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ESTOU A FICAR COM UNS TIQUES ESQUISITOS, ASSIM A MODOS QUE DE DITADOR!
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Nota Introdutória por Julio Marques Mota
Publicaremos nos três próximos três dias textos sobre a Irlanda, sobre a crise, sobre a banca, sobre o que nos espera se a União Europeia continuar a querer ser o espaço integrado onde quem governa são os mercados de capitais.
Começaremos por um texto, e mais um, dos Economistas Aterrados, dividido em duas partes, sobre a crise na Irlanda, sobre os mecanismos de ajuda que lhe estão subjacentes, sobre a sua origem, neste caso assente na financeirização das economias à escala global e com particular realce para a Irlanda que além do mais obteve o direito de ser um paraíso fiscal, direito que ainda mantém. Segue-se lhe um texto sobre a banca e uma carta escrita com amor e destinada ao povo português, publicada num jornal de grande circulação, Sunday Independent.
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A crise da Irlanda mostra ao limite o absurdo da crise actual, pelo menos naquilo que a dinamizou, os seus aspectos financeiros. Mostra assim a subordinação total dos poderes políticos locais à boa lógica dos mercados financeiros, dos traders, dos seus ladrões, diremos nós. Curiosamente, gente dessa não está presa, mais ainda e curiosamente, gente desta levou a que o Estado soberano fosse avalista dos bancos e assumisse portanto o pagamento das loucuras destes. E agora, o povo irlandês está sob o comando da Troika (FMI, Comissão Barroso, Banco Central Europeu) e que trio a permitir tornar ainda a Irlanda mais dependente dos mercados.
A ajuda financeira, o famoso bailout, tem aqui as sérias conotações que uma carta escrita com amor, destinada ao povo português, muito bem explica, carta essa que será publicada amanhã. E nessa carta, quem a escreveu, bem percebeu o que significa no modelo e no contexto português ou irlandês, a descida do IVA do executivo de José Sócrates para quem quer jogar golfe, com uma mensagem de uma ironia bem amarga: nós, nos campos de golfe, também somos muito competitivos!.
Boa leitura, portanto.
Coimbra, 2 de Abril de 2011
Júlio Marques Mota
A crise irlandesa, emblema e símbolo da finança desregulada. Parte I e Parte II
Benjamin CORIAT
Economistas Aterrados(1)
A crise irlandesa é exemplar e deve exigir a nossa atenção por mais de uma razão. Primeiramente, porque se trata da crise de uma economia que durante muito tempo tem sido mostrada como o exemplo “modelo” pelos grandes promotores da liberalização em todo o mundo. O FMI, a OCDE, e mais perto de nós a União Europeia não cessaram de cantar as virtudes “do modelo” irlandês. A demonstração das vantagens e dos benefícios da liberalização (e sobretudo depois de um outro filho querido, a Argentina, ter voado em estilhaços no início dos anos 2000), é agora dada pela Irlanda, repetiam-nos as vozes autorizadas de todas as grandes instituições internacionais.
Esta crise é também exemplar porque nasce e forma-se no próprio centro do modelo: isto é, forma-se no interior do sistema bancário e financeiro que a liberalização tem promovido através das desregulamentações sistemáticas a que se tem assistido durante os 30 últimos anos. Esta crise é uma nova crise da finança desregulamentada e ilustra até ao exagero todas as suas tropelias.
Apresenta ainda a vantagem de ilustrar de maneira bastante esclarecedora a ideia de que os défices públicos actuais não são , de forma alguma , devidos a excessos da despesa pública dos Estados, mas sim que estes défices são hoje na sua grande parte o produto directo da situação que resulta da instalação de uma finança mundial desregulamentada. No caso da Irlanda, de maneira indiscutível, é a crise bancária que pura e simplesmente provocou a crise e que provocou igualmente a subida de défices públicos.
Esta crise ilustra a extrema injustiça dos planos de reestruturação postos em prática. Uma longa tempestade se abate sobre o povo irlandês, quando ninguém pensa mesmo em mexer nos imensos lucros acumulados e distribuídos pelos financeiros irlandeses ao longo de todos estes anos faustos, aos seus accionistas, aos seus dirigentes, aos traders. Tudo isto ao longo dos anos em que foi criada uma bolha especulativa extremamente lucrativa, sem ninguém que se preocupasse com as consequências que advirão a partir do seu rebentamento.
Por fim, mas não o fim, a crise irlandesa mostra mais uma vez os erros na construção da arquitectura monetária e financeira que o recente Tratado Constitucional era suposto santificar para as décadas futuras .
Mas comecemos pelo início. Como é que um modelo dado como exemplar - não se falava ainda há pouco tempo no “ Tigre Céltico” - se formou, depois, como e porque é que voou em estilhaços provocando com a sua passagem uma onda de choque que destabiliza a União Europeia nos seus próprios fundamentos ?
O modelo irlandês ou o que está por baixo dos Tigres
O que se designa sob o nome de modelo irlandês é uma construção que se pôs progressivamente em prática e que foi sujeita ao longo tempo a certas evoluções(2). Mas o seu ponto fixo, a sua característica central, tem sido uma política de atractividade , habilmente construída sobre as insuficiências da construção institucional da União Europeia. Esta não criou nem previu a prazo nenhuma regra de harmonização fiscal e a Irlanda bem cedo fez a opção de utilizar a concorrência pelo mínimo de imposição fiscal e aproveitar-se do vazio europeu a esse respeito. Fixando a taxa de imposição das empresas em 12,5% (contra cerca de 30% na Alemanha, 34% na França…), escolhe posicionar-se, no centro da União Europeia, como um paraíso fiscal, perfeitamente legal, perfeitamente respeitador das regras comunitárias.
Esta escolha decisiva, ligada a uma política de formação activa e bem feita veio a gerar os efeitos esperados. Numerosas empresas, mas também e sobretudo grandes multinacionais, localizarão sucursais ou mesmo a sua sede na Irlanda, para beneficiar desta generosidade. A contabilidade “criativa”, as manipulações contabilísticas entre filiais no seio das holdings farão o resto. Os lucros repatriados para a Irlanda escaparão aos países onde as actividades que os geraram se desenvolveram. No meio da década dos anos 2000, a Irlanda passa para a frente das Bermudas em matéria de repatriamentos dos lucros. Estes ascendem a cerca de 20% do PIB. É assim que a Irlanda atingiu o segundo lugar em termos de PIB/habitante (logo atrás do … Luxemburgo). Trata-se certamente de um crescimento que é uma ilusão mas, mesmo com 12,5% de imposição fiscal, os benefícios do Estado irlandês não serão pequenos , alimentando a continuação e o reforço das opções iniciais.
A banca e a finança internacional não ficarão de fora nestas localizações. Em duas décadas constitui-se na Irlanda um complexo bancário e financeiro totalmente sobredimensionado relativamente às necessidades e às possibilidades da economia local. O fornecimento em fundos externos ultrapassa rapidamente os levantamentos em poupança nacional. De Dezembro de 2004 a Dezembro de 2007, as importações de recursos vão crescer em cada ano cerca de 22 mil milhões de euros (contra 18,8 para depósitos de origem nacional (3) ) . Este afluxo vai provocar a formação de um regime de excesso de liquidez.
É aqui que se encontra a origem da formação de uma bolha sobre o mercado imobiliário. A oferta de crédito a taxas de juro baixas, para favorecer o endividamento a longo prazo das famílias - em conjunto uma fiscalidade resolutamente atractiva para os compradores - vai exceder todas as expectativas . A taxa de endividamento das famílias bate na Irlanda todos os recordes. Esta taxa vai aumentar sucessivamente durante a década de 2000, para atingir os 182,9% em 2009 (4) . André Orléan num estudo recente mostrou bem, a partir do exemplo do mercado imobiliário americano, como é que a subida dos preços, longe de provocar mecanismos correctores, se aauto-sustentam (5) . No caso da Irlanda, o desenvolvimento da bolha no imobiliária foi tanto mais forte e incompressível quanto a existência de um centro bancário e financeiro sobredimensionado, alimentado maciçamente por recursos financeiros externos, constituiu uma situação muito favorável à formação de grandes desequilíbrios . Para além dos bancos e das sociedades de crédito especializadas, a exposição ao risco (tendo em conta a subida da taxa de endividamento das famílias) também afectou os dois grandes seguradores de créditos as seguradoras irlandeses especializadas em seguros no ramo imobiliário na Irlanda, as monolines, o INBS (Irish Nationwide Bulding Society) e a BSE (Educational Bulding Society). Como nos Estados Unidos com os créditos subprimes, “as seguradoras” especializadas faliram rapidamente, tão rapidamente quanto foi necessário recorrer a elas .
A explosão da bolha vai, como era previsível, provocar a ruína dos bancos, de repente cheios de créditos mal parados, de créditos não cobráveis e, portanto, elas próprias deixaram de estar em condições de fazerem face às suas necessidades de refinanciamento, ao mesmo tempo que a bolha provocava um forte empobrecimento dos seus compradores. Para numerosas famílias irlandesas, a sua habitação , cujo preço tinha caído brutalmente, constituía, e de longe, o seu activo principal. Far-se-á, em 2008 , o primeiro plano de apoio de emergência com o Estado a ser chamado para evitar que com a falência bancária se desse o desmoronamento geral. Este plano será seguido por três outros, antes que a União Europeia, e o Euro, que é também a moeda nacional irlandesa, se venham a encontrar frontalmente atingidos , e não venha ela própria socorrer a Irlanda com um quarto plano de salvamento.
1 Tradução de Júlio Marques Mota. Revisão de António Gomes Marques.
2 Ver Renaud Lambert, “ Les quatre vies du modèle Irlandais », Le Monde Diplomatique,Outubro, 2010.
3 Jonathan McMahon, « The Irish banking crisis: lessons learned, future challenges » , 26 de Maio de 2010. Jonathan McMahon é, no seio do Banco Central Irlandês, o director-geral adjunto da supervisão das institutições financeiras.
4 Ibidem.
5 André Orléan, De l’euphorie à la panique : penser la crise financière, Collections du CEPREMAP, Editions de la rue d’Ulm, 2009.
