrência e do indivíduo como agente económico, sendo o colectivo apenas visto como um conjunto de indivíduos e não como uma sociedade. De acordo com isto, passou-se a assumir a formação como um investimento individual da responsabilidade cada vez maior do estudante. Inversamente, cria-se assim condições para se ir indo desresponsabilizando o Estado pelas Universidades. Neste quadro, para além disto, a educação passa a ser vista como uma acumulação de saberes e/ou competências, mais destas do que daqueles, a serem negociadas num espaço mais vasto que anteriormente.Bolonha representa mais uma componente deste grande mercado do ensino e formação, vem trazer o primado das competências negociáveis no mercado, dos marketable skills, sobre os saberes. Ou seja, o que se pretende desde logo é que seja o mercado a ditar às instituições universitárias os conteúdos e as práticas de aprendizagem, com a consequente desvalorização dos saberes. Isto é assim na medida em que se quer que seja o mercado o normalizador e quem valida, em última instância, essas formações escolares e os trajectos individuais de cada estudante. Assim se compreende a multiplicidade de opções escolares em muitos cursos, em que as licenciaturas são equivalentes a autênticos menu à la carte, em nome da liberdade e da responsabilidade individual do estudante investidor arbitragista, do estudante que para escolher tem que ser já conhecedor do que precisa de saber, como se fosse possível sabê-lo a priori apenas a partir dos dados presentes do mercado de trabalho, como se este não fosse instável e, por isto, muitas das vezes imprevisível, como se a decisão individual nunca entrasse em colisão com a de muitos outros que individualmente tomaram a mesma opção. Neste contexto, a função da Universidade é pois a de criar “especialistas” dotados de um stock de competências que se vendam bem no mercado e ao menor custo, ou seja, que permitam a cada futuro trabalhador entrar no mercado de trabalho. O resto, o que faltar à formação para que cada um se adapte às condições exigidas pelo mercado em cada momento caberá de novo à decisão individual, trabalhador ou empresas, num contexto de um vasto mercado de ensino e formação que se pretende que seja cada vez mais resultante do sector privado.A lembrar tudo isto está um conjunto de declarações da ministra do Ensino Superior em França, Valerie Pècresse, feitas em Outubro de 2010, quando lhe perguntaram para que serve a publicação do Palmarés das Universidades:
Nous devions cette information aux familles et aux étudiants. Car, pour s'orienter à l'université et pour réussir ensuite sur le marché du travail, il faut être correctement informé sur les performances des différentes filières. Longtemps, les universités ont considéré que leur responsabilité s'arrêtait à la délivrance du diplôme. Depuis la loi de 2007 sur l'autonomie des universités, l'insertion professionnelle et l'orientation sont devenues leurs nouvelles missions, comme le souhaitaient les étudiants, aux côtés de la formation et de la recherche. C'est aussi un instrument de pilotage pour tous. Pour les universités elles-mêmes, afin qu'elles puissent réfléchir aux améliorations nécessaires des filières les moins professionnalisantes, et pour l'Etat, qui en tiendra compte dans ses dotations financières aux campus. D'ici à 2012, nous allons pouvoir bâtir de vrais indicateurs de performance nationaux qui seront intégrés dans le calcul de l'allocation des moyens, comme le prévoit la loi de 2007 .
Este é pois o quadro de Bolonha, este é o quadro de regulação do espaço europeu onde homens e empresas podem ser vistos de igual para igual, objecto de investimentos produtivos, cuja rentabilidade depende exclusivamente das condições dos mercados. Mas a ministra francesa chama a atenção para uma outra implicação de tudo isto: no caso de não haver empregos para os licenciados, tal facto não representa um disfuncionamento do sistema económico e político nem um disfuncionamento do mercado, porque este é sempre eficiente, representa antes a incapacidade ou a incompetência da Universidade em responder às necessidades daquele e, por isso, deve ser sujeita a uma revisão das suas dotações orçamentais.É neste contexto, cremos, que se pode perceber a lógica da Comissão Europeia que no documento já citado refere que as grandes questões que ao ensino superior são postas são o financiamento, a diversidade das instituições nas suas funções e nas suas prioridades e a criação de pólos de excelência, o que parece indicar o caminho para a existência de Universidades a duas ou mais velocidades. Analisar a reforma do ensino universitário, dita reforma de Bolonha, analisar os seus efeitos presentes e perspectivar as suas consequências no futuro cremos ser hoje imperioso, necessário e urgente, se quisermos escapar à lógica redutora do ensino universitário que está a ser imposta em nome da ideia de eficiência dos mercados inerente à concepção do mercado único europeu. Curiosa esta concepção do espaço económico europeu e o quadro em que se inserem as políticas aí praticadas que nos levaram à situação de crise em que nos encontramos, curiosa arquitectura institucional da União Europeia que não é capaz de dar nenhum sinal, não é capaz de utilizar nenhum instrumento de política económica — porque provavelmente não é capaz de o conceber — como resposta contra a quase morte lenta em que estão política e economicamente a colocar a ideia original de Europa comunitária, tudo isto em nome, sublinhe-se, da soberania dos mercados. Ser-se contra a situação presente é ser-se igualmente contra Bolonha e é neste plano que se vai inserir o nosso discurso.