PS: continua amanha com a parte II
Nota de Introdução - por Julio Marques Mota
No quadro da União Europeia, é este o modelo, todos somos concorrentes uns com os outros, países que concorrem com os seus sistemas fiscais, o mínimo fiscal possível como se diz, em termos de imposição fiscal, mas o mínimo fiscal possível significa o Estado mínimo possível. Fez-se a mesma coisa, em termos de concorrência, quando se “criou” a crise financeira. Inventou-se uma sigla, PIIGS, a soar como porcos em inglês. Face à sigla, os italianos diziam que havia um I a mais, o de Itália, os Irlandeses diriam que havia um I a mais, o da Irlanda, Portugal dizia que não era a Grécia, a Espanha dizia que não era Portugal, a Bélgica dizia que nesta sigla não havia nenhum B e a França terá dito que não era a Bélgica.
Questionar o modelo, o que todos deviam ter feito, pois era manifesto que o Pacto de Estabilidade não foi feito para a situação de profunda crise que se estava a atravessar, isso não, isso nunca; questionar a arquitectura da União Europeia, isso não: questionar as agências de rating isso também não, são uma componente da arquitectura, pede-se-lhes, e só agora ,que quanto a uma descida de rating nos avisem dos ratings três dias antes e pede-se também que só os publicitem depois do fecho dos mercados; questionar os mercados financeiros, isso não, porque são o sistema cardiovascular de uma sociedade; questionar os hedge funds, esses fundos altamente especulativos, isso não, porque são eles que nos fazem a “revelação” dos preços, e não os seus custos de produção; questionar os bónus isso também não porque é contra a excelência desses mercados e dos seus agentes, mas alguém que me diga que excelência é então a de Blankfein quando ganha 68 milhões de dólares de bónus num ano. Uma só explicação possível e ele deu-a: faz o trabalho de Deus. De Deus ou dos homens, alguém se terá enganado pelo caminho, porque o mundo é este. O congressista americano, Phil Angelides, e com ele Shakespeare, esclareceu bem a questão quando afirmou na resposta a Blankfein “Mr. Blankfein, quero dizer o seguinte: Tendo assumido um lugar no conselho de administração da California Earthquake Authority, os actos de Deus, esses, estão sempre isentos. Estes, os da crise, foram actos de homens e mulheres”. E nesse sentido, parafraseando Júlio César de Shakespeare, lembrou-lhe e lembrou-nos também: “A falha não está nas estrelas, mas em nós.” Mas isto é na América de Obama, onde se pretende, ainda de acordo com o mesmo senador: “O meu eu pai cresceu na Grande Depressão. Como tantos da sua geração, ele foi moldado pelo sacrifício - endurecido por dificuldades económicas e de guerra - tendo tomado consciência da imprudência financeira que fez a sua vida muito mais difícil do que precisava ser.
A sua geração aprendeu as lições do desastre financeiro para que o país pudesse evitá-lo por décadas. Vamos aprender as lições do nosso tempo. Sejamos hoje diligentes e atentos, para que o nosso sistema financeiro e económico possa recomeçar na íntegra, e enriquecer e sustentar os norte-americanos de amanhã.”
Da América para a Europa, aqui, mudamos de continente mas parece que estamos a mudar de mundo também e de século igualmente, para o século XX, para o período da sua grande crise, a de 1929. Aqui, há os países que estão em profunda crise, há os que completamente o não estão como a Alemanha, há outros que parecem também não estar, mas que só o não estão em termos dos ratings, não em termos das economias reais, porque nesse plano a crise é-lhes já bem dura, também. Para estes últimos, desde que se conserve o que as agências de rating nos (lhes) oferecem, os AAA, o famoso triplo A, a crise parece esfumar-se, porque ela é apenas financeira e financeiramente a nossa cotação é a máxima! É assim que nos vendem a crise. É, por exemplo, a situação da França, cuja Ministra do Ensino Superior, hoje um ensino low-cost por toda a França, como em Portugal de resto, vai até Pequim, apresentar dados do ensino superior para subir no índice de Xangai, e conseguir que alguns estrangeiros mais venham estudar para o seu país! Mas de lá para cá, a diferença é exclusivamente, na história do triplo A, os AAA tão desejados. O resto? O resto, no reino de Sócrates ou de quem agora, em Portugal, o venha a substituir, no de Sarkosy, no de Berlusconi, ou de um outro qualquer, é tudo igual. Por exemplo, em França, em Setembro de 2011, este país, em nome dos seus três A terá suprimido 67.000 postos de trabalho no ensino desde 2007! Em nome desses mesmos três A, crianças há que vão possivelmente deixar de ter escola pré-primária. Que o digam, por exemplo, os habitantes de Vic-sur-Aisne, com mais alunos, com menos escolas.
Vão fechando, lá como cá. Lá como cá, já há pais a afirmar que não querem que os seus filhos, bem pequenos, carreguem já o pesado fardo de serem as variáveis de ajustamento contabilístico do actual sistema. Crianças de quatro anos, do lado de cá, no presente e quase com a garantia de perderem o futuro que para eles os pais sonharam, e face a eles e a nós o que nos diz a Europa na sua cimeira? Mais do mesmo e transcrevo do documento oficial do Conselho Europeu, apenas:
Cada país será responsável pelas medidas políticas específicas pelas quais opte para fomentar o emprego, devendo todavia ser prestada especial atenção às seguintes reformas:
• reformas do mercado de trabalho para promover a "flexigurança", reduzir o trabalho não declarado e aumentar a participação no mercado de trabalho;
• aprendizagem ao longo da vida;
• reformas fiscais, como a redução dos impostos sobre o trabalho para tornar o trabalho compensador, mantendo simultaneamente as receitas fiscais globais, e tomando medidas destinadas a facilitar a participação das segundas fontes de rendimento dos agregados familiares na força de trabalho.
Sem comentários, mas voltemos à América, retomemos o senador Phil Angelides:
“Tenho esperança que, juntos, possamos reconstruir e manter um sistema de capital, que nos ajude a criar empresas de valor, que coloquem os americanos a trabalhar para que eles possam sustentar as suas famílias e realizar os seus sonhos, e que crie a fundação de uma nova era de prosperidade amplamente partilhada..”
Do lá de lá do Atlântico está-se a trabalhar contra um sistema financeiro que à crise a todos nós levou, está-se a trabalhar pela reconffiguração do sistema produtivo para empregos garaantir, está-se a trabalhar pela satisfação dos sonhos dos americanos que a América com o seu esforço constroem. De lá de cá, Atenas hoje e aqui a mostrar o que as Instituições, todas elas, andam por cá a fazer. Hoje Atenas, amanhã Dublin e depois de amanhã? Quem sabe?
Coimbra, 30 de Março de 2011.
Júlio Marques Mota
TEXTO SOBRE ATENAS
Atenas, greves sucessivas, privatizações e impasse orçamental
Alain Salles, Le Monde
"Supressão da dívida", reclama uma bandeirola estendida a 22 de Março aquando de uma nova manifestação nas ruas de Atenas. Como certos especialistas, os manifestantes preconizam uma reestruturação da dívida. Preconizam mesmo uma reestruturação radical.
“Não somos responsáveis pelo que fizeram os governos precedentes, explica Gregori Iatrakos, um empregado da Câmara Municipal de Atenas. Se a União Europeia encontra dinheiro para reforçar a posição dos bancos, pode também encontrar dinheiro para os trabalhadores.”
Os Atenienses manifestam-se regularmente. Na terça-feira, 22 de Março, a alguns dias da cimeira europeia de Bruxelas que deve finalizar o acordo dos países da zona euro que abre a porta a uma redução da taxa de juro e uma dilatação dos prazos de reembolso para a Grécia, a manifestação era um pouco modesta.
Mas desde a instauração, em Maio de 2010, do plano de austeridade inspirado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela União Europeia (UE) em contrapartida do seu empréstimo de 110 mil milhões de euros, o país já teve uma dezena de greves gerais. A última há menos de um mês. Cada semana é como que marcada por movimentos sociais, desde os transportes públicos aos advogados passando pelos jornalistas ou pelos farmacêuticos.
Os manifestantes berram, o governo passa, sem que mude a sua política. Sob o constrangimento dos seus parceiros, o governo acaba de lançar um programa de privatizações do qual espera obter cerca de 50 mil milhões de euros. Do nunca visto na Grécia. O memorando assinado pelo governo grego e pela Troika - UE, FMI, Banco Central Europeu - originalmente previa cerca de 3,5 mil milhões de euros, mas foi aumentado em razão do agravamento da situação financeira do país.
Recessão
O governo chegou a reduzir o seu défice em 2010, mas a dívida continuou a pesar cada vez mais. Pior ainda, o défice recomeçou a aumentar nos dois primeiros meses do ano, devido à falta de crescimento económico: a Grécia conhecerá em 2011 o seu terceiro ano consecutivo de recessão. Além disso, o governo permanece aquém dos seus objectivos quanto às suas receitas fiscais, num país onde a fraude é um desporto nacional.
“Poderemos ter os primeiros rendimentos das privatizações no Verão", explicou na terçafeira o Ministro das Finanças, Georges Papaconstantinou. A primeira fase do plano de privatização prevê a obtenção de 15 mil milhões de euros nos três próximos anos.
Um Comité interministerial encarregado de estabelecer a lista das empresas a privatizar e as propriedades de Estado a pôr em concessão terá a sua primeira reunião na quartafeira, dia 23 de Março. Uma das suas primeiras tarefas vai ser a de estabelecer a lista destas propriedades do Estado, num país onde não existe seq uer registo cadastral. A Lotaria nacional, a Companhia do Gás e a muito endividada companhia dos caminhosdeferro estará entre os primeiros activos a privatizar.
O governo continua a excluir qualquer reestruturação da sua dívida. “Poderia provocar o desmoronamento dos bancos gregos e produziria uma avalanche de ataques especulativos sobre um grande número de países europeus", explicava o Primeiro-ministro grego, Georges Papandréou, no Le Monde de 11 de Março, insistindo particularmente nos riscos incorridos pelos fundos de pensões gregos.
Alain Salles, “A Athènes, grèves à répétition, privatisations et impasse budgetaire”, Le Monde, 23 de Março de 2011.
Júlio Marques Mota
Os CDS e a dinâmica da dívida pública :a propósito da política suicidária da Comissão Barroso[1]
O que é um CDS?
O que é um CDS, um Credit Default Swap?
Um CDS, Credit Default Swap, é um contrato bilateral, um swap, inscrito fora de balanço, entre duas contrapartes: uma, o vendedor (dito também writer ou seller), oferece ou vende à outra parte, o comprador (buyer), a protecção contra o risco de um acontecimento de crédito sobre títulos de crédito de uma terceira parte, a entidade de referência (reference name ou devedor de referência), contra o pagamento de prémio de risco, a que se chama taxa de CDS ou ainda spread. Desta forma o CDS é, portanto, um derivado de crédito pois é um produto financeiro que tem como subjacente um crédito ou um título representativo de um crédito e tem como finalidade a transferência do risco relativo a esse mesmo crédito, o subjacente, do comprador do CDS para o vendedor do CDS, sem a transferência dos activos considerados e sobre os quais se coloca o risco de crédito. O risco de crédito é assim transferido através do CDS da entidade de referência, da entidade de quem se receia um acontecimento de crédito, para o vendedor da segurança contra o risco, o seller, em quem se confia. Este próprio, o fornecedor da segurança, pode entrar em situação de falência e veja-se o caso da AIG. Neste,, o segurado deixou assim de ficar segurado.
[1] Estas notas deveriam ter sido publicadas no corpo do texto de Sterdyniak, Crise da Zona Euro, publicado por Estrolábio. São uma sintese actualizada, mas em termos reduzidos, de textos nossos já publicados com a finalidade de servirem de enquadramento a alguns dos pontos desenvolvidos por Sterdyniak.
A entidade de referência, a terceira parte, a que se refere a transacção pode ser uma empresa, um banco ou um Estado. No caso de ser um Estado, os CDS começaram inicialmente por ser utilizados na cobertura de risco sobre as emissões de títulos da dívida soberana quando emitidos em moeda estrangeira - como exemplo, os títulos da Grécia emitidos em ienes ou dólares e não em Euros, o que deu azo ao famoso swap com a Goldman Sachs -para assim proteger, portanto, o comprador dos títulos do risco da variação cambial. A protecção era portanto essencialmente feita sobre os títulos da dívida pública emitidos em moeda estrangeira mais do que sobre os títulos emitidos em moeda nacional.
As duas contrapartes do CDS, vendedor e comprador, são geralmente bancos, companhias de seguros, hedge funds, os chamados fundos especulativos de alto risco, mas podem sê-lo igualmente grandes empresas ou mesmo Estados.
A sublinhar que antes da crise financeira, os CDS sobre a dívida soberana dos países desenvolvidos eram praticamente inexistentes. Estes ganharam importância com a crise financeira e mais ainda ganharam importância com os crescentes compromissos financeiros para salvar os bancos (aumento dos limites de garantia dos depósitos, a recapitalização dos bancos, as garantias das dívidas bancárias) e depois com os défices públicos pelo estímulo à economia e adicionalmente com os efeitos de tesoura sobre as contas públicas: a recessão instalava-se, as despesas públicas aumentavam e as receitas públicas, pela recessão diminuíam. Por estas vias deslocou-se o risco de crédito das instituições financeiras para o Estado. Por essa via, e refeitos do seu desastre, as instituições financeiras colocaram-nos perante um outro desastre: passaram a atacar aqueles que os recuperaram e exactamente até sobre os instrumentos que de que os Estados se serviram para os apoiar: os títulos utilizados para os colocar em funcionamento e solváveis. A partir daí, nos mercados financeiros criou-se o problema do défice soberano, a seguir criou-se o problema da dívida soberana e, como se isto não chegasse, criou-se depois o problema da balança corrente, país a país, mesmo que se esteja numa zona monetária onde não existe problema de taxa de câmbio no seu interior, como o caso na União Monetária e em tudo isto os CDS desempenham um papel determinante. Os excessos do mercado dos CDS têm sido bem manifestos nestes últimos tempos através do interesse bem recente pelos contratos protegendo contra situações de incumprimento de emitentes soberanos (os designados CDS soberanos). O largo leque de bancos, de que muitos deles tiveram necessidade de injecções de capitais e de forte apoio dos governos em matéria de liquidez para se garantir a sua existência, para evitar a sua falência, a oferecerem hoje garantias a outros intervenientes do mercado contra o risco de incumprimento dos Estados soberanos que os salvaram (e em muitos casos trata-se do seu próprio país) é tão profundamente surreal que é o nosso próprio real, o subjacente, diríamos, que por baixo de tudo isto passa a estar em questão e passa a ser o nosso problema pelos mercados criado. Esta é a moral da história que aqui vos deixo para ler.
Um CDS é economicamente parecido com uma apólice de seguro emitido por uma companhia seguradora. Apenas parecido. Quais as diferenças?
Como primeira diferença o emitente do CDS, o chamado vendedor da segurança de acontecimento de crédito, ou ainda dito também writer, pode ser um banco, uma companhia de seguros ou uma outra instituição.
Numa apólice de seguro, exige-se que o detentor da apólice, o comprador do seguro, seja também ele o detentor do objecto segurado. Num CDS pode nem sequer haver posse de nenhum título, pode, portanto, não haver posse do objecto face ao qual se compra a respectiva segurança[2], o que lhe confere um estatuto muito especial como instrumento de especulação, o que veremos mais adiante.
Por outro lado as companhias de seguros, emitentes das apólices, são reguladas pelo Regulador de Seguros, no caso português, pelo Instituto de Seguros de Portugal, os bancos são regulados pelos Bancos Centrais, enquanto muitas outras instituições que operam neste mercado nem sequer têm regulador, a nível nacional e internacional, como é o caso dos hedge funds, instituições estas muitas vezes determinantes neste segmento de mercado, o dos CDS.
[2] Para darmos um exemplo bem perto de nós e bem no centro da crise, vejamos o caso do Lehman Brothers. Quando o Lehman Brothers faliu, o seu endividamento atingia cerca de 600 mil milhões de dólares. Segundo as estimativas de mercado, o Lehman Brothers era a entidade de referência de contratos CDS num montante situado entre os 400 e os 500 milhares de milhões de dólares. No caso de cobertura física dos títulos, títulos detidos por quem procura a segurança, os contratos CDS teriam simplesmente levado a uma transferência das perdas dos credores para os vendedores da cobertura, com a perda global constante, transferência de uns para os outros, dos credores do banco para os vendedores da segurança. As estimativas do mercado situam em 150 mil milhões de dólares os contratos CDS efectuados para este efeito. Os restantes 250 a 350 mil milhões seriam pois cobertura sobre títulos de crédito sobre o Lehman Brothers que não existiam, isto, contratos efectuados sem subjacente, contratos nus.
O que é considerado acontecimento de crédito é especificado no contrato. Os principais acontecimentos de crédito geralmente considerados são:
- incumprimento;
- bancarrota, o que não se aplica aos CDS sobre títulos soberanos;
- reestruturação da dívida envolvendo:
- a redução na taxa de juro;
- a redução no valor do capital em dívida ou do prémio pagável na maturidade do título;
- reescalonamento do pagamento do capital em dívida ou dos juros;
- uma mudança no grau de subordinação dados títulos de dívida: dívida sénior passar a ser equiparada a títulos de dívida júnior.
Formalmente, não existe nenhuma diferença entre um CDS sobre uma empresa e um contrato de CDS que assente sobre obrigações emitidas por uma entidade soberana. Sabendo que as entidades soberanas não estão cobertas pela legislação sobre as falências que é aplicável às empresas, a falência não constitui um acontecimento de crédito para os emitentes soberanos.
No caso dos CDS sobre a dívida soberana, os acontecimentos de crédito sobre os emitentes soberanos resultam principalmente de uma reestruturação da dívida, por um reescalonamento da dívida (Argentina, 2002), por uma situação de não-pagamento da dívida (Equador, 2008) ou por uma moratória sobre a dívida (México, 1982).
Um exemplo de CDS
A 3 de Janeiro de 2004 o ABN, AMRO BANK NV compra protecção por 5 anos ao Deutsche Bank de títulos da Ford Motor Company, sobre um valor nocional, o valor de referência, de 10milhões de dólares pagando um prémio de 200 pontos de base, ou seja de 2%. Neste exemplo, o ABM paga 50 mil dólares, trimestralmente ao Deutsche Bank.
Esquema
Momento T0: Compra de protecção de crédito
Aproximadamente um mês depois, verifica-se um acontecimento de crédito e o ABN entrega os títulos de Ford Motor Company ao Deustche Bank em troca recebe os 10 milhões de dólares menos a proporção dos 50 mil dólares que deveria pagar no final do trimestre.
Momento T1: Acontecimento de crédito
Ao momento T0 do CDS chama-se o braço fixo do CDS enquanto ao momento T1, que se pode verificar ou não, chama-se braço contingente do CDS.
Enviado por Júlio Marques Mota
Traduzido por António Gomes Marques
Crise da zona euro
O jogo dos mercados financeiros e a cegueira das instituições europeias conduzem à catástrofe. É urgente mudar de Europa.
Henri Sterdyniak
sterdyniak@sciences-po.fr.
Dezembro de 2010
www.atterres.org.
Depois da crise financeira, depois da crise económica, a zona euro conhece desde há nove meses até agora uma crise específica: os mercados financeiros especulam contra as dívidas de certos países da zona. Estes mercados imaginam uma cenário catástrofe de desaparecimento da zona e exigem fortes prémios de risco para deterem os títulos das dívidas públicas dos países que consideram à beira da falência. Os mercados jogam assim sobre as falhas da organização da zona euro onde os Estados deixam de estar seguros de se poderem financiar. A Europa foi incapaz de reagir: o Banco Central Europeu (BCE) e os Estados-Membros não levaram a efeito e com a energia necessária as políticas requeridas para evitar uma maior diferenciação nas condições de financiamento entre os países; os Estados-Membros deram apenas prova de uma solidariedade tímida e condicional que confortou os mercados no seu sentimento de fragilidade da zona; a Comissão e os Estados Membros obrigaram os países ameaçados a levar a efeito políticas insustentáveis de redução rápida dos seus défices públicos.
A crise pode ter três saídas. Seja a continuação da política actual que provoca um crescimento duravelmente fraco na Europa, particularmente nos países do Sul; os mercados não são tranquilizados; o cenário de rompimento da zona não é afastado. Seja os países do Sul deixam a zona euro, o que provocaria um novo choque financeiro na Europa e seria o toque de finados para as ambições da construção europeia. Com efeito, a única estratégia duradoura é a da mudança do funcionamento da zona pela fixação de uma solidariedade financeira sem falhas, a luta contra a especulação financeira com a colocação de novos circuitos de financiamento, e com a criação de uma estratégia macroeconómica coordenada.