Sobre a crise, sobre Bolonha
Neste texto, optámos por apresentar um exemplo tirado da economia americana para caracterizar e ilustrar a profundidade de conhecimentos que se deve exigir a um estudante de Economia no mundo de hoje, o que é completamente o contrário do que é possível com a reforma de Bolonha. O exemplo escolhido foi a análise do mercado dos cereais e em particular o do trigo na principal Bolsa de mercadorias do mundo, o Chicago Mercantile Exchange. Não foi por acaso que escolhemos este exemplo e escolhemo-lo por uma série de razões, todas elas graves no contexto de crise presente, razões que passamos a expor:
1. O trigo é um produto base na alimentação de muitos milhões de pessoas, cujos preços têm sido sujeitos a fortes oscilações e objecto de subida continuada durante um certo período de tempo, o que levou muitos milhões de pessoas à situação de fome.
2. Trata-se de um mercado determinante no estabelecer do preço de um bem fundamental, o pão, preço esse que serve de referência para os agricultores de todo o mundo.
3. Sobre o mercado do trigo, tomámos conhecimento de um documento de Junho de 2009 do Senado americano intitulado Excessive Speculation in the Wheat Market que é um claro exemplo do que deve ser um trabalho feito a nível governamental. Não conhecemos nada na Europa de equivalente. A análise em questão debruça-se em profundidade sobre o que são os produtos derivados nestes mercados, produtos estes que como sabemos foram elementos-chave na presente crise. Neste texto sublinham-se bem as diferenças entre as políticas da Administração Roosevelt e as políticas neoliberais das últimas décadas que desregularam completamente estes mercados.
4. A partir do documento referido, podemos discutir, no limite do possível, a problemática dos efeitos da especulação sobre os mercados de matérias-primas e de produtos alimentares bem como a necessidade de que esta seja contida em certos limites, os limites de bona fide, e que pressupõem uma vigilância constante da especulação nestes mercados se queremos que eles cumpram os objectivos para que desde longa data foram criados.
*Observatório Pedagógico do ISEG – 3.º Seminário anualBolonha: Diferentes Olhares, 3 de Novembro de 2010
(Continua)_______________
Quinta-feira, 16 de Dezembro de 2010
Coimbra, 15 de Dezembro de 2010
Ex.mo Senhor Presidente da República
Com conhecimento: ao Primeiro-Ministro, ao Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e aos líderes parlamentares.
Senhor Presidente, tomo a liberdade de lhe escrever esta carta porque, enquanto professor e cidadão, estou altamente preocupado com a erosão do tecido social em Portugal, e na Europa também, fruto não só da terrível situação de crise dita financeira pela qual estamos a passar e que é, sobretudo, o resultado do modelo económico, social e político que lhe está subjacente e preocupado igualmente estou, e muito, com a situação de crise que atravessa a Universidade em Portugal, fruto sobretudo de políticas anteriormente seguidas, fruto sobretudo da reforma de Bolonha, fruto portanto do mesmo modelo de referência que nos levou à situação actual. Uma Universidade em profunda crise e tão grande, na minha opinião, que não posso deixar de colocar aqui e de deixar à sua apreciação as razões do meu descontentamento.