Os jogos dos mercados financeiros
A fase actual do capitalismo, o capitalismo financeiro, caracteriza-se pelo desenvolvimento prodigioso dos mercados financeiros onde massas enormes de capitais estão perpetuamente à procura de colocações mais rentáveis, mais líquidas e o menos arriscadas possíveis, enquanto os fundos especulativos (hedge funds) e os especuladores (traders) tiram partido da volatilidade dos mercados para organizar operações fortemente rentáveis.
Mas como encontrar a contrapartida: emprestadores sem risco e créditos a serem pagos a taxas de juro importantes? É necessário obrigatoriamente um montante enorme de dívidas face a um montante enorme de activos financeiros. Os prestamistas, os mutuantes, querem investir somas importantes, mas preocupam-se seguidamente com o facto de que os emprestadores, os mutuários, estarem demasiado endividados; procuram rentabilidades elevadas, mas estas fragilizam os emprestadores; é a maldição do devedor, do mutuário.
Os países, as empresas ou as famílias que beneficiam de contributos importantes de fundos externos estão fragilizados, dado que se tornam fortemente endividados e dependentes dos mercados de capitais: é a maldição do mutuário, do devedor.
ão governável.
Uma cultura de compromisso é absolutamente fundamental para que a cada momento o país possa estar à altura das exigências , principalmente em tempos de crise. Por essa Europa fora o habitual é os governos serem constituídos por mais que um partido, coligações resultantes de laboriosas conversações políticas onde todos cedem a favor do interesse nacional.
Não é o que se passa em Portugal. Mais um originalidade que nos custa caro, mesmo perante o querer do eleitorado que, ao mandatar não maioritariamente qualquer um dos partidos, está a apontar o caminho da co-governação, da governação em coligação, os nossos políticos não são democraticamente humildes para seguir o resultado das eleições.
Cavaco Silva, na presente crise tem uma enorme culpa ao nada fazer para que os partidos tivessem, honestamente, procurado encontrar consensos alargados para uma crise que se anunciava há muito e que já muitos apontavam como inevitável. A resposta à crise foi uma permanente "fuga para a frente" engordando o estado e esmagando a sociedade civil afinal, a única das forças que já dá sinais firmes de retoma.
Perante uma inevitável contenção na despesa respondeu-se com investimentos de duvidosa eficácia; perante uma cavalgada incontrolável da dívida externa respondeu-se com aumento de impostos e cortes sociais aos mais desfavorecidos; perante a falta de fundos agravaram-se as condições das parcerias público-privadas; perante um estado cada vez mais fraco as empresas do regime "sugaram" o tudo o que era possível .
Por mais PECs que se aprovassem os juros da dívida não deixavam de crescer, é como as hienas que cercam o animal que pressentem moribundo.
A crise nunca é a que nos é transmitida pelas câmaras das televisões, do ar solene dos Passos Perdidos ou do silêncio sepulcral que estroina dos lados de Belém. A crise está nas famílias que têm que tirar os filhos da escola, por isso o que se está a passar com a demissão do governo não tem qualquer influência, a curto prazo, na vida das pessoas. Que se encontre uma solução alargada e responsável sobre os grandes problemas nacionais é o mínimo exigível por quem foi eleito. E, aí sim, compreenderíamos que às vezes é necessário dar dois passos atrás para a seguir se dar um em frente.
Nos anos 80 dirigi uma empresa de móveis de escritório que tinha negócios com empresas congéneres italianas. Nessa altura os governos em Itália duravam meses numa permanente instabilidade. Perguntei ao meu acompanhante como é que conseguiam viver com uma classe política tão irresponsável, a resposta veio rápida: " Eles (políticos) não chateiam e nós pagamos" que é uma forma de dizer "deixam-nos trabalhar".
Isto remete também para a dimensão do estado e para a responsabilidade da sociedade civil. O país não pode estar dependente, umbilicalmente dependente, da classe política! Há muito que esta evidência corrói o país e a própria democracia!
Um projecto perigoso
As instâncias europeias não aprenderam nenhuma lição da crise financeira. Pelo contrário, querem utilizar a crise grega para fazer esquecer a crise financeira e o período horrível em que deveriam ter aceite colocar o Pacto de Estabilidade e de Crescimento de lado. Agora, querem utilizar a ameaça dos mercados financeiros e das agências de notação para imporem as suas obsessões de sempre: controlar as políticas orçamentais, subtraí-las aos governos sujeitos ao voto democrático, obrigar os países a reduzir as suas despesas públicas e em especial as suas despesas sociais.
A 12 de Maio passado, a Comissão publicou uma primeira comunicação: “Reforçar a coordenação das políticas económicas”. Mantinha, contra toda a evidência da realidade, que “ as regras e os princípios do Pacto de Estabilidade e Crescimento [eram] relevantes e válidos”; e que era necessário apenas obrigar os países a respeitá-lo.
A 30 de Junho, a Comissão propôs introduzir um primeiro “semestre europeu”, durante o qual todos os Estados Membros apresentariam as suas políticas orçamentais, de curto e médio prazo, bem como os seus projectos de reformas estruturais, à Comissão e ao Conselho Europeu, que dariam o seu parecer antes da votação nos respectivos Parlamentos nacionais, no segundo semestre. Deste modo os Parlamentos nacionais serão mais ou menos constrangidos pelas decisões tomadas a nível europeu.
É certo, um tal processo poderia ser útil se com este se tratasse de definir então uma estratégia económica concertada, mas o risco deste “semestre” é o risco de aumentar as pressões a favor de políticas de austeridade orçamental e de reformas liberais. Vê-se claramente hoje: a Comissão lança Procedimentos de défice excessivo contra todos os países, mas não pede aos países que têm margens de manobra em matéria de política orçamental ou salarial que ponham em prática políticas expansionistas para compensar os esforços que fazem a Grécia, Irlanda ou a Espanha. Esta proposta foi aceite pelo Conselho, a 7 de Setembro de 2010.
A 29 de Setembro, a Comissão apresentou um conjunto de propostas visando reforçar a governança económica, o que faria diminuir a autonomia dos Estados-Membros, obrigá-los-ia ao estrito respeito de regras sem significado económico e prejudicaria a sua capacidade de estabilizar a sua economia:
- os países poderão ser sancionados se as despesas públicas aumentam mais rapidamente do que a taxa de crescimento prudente do PIB (excepto se isto for compensado por aumentos de receitas ou se o país está com excedente orçamental). A consequência seria a interdição das medidas de estímulo à economia através do aumento das despesas públicas. Mas quem avaliará o crescimento prudente ? Será cerca de 1% do PIB como as últimas estimativas da Comissão quanto ao crescimento potencial? Em período recessivo, haverá verdadeiramente necessidade de “ prudência”?
Que se passará se, por “prudência”, as famílias renunciassem a consumir, e as empresas renunciassem a investir?
Júlio Mota
Dizem-nos agora que estamos perante uma geração parva! Naturalmente, se agora são parvos então fomos nós que os ensinámos, e como não se nasce parvo, faz-se parvo, então se o são, são pois o produto do nosso trabalho. Se assim é, foi então isso o que a sociedade fez deles, se assim é, foi portanto o que toda uma máquina de ensino e treze a dezasseis anos de escola deles fizeram, mas se assim é, tanto dinheiro gasto e tanta gente ocupada para produzir parvos, então é porque há muitos mais parvos, todos aqueles que conscientemente isto fizeram. Felizmente a juventude não é assim, nem nunca poderia ser e são precisos muitos anos para fazer de um jovem um parvo, convenhamos.
Estamos perante gerações sujeitas a terríveis situações de precariedade, isso sim, impostas por uma sociedade que não foram eles que a fizeram, determinados por um modelo económico e social que não foram eles que o conceberam, manietados por um sistema político onde não são eles que a política determinam, silenciados por uma imprensa que é incapaz de denunciar as condições contratuais que a muita gente obrigam a aceitar, violentados pela ausência de condições para um futuro poderem criar e que era nossa obrigação dever-lhes dar. Depois disso, os mecanismos de concorrência e de desregulação que desprotege cada um de nós impõe a quem procura emprego o salve-se quem puder. Por aí, diremos que o sistema neoliberal, definido aqui como um conjunto de discursos, de práticas, de dispositivos que determinam um novo modo de governação dos homens sob o princípio agora mundial da concorrência exacerbada, aponta uma a duas armas a cada um destes precários, sejam jovens ou não: uma ao coração procurando impedi-los de sentir, o salve-se quem puder E COMO PUDER, e uma outra dirigida à razão, procurando impor condições para que estes sejam impedidos de alguma vez virem a ser capazes de verdadeiramente pensar , de criticar, e, por aí, a tudo se poderem e terem que sujeitar.
Com a reforma do ensino superior promovida por este governo, mas podia ser outro que o resultado seria o mesmo, com a reforma dita de Bolonha tudo isto me parece evidente. E disso o Professor Ferreira Machado da Faculdade de Economia da Universidade de Lisboa deu um bom exemplo na televisão ao considerar que um curso superior são apenas formações genéricas, competências genéricas e que o problema do desemprego está nas nossas próprias mãos e não nas de qualquer um outro, afirmando ainda que há escolas e cursos onde a questão do emprego e da precariedade também não se levanta. Sem querer aqui fazer polémica com o senhor Professor, a ele que esteve na América, sugiro-lhe que antes de afirmar o que afirmou poderia ler a obra de Robert Reich, a de um economista, que foi ministro do Trabalho de Clinton e que esqueça o que entretanto o que aprendeu com Margareth Thatcher, porque nos tempos de crise que correm, dizer que o desemprego é problema de cada um e não da comunidade onde se está inserido, não abona, garantidamente, a favor de nenhuma Faculdade onde se ensine a ver a sociedade desta perspectiva, a sua, senhor Professor. É evidente que a partir de agora, dos cursos de generalidades que com Mariano Gago se implantaram e com ele se certificaram iremos ter um problema ainda muito maior, a da formação de não empregáveis sequer, e aí, a dimensão do problema atingirá o valor da catástrofe. E urgente a resposta antecipada que é resolver o problema antes de ele sequer se vir a tornar explosivo, dado que está apenas na sua infância, o problema das generalidades do ensino superior.
Mas nada disto se resolve a chamar parva à geração que criámos. Depois de todas estas nossas falhas, das nossas incapacidades, das nossas faltas de exigência como moeda de troca da nossa comodidade, para além das que deles são próprias, ainda lhes chamarmos parvos, é mesmo muita parvoíce junta . Se alguém merece esse adjectivo e ao quadrado somos todos nós que deixámos criar uma sociedade bloqueada e a seguir acusamos aqueles que directamente dela são vítimas de parvos . Parvos ao quadrado seremos então todos nós que directa ou indirectamente elegemos os governos que nos levaram a esta situação, deixemo-nos de ilusões, de malabarismos.
O momento é difícil, exigem-se grelhas de leitura para esta triste realidade , é o que procuraremos fazer nestes próximos dias no Estrolábio , é o mínimo a fazer por uma geração que dadas as nossas muitas falhas havidas para com eles, os devemos obrigatoriamente procurar ajudar e se calhar, perante eles, alguma humildade apresentar.
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Apresentação de Júlio Marques Mota
Com este texto apresentamos mais um documento de economistas de raiz tecnocrata, documento sério à procura de soluções mas dentro do sistema . Documento que nada tem a ver com os silêncios sepulcrais da Comissão Europeia sobre o drama que a Europa atravessa. Referimo-nos a este documento como de profunda raíz tecnocrata, porque procura a solução dentro do sistema e nesta solução vejamos a resposta que dá para o delicado problema da competitividade que urgentemente no quadro da crise terá que ser resolvido:
“Depois de um procedimento de reescalonamento da sua dívida, como é que um Estado sobreendividado pode reencontrar a sua competitividade? É uma importante questão. Dado que a pertença à zona euro não permite desvalorizações nominais, a competitividade internacional dos Estados atingidos pode ser restaurada através de reformas estruturais. O FMI tem uma vasta experiência neste domínio e pode fornecer uma assistência técnica e administrativa, por exemplo no domínio da administração fiscal. No entanto, as reacções derivadas da recessão provocada pelo ajustamento estrutural não serão completamente evitáveis.”
Aos leitores do Estrolábio desejo boa leitura dos três documentos.
Júlio Marques Mota
Zona Euro
Manifesto de economistas alemães sobre a crise da dívida soberana na Europa
Andreas Haufler Bernd Lucke Monika Merz Wolfram F Richter
Em Maio de 2010, a UE criou um fundo de salvação, de uma duração de três anos, para os membros sobreendividados da zona euro. Alguns propõem hoje aumentar as reservas deste fundo e dar-lhe um carácter permanente para ajudar os países confrontados com crises de liquidez. Infelizmente, procura-se em vão uma justificação convincente para estas duas propostas. Não é evidente que os riscos já presentes foram avaliados realisticamente e que disposições adequadas estiveram previstas no caso o fundo de salvamento falhar.
O volume actual do fundo de salvamento, com o rating AAA, excede em quase 80% as necessidades de refinanciamento acumuladas da Irlanda, Portugal e a Espanha até em 2013. Nestas condições vê-se mal porque seria necessário aumentar as reservas deste fundo. Para apoiar os Estados sujeitos a crises de liquidez, o fundo de salvamento não é necessário porque eles estão em condições de se entenderem com os seus credores para reestruturar a sua dívida pública sem necessariamente estar a alterar o valor actualizado. Se em contrapartida os seus credores não estiverem convencidos que estão a enfrentar uma simples rarefacção de liquidez, então estes Estados devem ser considerados como insolventes. Se a UE garantisse a solvabilidade de Estados realmente insolventes, isto teria consequências fortemente negativas.
Tempos de crise ou tempos de geração parva?
Júlio Marques Mota
Dizem-nos agora que estamos perante uma geração parva! Naturalmente, se agora são parvos então fomos nós que os ensinámos, e como não se nasce parvo, faz-se parvo, então se o são, são pois o produto do nosso trabalho. Se assim é, foi então isso o que a sociedade fez deles, se assim é, foi portanto o que toda uma máquina de ensino e treze a dezasseis anos de escola deles fizeram, mas se assim é, tanto dinheiro gasto e tanta gente ocupada para produzir parvos, então é porque há muitos mais parvos, todos aqueles que conscientemente isto fizeram. Felizmente a juventude não é assim, nem nunca poderia ser e são precisos muitos anos para fazer de um jovem um parvo, convenhamos.
Estamos perante gerações sujeitas a terríveis situações de precariedade, isso sim, impostas por uma sociedade que não foram eles que a fizeram, determinados por um modelo económico e social que não foram eles que o conceberam, manietados por um sistema político onde não são eles que a política determinam, silenciados por uma imprensa que é incapaz de denunciar as condições contratuais que a muita gente obrigam a aceitar, violentados pela ausência de condições para um futuro poderem criar e que era nossa obrigação dever-lhes dar. Depois disso, os mecanismos de concorrência e de desregulação que desprotege cada um de nós impõe a quem procura emprego o salve-se quem puder. Por aí, diremos que o sistema neoliberal, definido aqui como um conjunto de discursos, de práticas e de dispositivos que determinam um novo modo de governação dos homens sob o princípio agora mundial da concorrência exacerbada, aponta uma a duas armas a cada um destes precários, sejam jovens ou não, porque a precariedade a todos atinge: uma ao coração procurando impedi-los de sentir, impondo-lhes o salve-se quem puder, e uma outra dirigida à razão, procurando impor condições para que estes sejam impedidos de alguma vez virem a ser capazes de verdadeiramente pensar e, por aí, a tudo se poderem depois sujeitar. Os exemplos disponíveis no mercado de trabalho são disso um claro exemplo, não os queiramos ignorar.
Com a reforma do ensino superior promovida por este governo, mas podia ser outro que o resultado seria o mesmo, com a reforma dita de Bolonha tudo isto me parece evidente. E disso o Professor Ferreira Machado Director da Faculdade de Economia da Universidade de Lisboa deu um bom exemplo na televisão ao considerar que um curso superior são apenas formações genéricas, competências genéricas e que o problema do desemprego está nas mãos de cada um de nós e não nas de qualquer um outro, afirmando ainda que há escolas e cursos onde a questão do emprego e da precariedade também não se levanta. Sem querer aqui fazer polémica com o senhor Professor, a ele que esteve na América, sugiro-lhe que antes de afirmar o que afirmou poderia ler a obra de Robert Reich, que foi ministro do Trabalho de Clinton, e que na linha desta obra e deste autor de renome mundial se esqueça do que entretanto aprendeu com Margareth Thatcher, porque nos tempos de crise que correm, dizer que o desemprego é problema de cada um e não da comunidade onde se está inserido, não abona, garantidamente, a favor de nenhuma Faculdade onde se ensine a ver a sociedade desta perspectiva, a dele, a deste senhor Professor. É evidente que a partir de agora, dos cursos de generalidades que com Mariano Gago se implantaram e com ele também se certificaram iremos ter um problema adicional com os novos licenciados a chegar agora ao mercado de trabalho, um problema ainda muito maior, as consequências da formação pelas Universidades de não empregáveis sequer. E este problema não pode ser escondida na multiplicidade de formações adicionais em que alunos, famílias e Universidades se vão desgastar em tempo, em dinheiro, em recursos, problema cuja dimensão poder atingir então a dimensão de catástrofe. E urgente a resposta antecipada a este problema antes de ele sequer se vir a tornar explosivo, dado que está apenas na sua infância, é urgente contrariar definitivamente o problema do ensino superior como ensino de generalidades e conferir-lhe as competências, os skills, os saberes, os conhecimentos, os méritos, que lhes devem estar associados. Restitua-se à Universidade a sua missão.
Mas nada disto se resolve a chamar parva à geração que criámos. Depois de todas estas nossas falhas, das nossas incapacidades, das nossas faltas de exigência como moeda de troca da nossa comodidade, para além das que deles são próprias, chamar-lhes parvos, é mesmo muita parvoíce junta . Se alguém merece esse adjectivo e ao quadrado somos todos nós que deixámos criar uma sociedade bloqueada e a seguir acusamos aqueles que directamente dela são vítimas do que também não são: de parvos . Parvos ao quadrado seremos então todos nós que directa ou indirectamente elegemos os governos que nos levaram a esta situação, criaram o sistema de valores que a justifica, que a sustenta, que a mantém, que deles, precários extremos, faz a variável central de ajustamento à volatilidade imposta pela globalização à economia real e deixemo-nos de ilusões, de malabarismos, simplesmente.
O momento é difícil, exigem-se grelhas de leitura para esta triste realidade , é o que procuraremos fazer nestes próximos dias no Estrolábio , e isto é também o mínimo a fazer por uma geração que dadas as nossas muitas falhas havidas para com eles, os devemos obrigatoriamente procurar ajudar e taambém, perante eles, muita humildade apresentar.
(Continuação)
3) A desregulação e a maquilhagem das contas
Wall Street ajudou a disfarçar o défice que alimenta a crise na Europa
Por LOUISE STORY, LANDON THOMAS Jr. e NELSON D. SCHWARTZ
As tácticas de Wall Street são da mesma natureza das que geraram a crise do “subprime” na América, que levaram ao aprofundamento da crise financeira que abala a Grécia, pondo em causa o euro, ao ajudar os governos europeus a esconder os seus crescentes défices.
No momento em que as preocupações sobre a Grécia ressoam nos mercados mundiais, há registos e entrevistas que mostram que, com a ajuda de Wall Street, a Grécia se dedicou, ao longo de uma década, a tornear os limites europeus do défice. Um esquema criado pelo banco Goldman Sachs ajudou a esconder da supervisão orçamental de Bruxelas milhares de milhões de euros do défice.
Mesmo quando a crise se aproximava já do ponto crítico, os bancos ainda procuravam ajudar a Grécia a protelar o dia final do acerto de contas. Em Novembro - três meses antes de Atenas se ter tornado no epicentro do nervosismo financeiro global - uma equipa do banco Goldman Sachs chegou àquela velha cidade com uma proposta anunciada como muito moderna para governos em grandes dificuldades de pagar as suas dívidas, tal como relatado por duas das pessoas que participaram na reunião.
A equipa do banco, liderada pelo próprio Presidente do Goldman Sachs, Gary D. Cohn, apresentaram um esquema financeiro que permitiria remeter para um futuro longínquo o défice do sistema de saúde da Grécia, um esquema muito parecido com o que consistiu em levar os proprietários de casas a fazer uma segunda hipoteca para pagar dívidas correntes feitas com os cartões de crédito.