Senhor Presidente, a crise da dívida soberana portuguesa amainou, o espectáculo oferecido pelos políticos dos dois maiores partidos, esse transitoriamente ao mesmo nível ficou, nos grandes bancos o nosso dinheiro, esse se embolsou, e o povo, esse continua a não perceber o que ninguém nunca lhe explicou: porque está a sofrer cada vez mais, a pagar cada vez mais e a dever cada mais e em nome de quê ou porquê? Que terá ele feito de mal para sofrer esta violência, agora? Num mundo e numa sociedade onde impere a honestidade, a justiça, a transparência, numa sociedade de profunda raiz democrática portanto, cada um deve ser responsável pelos seus erros e deve saber assumi-los; mas então que alguém lhes diga, a eles e a nós também, senhor Presidente, quais os erros que cada trabalhador desempregado neste sistema cometeu para que agora se deva sentir penalizado, quais os erros que levam a que cada criança com fome nele e dele se possa sentir culpada, quais os erros que cada velho que passou a vida a trabalhar duramente deles se possa sentir responsável para que veja os seus direitos de há muito tempo adquiridos agora fortemente anulados? Que haja alguém que lhes explique, pelo menos a eles, aos desempregados, às crianças com fome e com pobreza garantida como futuro, aos velhos que do passado foram bem enganados, para onde foram os vários milhares de milhões de euros que do bolso de cada um deles e de todos eles foram retirados para no BPN serem aplicados sem que nada tenha sido tocado na Sociedade Lusa de Negócios nem em ninguém que deles muito antes os delapidou e então, aqui, foi a favor de quem? Ninguém, nunca ninguém lhes disse nada, senhor Presidente, e todos nós lamentamos que assim tenha sido.
Um economista moderado, Thomas Piketty, a lembrar um outro intelectual importante dos tempos de Marx, Proudhon, num recente artigo sobre o salvamento da Irlanda, sobre o resgate dos bancos irlandeses, chama a tudo isto um nome. Passo a citar: “Digamo-lo claramente. Deixar que países que se enriqueceram graças ao comércio intra-europeu absorvam em seguida a base fiscal dos seus vizinhos, isto não tem rigorosamente nada a ver com os princípios da economia de mercado ou com o liberalismo. Isto só tem um nome e chama-se: roubo. E ir emprestar dinheiro às pessoas que nos roubaram, sem nada exigir em troca para que isso não se reproduza, a isto chama-se estupidez”.
Senhor Presidente, no país em que o senhor é Presidente, como em toda a Europa aliás, porque a massa da classe política actualmente no poder é toda ela a mesma ao nível das atitudes e dos princípios, é assim que genericamente as pessoas se sentem, isto é, sentem-se materialmente roubadas e intelectualmente de estúpidas consideradas. Um dos muitos exemplos possíveis, vemo-lo agora na Irlanda com o banco Anglo Irish Bank em que, falido, nacionalizado, pelo contribuinte a ser financiado, vem agora declarar que vai dar de bónus este ano 400 milhões de euros. E que responde o Governo de lá? Que vai sobretaxar os bónus do ano que vem! Um outro exemplo vemo-lo aqui e agora, em Portugal, como noutros países e por outros governos socialistas chamados, a permitir-se a antecipação de dividendos para evitar o pagamento de impostos que seriam exigidos para o ano, ou ainda o regime de favor que se criou aos grandes grupos financeiros com a isenção fiscal sobre as mais-valias ganhas com a venda da Vivo pela PT, tudo isto acompanhado por um discurso a nunca esquecer proferido recentemente na nossa Assembleia da República em nome dos grandes accionistas, pelo líder do maior grupo parlamentar, a outros tempos nos fazer lembrados. A lógica é a mesma, o comportamento é o mesmo, e já não é uma questão da direita ou da esquerda que está no poder. Recuando um pouco, na Islândia, enquanto se deixava, como agora na Irlanda, que as grandes fortunas escapassem, defendendo-se a liberdade absoluta dos movimentos de capitais, o governo pedia à Igreja que mantivesse as portas abertas mais tempo, para que as pessoas pudessem pedir auxílio a Deus, chorar, rezar! A lógica é a mesma, o comportamento é o mesmo, e já não é uma questão da direita ou da esquerda que está no poder, é uma questão de quem actualmente está no poder; é, sendo assim, uma crise de valores, uma crise profunda do sistema democrático que está em movimento. Movimento para onde? Lamentável imagem que se dá da democracia. Sobre isso vale a pena lembrar Helmut Schmidt na sua recente entrevista sobre a crise europeia: “Posso dizer que, de uma maneira geral, à Europa faltam dirigentes. Faltam personalidades, à frente dos Estados nacionais ou nas Instituições europeias, que tenham um conhecimento suficiente das questões nacionais e internacionais e que façam prova de uma capacidade de julgamento adequada”.
Senhor Presidente, a crise da dívida soberana portuguesa amainou, o espectáculo oferecido pelos políticos dos dois maiores partidos, esse transitoriamente ao mesmo nível ficou, mas o nosso país, o país de todos nós e que todos nós fazemos, os que trabalham, esse, não parou, nem a roda dentada da História, assim o considerou. Como nos lembra Alice no País das Maravilhas, vai-se sempre para qualquer lado mesmo que para nenhum lado se queira ir. Mas creio, profundamente creio, que eu e que todos nós sabemos que por este caminho que nos estão a impor, o lado nenhum para onde nos estão a empurrar é um verdadeiro desastre nacional onde vai imperar o desemprego e a miséria, senão também a fome e a desestruturação da sociedade portuguesa também.
Senhor Presidente, antes de estalar a crise, dita financeira, esteve toda a Europa sujeita a um tsunami silencioso mas, por definição, poderoso, que é a lógica implacável do neoliberalismo imposta pela classe política no poder e em nome da modernidade. Foram as instituições que durante trinta gloriosos anos animaram o crescimento económico e que eram a base do Estado-Providência que têm sido uma a uma minadas, descaracterizadas, quer ao nível do trabalho, da saúde, da educação, da segurança social, quer da visão global de sociedade e do seu futuro. Foi esse trabalho profundo e subterrâneo que agora nos torna vítima da voragem que os políticos no poder e os grandes financeiros nos querem impor e de que até agora temos sido incapazes, todos nós, de lhes resistirmos e de nos sabermos deles defender.
Senhor Presidente, neste tsunami silencioso que vem de longe, de muito longe como diz o poeta/cantor, nesse tsunami silencioso inscreve-se a reforma de Bolonha do ensino superior, em que com ela, e na minha opinião, a Universidade está lenta mas implacavelmente a ser destruída. Com esta reforma, passámos a considerar as Universidades como o espaço onde não se pode ensinar pouco mais que generalidades e não creio honestamente, por maior que seja o esforço, que neste momento se possa passar para além disso. Onde deixa de haver capacidade de pensar, não pode haver, logicamente, capacidade de se ensinar. Com esta reforma, aí temos a Universidade a transformar-se num deserto de ideias, onde o acto de pensar, reflectir, criticar, argumentar, reconstruir, parece arredado na formação universitária dos jovens; se assim é, ensinar, no verdadeiro sentido da palavra, é agora apenas uma possibilidade virtual. O que desta reforma nos fica é a certeza de que se quer que o ensino represente menos despesas públicas no orçamento do Estado, sacrificando-se com isso a nossa juventude, os nossos filhos e os nossos netos, no altar da redução do défice público. É assim uma luta contra o tempo, é a luta pela compressão do estudo ao tempo mínimo e ao custo mínimo, como se valha mais ter um jovem deficientemente formado e na rua à procura de emprego do que um jovem de profundos conhecimentos capacitado na mesma situação, pois aquele representa um menor desperdício financeiro. Com a reforma de Bolonha, permitiu-se que se generalizasse uma forma de “ensino” mais leve para quem ensina e tem muitas outras ocupações mais rentáveis, mais leve para quem não quer entender que um professor tem a difícil função de apoiar os estudantes na descoberta do mundo que lhes é dado, do mundo que lhes cabe a eles refazer, tem a difícil função de os apoiar a ganharem novas formas de estar e de enfrentar o mundo hostil que lhes estamos a criar, tem a difícil função de estar intelectualmente disponível para os ajudar a que cresçam num profundo espaço de cidadania, a Universidade que desejamos, como cidadãos e como técnicos. Em suma, apoiá-los no seu desejo de transformar o mundo de modo a que a vida lhes confira sentido e, com este, sejam eles a conferir sentido ao mundo que conscientemente desorganizámos! Em vez disto, o que está a ser feito, no reino da facilidade com o processo de Bolonha já instalado, é tornar a vida muito mais leve para aqueles que não ensinamos e não ensinamos agora nem a ler ou a escrever bem nem, muito menos, a estudar bem. Isto é enganá-los, é dar-lhes uma forma de estar na vida pessoal e profissional que esta não comporta. Fornecedora de diplomas de não empregabilidade é o que a Universidade se apresta agora a ser, com o nível de licenciatura, o primeiro ciclo, que fornece.