Este esquema já tinha funcionado antes. Em 2001, logo após a Grécia ter entrado para a União Monetária Europeia, o banco Goldman Sachs ajudou o governo grego a obter discretamente empréstimos de milhares de milhões de dólares, disseram pessoas ligadas a esta transacção. Este negócio, sem visibilidade pública porque foi tratado como transacção de divisas e não como empréstimo, ajudou a Grécia a cumprir as regras europeias relativas ao défice, ao mesmo tempo que continuava a gastar para além das suas posses.
Atenas não deu sequência a esta última proposta do banco Goldman Sachs, mas agora, vendo-se a Grécia a sufocar sob o peso da dívida e dado que os seus vizinhos mais ricos manifestam vontade em socorrê-la, as operações financeiras feitas na última década estão a levantar algumas questões sobre o papel que Wall Street desempenhou neste mais recente drama financeiro mundial.
Tal como na crise americana do “subprime” e da implosão da AIG (American International Group), os derivados financeiros desempenharam o seu papel no avolumar dos défices na Grécia. Instrumentos financeiros desenvolvidos pelo banco Goldman Sachs, pelo JPMorgan Chase e por uma série de outros bancos permitiram aos governantes disfarçarem empréstimos adicionais na Grécia, Itália e, possivelmente, noutros países.
Em dezenas de grandes operações financeiras montadas em vários países do continente europeu, os bancos adiantaram dinheiro em contrapartida de pagamentos futuros dos governos, permitindo deixar fora do balanço estes compromissos financeiros.
Os críticos dizem que tais operações, por não serem registadas como empréstimos, enganam os investidores e os reguladores quanto ao volume das responsabilidades financeiras assumidas por um país.
Algumas destas operações financeiras eram designadas com nomes de figuras da mitologia grega. Uma delas, por exemplo, foi designada Aeolos, o deus dos ventos.
A crise na Grécia coloca o maior desafio alguma vez feito à própria moeda comum europeia, o Euro, e ao objectivo de unidade económica do Continente. O país é demasiado grande para poder falir, como se diz nos meios financeiros. A Grécia deve a nível internacional 300 milhares de milhões de dólares, sendo os principais bancos os grandes credores desta dívida. Um eventual incumprimento da dívida teria efeitos de repercussão em todo o mundo.
Um porta-voz do Ministério das Finanças grego declarou que o governo tinha tido contactos com muitos desses bancos nos últimos meses, mas não se tinha comprometido com nenhuma das suas propostas. Todos os financiamentos da dívida “são conduzidos num esforço de transparência,” declarou. Os bancos Goldman Sachs e JPMorgan recusaram comentar.
Embora a acção manobradora de Wall Street na Europa tenha despertado pouco interesse na América, foi objecto de fortes críticas na Grécia e em jornais como o Der Spiegel na Alemanha.
“Os políticos querem é chutar a bola para a frente e, se um banqueiro lhes mostrar uma maneira de transferirem um problema do presente para o futuro, embarcam nisso,” diz Gikas A. Hardouvelis, economista, ex-funcionário governamental que colaborou recentemente na redacção de um relatório sobre as políticas e práticas contabilísticas na Grécia.
Wall Street não criou o problema do défice na Europa. Mas, os banqueiros permitiram que a Grécia e outros países pudessem obter empréstimos e gastar para além dos seus meios através de operações financeiras perfeitamente legais. Há poucas regras que regulem como é que os países podem obter os empréstimos de que precisam para financiar as suas despesas, tal como as despesas militares ou da saúde. O mercado da dívida soberana - o termo de Wall Street para os empréstimos feitos aos governos - é tão desregulado como vasto.
“Se um governo quer fazer batota, pode fazer batota,” diz Garry Schinasi, um veterano do serviço do Fundo Monetário Internacional de supervisão dos mercados de capitais que monitoriza a vulnerabilidade dos mercados de capitais internacionais.
Os bancos exploravam avidamente o que era, para eles, uma simbiose altamente lucrativa com governos gastadores.
Embora a Grécia não tenha posto em marcha a proposta do banco Goldman Sachs, de Novembro 2009, já tinha pago ao banco cerca de 300 milhões de dólares pelos serviços de montagem da operação financeira de 2001, de acordo com diversas pessoas da banca conhecedoras do negócio.
Tais derivados, que não são claramente documentados ou facilmente desvelados, aumentam a incerteza quanto à profundidade dos problemas da Grécia e quanto a que outros países poderiam ter usado este tipo de contabilidade fora do balanço.
A maré de medo está agora a estender-se a outros países com dificuldades económicas na periferia de Europa, tornando o crédito mais caro para países como a Itália, Espanha e Portugal.
Para conseguir todos os benefícios de unir a Europa através de uma moeda única, o nascimento do euro veio com um pecado original: países como a Itália e a Grécia entraram na união monetária com défices mais elevados do que era permitido pelo Tratado que criou esta moeda. Em vez de aumentarem impostos ou reduzirem despesas, estes governos, pelo contrário, reduziram artificialmente os seus défices com produtos derivados.
Em tempo de crise isto deveria ser uma boa notícia: o barril de petróleo que desceu para 32 dólares (23 euros) em Dezembro de 2008 acaba agora de ultrapassar os 60 dólares. É certo, o automobilista deveria ver o seu poder de compra prejudicado mas, em princípio, se o petróleo aumenta, não é porque a crise já ficou para trás de nós ? Que a China e os Estados Unidos, façam mentir as suas estatísticas que nada mais fazem do que reflectir o passado, e que se tenham posto a fazer funcionar as fábricas? Que os consumidores começaram a comprar? Que as empresas começaram a contratar?
É pena, não é nada disso. A procura está mal. Pela primeira vez desde 1945, o consumo mundial de electricidade deverá mesmo diminuir este ano. Em todos os portos do mundo, os petroleiros completamente cheios, quase até rachar, esperam mesmo que os preços subam ainda mais para entregar os seus milhões de toneladas das quais não sabem mais que fazer. Então, porque o preço do petróleo duplicou em tão poucos meses? Em grande parte porque, nas salas de mercado, os traders se põem a especular sobre o ouro negro. Como ao início do ano 2008 quando os preços das matérias primas tinham atingido níveis recorde, devido em grande parte à especulação.
Longe de ser anedótica, a evolução do preço do petróleo reflecte o estado de espírito dos meios financeiros. Ajudados pelos Estados, os bancos têm o sentimento de que, para elas, o pior da crise já passou. Tudo deve voltar a ser como dantes. Reconstituir as margens é mesmo um necessidade absoluta. E assumir, de novo, os riscos. Pouco importa que o G20 de Londres tenha considerado, em Abril, que “os principais falhas da regulação e dos controlos do sector financeiro desempenharam um papel essencial na crise”. Pouco importa que Jean-Pierre Jouyet, presidente da Autoridade dos mercados financeiros, tenha denunciado no Le Monde do 26 de Maio, o facto que “ uma parte muito substancial dos mercados financeiros, , não é, de facto , realmente controlada ou opera com toda a opacidade”.
Mais discretos que ontem mas, também, igualmente determinados, os operadores continuam com as suas práticas opacas. Exemplo: não se passa um mês sem que um banco ou uma Bolsa não anuncie “uma plataforma alternativa”, uma Bolsa de um novo tipo cujo princípio é trabalhar ao abrigo dos olhares. O nome em inglês é mais explícito: os Anglo-saxónicos falam “de associações no escuro, dark pools”. Tudo está dito. Gostou de subprimes, de Crédito Default Swaps e outros produtos titularisados nos quais, com o vosso conhecimento, o vosso banqueiro vos colocou uma parte das vossas economias? Amanhã, irá adorar Xetra Midpoint, Smartpool, Chi-X-Delta et NeuroDark.
Para além da opacidade, a ambição é outro factor que desencadeia a crise. Aí também, tudo muda para que nada mude. É verdade, a parte variável das remunerações tem-se reduzido ligeiramente mas nos Estados Unidos, a parte fixa, esta, vai aumentar de 50% a 100%, de acordo com os bancos. Como o explicou no jornal Les Echos em 25 de Maio, Kenneth Lewis, Director Geral de Bank of América, um dos mais grandes bancos do país que deve a sua salvação do estado de falência aos 45 mil milhões de dólares injectados pelo Estado, o seu objectivo é o de reembolsar o mais rapidamente possível esta ajuda financeira do Estado.
Não somente porque o banco paga juros, mas sobretudo porque “em seguida poderemos outra vez remunerar normalmente os quadros dirigentes do banco e todos aquele que geram o volume de negócios”. Qual será a sua primeira decisão depois de ter reembolsado o Tesouro? “Reavaliar o nosso sistema de remunerações e restabelecer os bónus.”
Por muito chocante que isto possa parecer para a quase totalidade da população mundial, Kenneth Lewis diz em voz alta o que os seus colegas pensam em voz baixa . Ganhar milhões de dólares ou euros, trabalhando na finança, é “normal”. Nenhuma questão, nenhuma cedência a fazer, quanto a isso.
Como é que se chegou aqui? Uma parte da resposta lê-se num pequeno ensaio apaixonante, ao mesmo tempo filosófico e económico, que acaba de publicar Charles-Henri Filippi. L’Argent sans maitre” (éd. Descartes e Co, 96 pg.), este antigo colaborador de Laurent Fabius, que esteve até muito recentemente à frente da sucursal francesa de HSBC, explica como, ao longo dos séculos, o dinheiro, que era um meio de emancipação, se tornou uma religião. Sobretudo, demonstra como é que a ambição , “estimulante individual”, se transformou, ela, num verdadeiro “sistema de governança” e “o fundamento institucionalizado de um enriquecimento sem causa real e sem qualquer limite sério ”.
Estamos num momento charneira da crise. As medidas de urgência (o apoio financeiro de urgência para a recuperação dos bancos, os planos de relançamento da economia) foram tomados. Falta o essencial: restabelecer uma confiança duradoura nos aforradores. Em Londres, o G20 fixou algumas linhas directoras, mas nem regulou o desequilíbrio essencial da finança mundial (entre a China e os Estados Unidos) nem tomou nenhuma medida vinculativa para regular os mercados financeiros .