Passemos um grau acima, passemos aos mestrados. Segundo sinais dos mercados quanto a empregos, e estes sinais valem o que valem, a preferência está a ir para os detentores destes diplomas, a começar pela Assembleia da República. A ser assim, isto significa, com o silêncio e os medos que se estão a abater sobre a sociedade portuguesa, o reconhecimento indirecto mas claro de que as licenciaturas pouco ou nada valem. Simplesmente, sejamos todos honestos. Se não produzimos licenciaturas de qualidade também não poderemos, de modo nenhum, ser capazes de fornecer mestrados de qualidade, porque só se ensina o que os outros são capazes de aprender, e estes, os nossos estudantes, já deixaram de saber o que é profundidade de ensino. Para o fazermos, seria então necessário muito trabalho para contrariar e vencer a redução de capacidades de que a Universidade foi entretanto o produtor exclusivo! A minha ideia e a daqueles que a vão dizendo em surdina é a de que simplesmente muitos dos mestrados estarão a ter um nível inferior ao da própria licenciatura. Não passa de uma ideia, de uma opinião, mas é opinião de quem tem estado desde há muito tempo no terreno, mesmo que esta opinião seja no papel contestada por alguns daqueles que fazem a ciência nos nossos dias e ignorada pela maioria de todos os outros.
A revolução francesa deu-nos uma trilogia: liberdade, fraternidade e igualdade, só conjugáveis duas a duas, o neoliberalismo deu-nos a dualidade, to be or not to be, to have or not to have, e Bolonha, uma reforma organizada no interior do modelo neoliberal, na sua expressão mais forte e mais dura, aplicada à Universidade, leva-nos a uma outra trilogia: to be or not to be, to know or not to know e então to have or not to have. Mas aqui já não se conjugam duas a duas! Vou porém mais longe, quanto ao to know or no to know. Se a dualidade existe, se se verifica esta oposição binária, então garantidamente esta deve-se mais à formação de origem dos nossos alunos do que à qualidade de ensino que as estruturas de Bolonha levaram a ser ensinado, porque com estas estruturas nem elites capazes são possíveis de ser formadas no reino da facilidade agora instalado. Em lado nenhum do mundo as elites podem ser criadas assim e não será agora aqui, com certeza, que se iria operar o milagre. Não o creio. Mas então a pergunta: para que serve esta Universidade? Assim, como a vejo, só lhe vejo um sentido e um muito mau sentido: o de fazer a diferenciação no elevador social pelos diplomas, e a diferenciação nestes pelo dinheiro que se possa ter à partida, ou seja, à nascença. Da licenciatura ao mestrado do mestrado ao doutoramento serão anos a mais e muito mais dinheiro a gastar para exibir esse ticket de modo a poder subir uns andares a mais no referido elevador social que aliás bem mostras tem dado, desde há muito tempo, de estar avariado. Se isto é assim, o que reflecte esta situação? Ou, por outras palavras, o silêncio sobre a sua existência o que representa? A comodidade do nosso silêncio talvez, mas esta deve ser transformada na incomodidade das nossas recusas.
Hoje será a última aula teórica que dou como professor da disciplina de Economia Internacional, na licenciatura em Economia. Vou aposentar-me e não voltarei mais a leccionar estas matérias. Como o disse num outro contexto, saio por opção antes do final do meu contrato, já com anos de trabalho gratuitamente oferecidos ao meu país, saio vencido pela incapacidade de aceitar o que se está a fazer da Universidade e de nem sequer compreender os objectivos de missão que agora lhe estão subjacentes. Sempre me recusei a conviver com o regime de simplificação e de mentalidade que lentamente Bolonha instalou nas nossas vidas e nas nossas próprias subjectividades e não queria deixar esta disciplina sem o sinal de protesto que se me exige como professor, como cidadão, como pai e como avô. Faço-o solicitando que se procure perceber bem o que se passa no nosso ensino superior, faço-o apelando para se que encontrem respostas para os graves problemas da juventude de hoje, e que não seja esta a geração perdida de depois de amanhã, como o assinala a OCDE e o FMI, faço-o para que honestamente se questione que tipo de Universidade é que o país precisa.