Entretanto, os Europeus dividem-se sobre esta questão e, de momento, ninguém pensa verdadeiramente aumentar substancialmente a taxa marginal de imposição fiscal sobre o rendimento, única medida susceptível de criar uma espécie de rendimento máximo. Em toda a lógica, os que têm o poder de se enriquecer fazem-no, de novo sem ficar à espera. Com o risco de precipitar a crise seguinte.
Frederic Lemaitre, La prochaine crise économique a déjà commencé, Le Monde, 29 de Maio de 2009.
Este texto é um excerto da "palestra inaugural" que Jean-Claude Milner proferiu segunda-feira, 20 Julho, em Montpellier, na abertura dos Encontros de Petrarca, organizados pela France Culture e o jornal Le Monde, no quadro do Festival de Radio France.
A observar sem paixão o capitalismo financeiro, mede-se a inutilidade das condenações morais. Para que este tenha imposto o seu domínio durante quase um quarto de século, é porque correspondeu, e em muito, a alguma necessidade objectiva. O que é que correu mal durante os últimos trinta anos, de onde acabámos de sair?
Júlio Marques Mota
Três coisas, sem precedentes na história do capitalismo. Em primeiro lugar, o mercado tornou-se verdadeiramente global, por outras palavras, ilimitado; uma vez que o antigo bloco de Leste e a China adoptaram as suas regras, este estendeu-se a todos os territórios e, nestes territórios, nada nem ninguém escapou ao seu domínio. Em segundo lugar, neste momento de uma globalização extrema, as nações herdeiras do capitalismo clássico terão perdido definitivamente o controlo directo ou indirecto dos recursos energéticos. O petróleo britânico suaviza um pouco este quadro, mas não o altera. Em terceiro lugar, um recurso natural chamou bem à atenção.
Através das técnicas de terror ou de necessidade, este pode ser mesmo muito barato; é renovável e é extremamente produtivo. Refiro-me à força de trabalho. Este é o principal recurso natural de que a China dispõe e ela explora-o intensivamente, sem problemas de consciência.
Resultado: as nações herdeiras viram desaparecer as suas vantagens, os seus lucros excessivos passaram para as mãos dos recém-chegados, alguns dos quais (a Rússia, a China, a Índia) ainda se atrevem a anunciar pretensões ao poder militar. Desde o tempo do ouro espanhol, o fluxo de dinheiro nunca tinha aumentado tão rapidamente e em tais proporções, mas estes fluxos desviam-se dos antigos santuários.
Uma invenção permitiu evitar o perigo: o novo capitalismo financeiro. Este concentra-se basicamente, em Wall Street e na City. São os lugares mais clássicos do capitalismo mais clássico. Dos lucros excessivos obtidos pelos proprietários de recursos naturais, uma parte investe-se em despesas de equipamento ou de puro prestígio; o resto volta para os antigos países da finança. Os lucros excessivos, uma vez aplicados, geram novos lucros excessivos; estes últimos são de novo aplicados, reinjectados, na máquina para novos lucros excessivos. Entre Nova Iorque, Londres e o Velho Continente, o lago Atlântico Norte torna-se no mare nostrum da riqueza. Roma está sempre em Roma.
Desde então, uma ilusão necessariamente se impõe como quase inevitável. Uma aplicação financeira traduz-se sempre numa transferência de dinheiro; se o investimento é benéfico, o movimento parece em si mesmo gerador de lucro. Desta ilusão, tira-se uma conclusão ao mesmo tempo perfeitamente lógica e perfeitamente ilusória, ela também: uma vez que o deslocamento do valor cria por si só valor, é então suficiente multiplicar as deslocações de dinheiro. Quanto mais sinuoso for o percurso de cada produto financeiro mais os lucros crescerão. Eles crescem, na realidade, a cada passo, a cada movimento. Labirintos e rizomas produzem, por si mesmos, um ouro sempre a jorrar. Os modelos matemáticos utilizados pelos operadores financeiros servem para os construir.
O dispositivo explodiu. Isto não significa que o problema que devia resolver tenha deixado de existir. Os grandes e pequenos barões do mare nostrum estão preocupados embora escondam essa preocupação. Alguns procuram novas soluções, outros pretendem reparar o que pode ser feito. Reduzir o consumo de energia, reduzir o custo da força de trabalho, consolidar os bancos, condenar a ganância, dialogar para nos embalarem, etc. As formas para o fazer são muitas; fazem pensar que há desacordo entre eles, mas deixam-se facilmente envaidecer. Vislumbra-se desde já que, no fim de contas, tudo será concluído com um acordo de conveniência e pode-se igualmente esperar que não passará por massacres, como aconteceu durante 10 anos após 1929.
Mas o reino do capitalismo financeiro deixou marcas profundas. Que este se restabeleça, intacto ou não, os seus efeitos vão bem para além da finança e da economia. Este tipo de capitalismo organizou uma visão do mundo, e é contra o que dele resta que nós nos confrontamos, sob a forma de lições a aprender. Primeira lição: interrogamo-nos sobre as causas da crise. Mas, no fundo, pouco importam os detalhes. Conhecemos antecipadamente a conclusão; invocar-se-á uma combinação de factores que os peritos consideravam altamente improváveis. Ora, é exactamente aqui que está o centro da questão. Chegamos assim a uma das principais características da gestão moderna; ser perito, consiste em determinar pelo cálculo uma escala indo do mais provável ao mais improvável. Daqui se segue, consequentemente, o conselho dado aos decisores: “não dêem atenção ao mais improvável”. Este conselho foi geralmente aceite e executado. Para o pior, porque este conduziu necessariamente à catástrofe. É que a sociedade moderna vive sob o regime do ilimitado; ora, nos entrecruzamentos ilimitados de séries ilimitadas, o mais improvável acontece obrigatoriamente e, geralmente, de forma muito rápida. Desconfiar da amostragem estatística deverá ser o primeiro mandamento em política. Não me parece que os homens políticos disso estejam conscientes.
Segunda lição: o reinado do capitalismo financeiro confirmou a emergência material de não importa quem. Qualquer pessoa pode tornar-se rica fazendo seja o que for e não são só os operadores na Bolsa que acreditam nisso. Para além do enriquecimento, todo o pensamento, em todos os seus aspectos, mergulhou em não importa em quê desde que indiferenciado. A estatística propôs a matematização. Alguns doutrinários disso fizeram um princípio de ética política. A democracia, proclamam eles, é quem não importa quem decide sobre não importa o quê. Substitua a palavra "decidir" por um outro verbo de sua escolha: "descarregar", "mostrar", "proibir", "ajudar" e ter-se-ão obtido os elementos do consenso reinante. Este “não importa quem” político ou social não é senão o “ não importa quem” do capitalismo financeiro. Os exaltados do participativo fariam bem em pensar nisso; eles apenas sublimam as mais baixas ilusões do mercado. Que eles tenham convencido a maior parte das pessoas honestas para partilhar a sua dependência é uma realidade e é a sua mais grave falha.
Terceira lição: fala-se de regulação. Seja, mas surge uma pergunta: quem estabelece as regras? O capitalismo financeiro reitera a sua resposta: não importa quem. Porque o capitalismo financeiro não existe sem regras: pelo contrário, está cheio delas. Qualquer astuto banqueiro poderia produzi-las à sua vontade. Do mesmo modo, o neodemocrata, perigoso na sua ordem tal como o neoconservador, aceita todas as regras, desde que o seu autor seja no sentido estrito não importa quem. Houve uma idade trágica na Grécia; terá havido, de facto, uma idade da bolsa da sociedade moderna, e que coincide com o que Foucault chamou a sociedade de controlo. Ilimitada multiplicação das regras, ilimitada multiplicação de fontes de regras, as liberdades não sobrevivem a isso. Nós temo-lo suficientemente sentido.
A crise financeira arrancou o véu que cobria uma crise infinitamente muito mais profunda. Se a razão prevalecesse, ninguém deveria continuar a acreditar nos contos de fadas. Não é qualquer regra que é equivalente a qualquer outra; não importa quem não tem legitimidade para as fazer. Isto produz a clássica pergunta: quais são as fontes possíveis das regras e de que regras? Os povos, a representação nacional, os parceiros sociais?
Diante do desastre da sociedade de não importa quem, uma certeza se impõe: mais vale que as fontes sejam pouco numerosas e claramente definidas. Em suma, mais valem as instituições. Nacionais, supranacionais, internacionais, as circunstâncias decidirão. Quer se trate do mercado ou da opinião pública ou da sociedade ou da política, não existe mão invisível.
Jean-Claude Milner, « Après la crise, quelle(s) revolution(s) », Le Monde, 14.07.09
Uma pequena compilação de textos, de Michel Rocard, Os europeus votaram para que a crise continue, de Robert Castels (já publicado há dias mas que, pela sua importância, repetimos), Trabalhar mais para ganhar o quê, e de Jean-Claude Millner, Depois da crise que revolução, que revoluções ?, sobre o papel do trabalho e sobre os direitos do trabalhador nas sociedades neoliberais. Chamo a atenção para a posição exposta no texto de Milner, o texto final desta pequena série de três artigos :
(…)um recurso natural chamou bem à atenção. Através das técnicas de terror ou de necessidade, este pode ser mesmo muito barato; é renovável e é extremamente produtivo. Refiro-me à força de trabalho. Este é o principal recurso natural de que a China dispõe e ela explora-o intensivamente, sem problemas de consciência.
Do outro lado do sistema, diz-nos Milner :
Desde então, uma ilusão necessariamente se impõe como quase inevitável. Uma aplicação financeira traduz-se sempre numa transferência de dinheiro; se o investimento é benéfico, o movimento parece em si mesmo gerador de lucro. Desta ilusão, tira-se uma conclusão ao mesmo tempo perfeitamente lógica e perfeitamente ilusória, ela também: uma vez que o deslocamento do valor cria por si só valor, é então suficiente multiplicar as deslocações de dinheiro. Quanto mais sinuoso for o percurso de cada produto financeiro mais os lucros crescerão. Eles crescem, na realidade, a cada passo, a cada movimento. Labirintos e rizomas produzem, por si mesmos, um ouro sempre a jorrar. Os modelos matemáticos utilizados pelos operadores financeiros servem para os construir.