Escrevo em má altura, numa altura de fanfarra pelos dados da OCDE, na base de inquéritos feitos em escolas, mas faço-o nesta mesma altura em que é evidente que a maioria dos filhos intelectuais de Sócrates e de Maria de Lurdes Rodrigues que entraram nas Universidades com altas notas a matemática, há três anos, mostram uma pobreza intelectual aflitiva. Dada a identificação pretendida, quer pelo Governo quer pela OCDE, dos resultados de PISA com a política de educação do actual primeiro-ministro, seria de esperar que os alunos que há três anos chegaram às Universidades reflectissem a mesma política de ensino. Mas a ser assim, das três uma: ou a selecção das escolas deformou os resultados, ou os alunos bons foram não sei sequer para onde, pois para as engenharias também não foram, a fazer fé no jornal O Público, que nos diz que uma parcela significativa dos estudantes do IST não faz operações algébricas simples, e nas outras Faculdades ninguém os vê, ou a maioria dos “beneficiados” desta política nunca conseguiram chegar à Universidade a não ser que venham a entrar depois de atingirem 23 anos, e isto mais uma vez de acordo com o espírito de Bolonha e de acordo com legislação aprovada pelo ministro da tutela, Mariano Gago. Independentemente dos resultados e das leituras que sobre estes têm sido feitas, o que se vai vendo, ouvindo e sentindo, é que os alunos de hoje, 2010, não são melhores que os dos anos transactos, dispõem de menos conhecimentos e de uma menor capacidade de aprendizagem, mas vontade de aprender, essa, ainda a têm. Dê-se-lhes tempo e meios e muitos deles poderão ainda vir a ser os técnicos a que socialmente aspiramos. Não os defraudemos, portanto.
Senhor Presidente, nesse sentido lhe deixo aqui, o texto de uma exposição feita em Lisboa sobre a reforma Bolonha, lhe deixo aqui a expressão das minhas angústias quanto ao futuro da Universidade em Portugal. Ironia da história, senhor Presidente, fui seu aluno e nessa época seu crítico fui, na qualidade de estudante, como o foram também Ferro Rodrigues, Augusto Mateus, Carlos Pimenta, Félix Ribeiro, Francisco Soares e tantos outros, com quem se partilhou perspectivas outras de Universidade que a de então mas também necessariamente muito diferentes daquelas com que nos deparamos actualmente. E hoje, de igual modo seu crítico sou, senhor Presidente, por não partilhar da mesma visão do mundo, mas é ao nosso Presidente que agora me dirijo, a si portanto, que venho com esta carta apelar para que se questione seriamente o que é a Universidade de hoje, o que queremos como Universidade de amanhã e, sobretudo, que nos preocupemos seriamente com a nossa juventude. De novo, ironia das ironias, tal como em criança fiz o protesto admissível ao ministro da Educação de então, protesto não divulgável porque estávamos em fascismo, hoje, em democracia, dirijo-me a si, senhor Presidente, fazendo o protesto que me é eticamente exigível , mas agora necessariamente aberto a todas as formas de divulgação que são próprias de quem resiste em nome da cidadania e do desejo de uma sociedade mais justa, mais solidária, mais ambiciosa nos seus projectos, faço-o, porque confio também agora no sistema, confio na Democracia que representa, confio na dignidade do cargo que ocupa e faço-o num momento em que sinto que as Instituições Governamentais estão a ficar de costas voltadas para as grandes missões de interesse público. E nestas está necessariamente, a imposição de não deixarmos que se deixe destruir a juventude de hoje, está a obrigação de tudo fazermos para que esta não se transforme irrecuperavelmente numa lost generation.
Senhor Presidente, parafraseando Thomas Piketty no artigo citado, considero que é urgente que os dirigentes portugueses, assim como todos os dirigentes europeus e todas as Instituições da União Europeia, tenham finalmente a coragem de ter uma visão nacional e europeia solidária e ambiciosa para se sair da crise actual e esta não é só financeira como nos querem fazer crer, esta atinge tudo o que é socialmente significativo na sociedade portuguesa. Comecemos nós por compreender a necessidade da existência dessa coragem.
Consciente de que é necessário perceber a dimensão do desastre que se está a criar e também a dimensão do mal-estar que a muitos docentes está a condicionar, espero, senhor Presidente, que este meu apelo seja entendido e com esta esperança lhe peço que aceite os meus respeitosos cumprimentos.
Júlio Marques MotaProfessor AuxiliarFaculdade de EconomiaUniversidade de Coimbra