Técnicas de terror, na China, técnicas da necessidade e da precariedade na Europa, como se tem estado a ver na Itália, na Espanha, algures por essa Europa neoliberal fora ou como se viu ainda hoje, em Portugal. A esta situação diz-se, na China, que se trata de um capitalismo de Estado de características chinesas, de acordo com o líder da Nova Esquerda, Wang Hui, aqui os neoliberais chamam-lhe ou chamavam-lhe ditadura de Estado, e a esta mesma situação, no Ocidente, em que claramente os resultados são os mesmos sobre a força de trabalho e sobre a multiplicação “dos pães” para o capital, para o caso da Itália os intelectuais italianos chamam-lhe “equivalente funcional” com o fascismo, e por cá e para cá, como se pode chamar? Deixo a questão em aberto e responda quem puder ou souber.
Stéphane Hessel dá-nos, sobre esta matéria, uma sugestão: “os responsáveis políticos, económicos, intelectuais e o conjunto da sociedade não podem demitir-se nem se deixar impressionar pela actual ditadura internacional dos mercados financeiros que ameaçam a paz e a democracia.” As instituições regionais e internacionais, assim como os governos, temo-lo visto e muito, têm-se submetido a essa ditadura, mais ainda , têm-se mostrado e bem como sendo o seu braço legal, dando ou impondo aquelas aos quadros legislativos nacionais uma tipologia no plano político que ainda não tem nome mas que claramente se afasta do que entendemos por democracia real e que de democracia já está a ter muito pouco. Face à demissão dos Estados, ou melhor face à sua subordinação à ditadura dos mercados financeiros cremos que cabe a todos nós, a sociedade civil, ainda na linha proposta por Hessel, um dos redactores da Declaração Universal dos Direitos do Homem, agarrar o sentido da história, agarrar o sentido dos seus desafios na sua marcha para a liberdade do homem, questão hoje tanto mais séria quanto a ameaça da barbárie fascista, ainda hoje, “ não desapareceu completamente”.
Júlio Marques Mota.
Os europeus votaram para que a crise continue
Há algo de surpreendente no actual debate sobre a situação económica. Todo o mundo admite que há crise. O debate incide apenas sobre o problema de se saber se já se atingiu o fundo e assenta depois em torno do provável momento de uma eventual retoma, no Outono ou em 2010. Afinal, por que não? O espantoso é o conteúdo: estamos perante prognósticos alternativos de peritos sobre os períodos temporais mas quase nenhuma informação factual para se ter uma ideia sobre a questão de se procurar saber se sim ou não estamos a sair da crise
Esta constatação tem algumas excepções no campo das finanças e da banca. Os factos são claros: os bancos dominantes pouco a pouco tem-se restabelecido, deixou de haver mais receios de falências neste importante sector, a transmissão de falências por efeito de contagio parece estar ultrapassada segundo a opinião geral dos considerados peritos. A confiança interbancária está pois em vias de restabelecimento lento, o que é, naturalmente, uma das condições para a recuperação.
O acordo também parece estar adquirido sobre a razão de fundo para este resultado positivo. As autoridades públicas, ao contrário da crise de 1929-1932 em que a sua estupidez cumulativa tudo complicou, têm agido com rapidez, convergência intelectual e considerável poder. Se o contribuinte não vier a pagar todo esse esforço, ainda é ele que, na sua infinita bondade, forneceu a garantia e, eventualmente, assumiu uma parte significativa dos encargos. Não é nada evidente que esta questão coloque à profissão bancária um problema ético de considerável dimensão.
A impressão do fim das tensões e do reiniciar parcial da actividade é tão clara neste sector do que a profissão bancária, em toda a parte, iniciou campanhas activas para evitar os controlos, a regulação, e manter a opção de pagar aos sua gestores e aos seus operadores sobre títulos, os traders, as suas habituais remunerações extravagantes. A atmosfera estranha de saída da crise, mantida conjuntamente pelos governos, banqueiros e pela imprensa, contribuíram grandemente para minimizar a importância dos problemas.
Assim, a City, a praça financeira londrina, contribuiu para uma ofensiva, nestas últimas semanas, com a finalidade de desestabilizar Gordon Brown, o Primeiro-Ministro britânico culpado de querer muita ordem no sistema. O Presidente Barack Obama está claramente em luta contra os seus banqueiros e senadores sobre o mesmo assunto. O debate é menos veemente em França e na Alemanha, mas é o mesmo.
A precaridade do emprego
Parece que a tendência geral é para um - leve?- colocar à distância os paraísos fiscais, para os discursos simbólicos sobre as remunerações, e para o status quo, para a manutenção da situação no que diz respeito aos instrumentos derivados. Se isso finalmente acontecer, ter-se-á mantido o sistema, preservando simultaneamente os seus factores de forte instabilidade.
O detonador financeiro poderá explodir uma vez mais, dentro de alguns anos. Afinal, desde há vinte anos que o mundo tem estado a enfrentar uma grave crise financeira mais ou menos em cada cinco anos... A partir disto, tentar-se reduzir o volume insensato de actividade financeira quando comparado com o nível de produção, é tentar impedir a ganância colectiva que faz derivar o essencial desta profissão para a imoralidade, vai apenas um passo que não se quer dar. E, depois, tudo recomeça de novo.
Mas não é claro que o pior esteja aqui. As economias dos países desenvolvidos estão quase todas em recessão neste momento. Mais do que uma recessão, que pode ser curta, é a situação do desemprego que justifica o uso generalizado da palavra crise. Mas nesta área, a actual taxa de aumento do desemprego é assustadora - a França espera ultrapassar os 10% num ano, os Estados Unidos os 8%, e é quase o duplicar do desemprego em três anos - e as perspectivas são muito preocupantes. Ainda neste domínio, o do enfraquecimento do consumo, o principal componente é menos o desemprego do que a precariedade do trabalho. Neste contexto, todas as economias desenvolvidas atingiram desde há mais de quinze anos percentagens de trabalhadores precários entre os 15% e os 20%. Os trabalhadores precários consumem tão pouco quanto lhes for possível. Em toda a parte, a recente crise, veio agravar ainda mais o seu número.
Mas, curiosamente, as estatísticas oficiais e os governos são muito discretos em relação a este ponto. Acompanha-se mal a sua evolução. Toda a gente sabe que, no entanto, na América do Norte, na Europa e no Japão, mais de um quarto da população está numa situação precária, desempregados ou pobres. Um quarto: 70 milhões de pessoas na Europa, 40 a 50 milhões nos Estados Unidos, talvez trinta no Japão é obviamente enorme para o dinamismo do consumo.
De facto, em trinta anos, de forma lenta, a parte dos rendimentos salariais e de protecção social nos respectivos PIB diminuíram entre 7% a 10%. Este indicador é contestado devido à baixa visibilidade do período de referência e às diferenças no método de cálculo aqui e ali. Mas a massa de desempregados, trabalhadores eventuais e os pobres, são estatisticamente encontrados, e esta reflecte uma série redução da velocidade de crescimento e do consumo.
Compreende-se assim melhor que, se o capitalismo desenvolvido teve em toda a tríade (América do Norte, União Europeia e Japão) um crescimento económico médio de 4,5% a 5% entre 1945 e 1970, hoje, antes da crise, tem tido muita dificuldade em tentar alcançar os 2,5% a 3% de crescimento, sem verdadeiramente o conseguir. Na medida em que o indicador da crise é do mercado de trabalho, a crise é, sobretudo, isto. Esta situação reflecte o facto de o detonador financeiro (aumento de preços de matérias-primas relacionadas com os produtos derivados, depois as subprimes, depois a titularização parcialmente fraudulenta e a cadeia de falências) ter atingido economias em situação de anemica, sem capacidade de resistência. Desta situação ninguém fala e ninguém mostra interesse em dar-lhe resposta. Mas o fundamental da crise é isto.
Sair desta situação não é fácil. Relançar exclusivamente o consumo não tem sentido, pois importar-se-ia mais, sobretudo, da China e da Índia. É necessariamente pelo investimento que o ciclo virtuoso tem de ser reiniciado, principalmente através do investimento em energias renováveis, tecnologias e produtos biológicos. E é este arranque que pode, a seguir, conduzir ao aumento do poder de compra e do consumo.
Ora, o investimento na indústria, serviços, e até mesmo na agricultura e no sector agro-alimentar, é severamente prejudicado por duas razões. Em primeiro lugar, todas as grandes empresas no mundo desenvolvido viram num ou em dois anos os activos financeiros do seu balanço perderem uma boa metade do seu valor ; a redução do valor dos activos no balanço diminui evidentemente as oportunidades de investimento. Em segundo lugar, a recuperação de relativa fragilidade do sector bancário é também claramente acompanhada de um drástico agravamento das condições de crédito. Obrigam-se a conceder crédito com muito mais cautela. Uma "recuperação económica" é pouco provável no curto e a médio prazo, por ausência dos factores que a esta são necessários. A saída da crise exige que, após o arranque através do investimento, que se encontre um mecanismo de ligação entre os salários e os ganhos de produtividade.
Nestas condições o prognóstico é de uma estabilização entre 5% e 10% abaixo do nível de produção anteriormente alcançado e, em seguida, por um crescimento quase nulo ou muito lento para os próximos três ou quatro anos.
Isto significa colocar em dificuldade a coesão social, significa governos fracos, significa o aumento do populismo. Se o detonador financeiro - uma vez que se está a querer preservar o sistema bancário, incluindo os seus factores de desequilíbrio – volta a explodir daqui a alguns anos, ele vai reencontrar as economias ainda mais fragilizadas, mais anémicas. Tem que haver preocupação com o que fazer, peço desculpa de não o saber esconder.
Em trinta anos, uma revolução no interior do capitalismo que foi feita e para o pior. A razão para esta grande mudança é simples: no mundo da banca, a avidez é desmedida, sem limites, uma orientação visceral, orientação para a procura do enriquecimento rápido, o que explica tanto a expansão vertiginosa dos produtos financeiros derivados como os inverosímeis níveis de remuneração como a tendência evidente para a vigarice e para a imoralidade bem patente nas subprimes e na titularização de créditos de cobrança difícil, de créditos mal parados.
Na economia real, é o endurecimento da pressão do “accionista”, praticamente inexistente até 1980 e, em seguida, organizada pelos fundos de pensões, de investimento e de arbitragem, depois reforçada pela tomada do poder ou pela formação de minorias de blocagem por todos estes fundos, em todas as grandes empresas ou quase. Quer-se ganho de capital, mesmo triturando a lógica empresarial. Todos se lembram da louca referência aos 15% de rentabilidade financeira exigida em certa altura por estes tipos de fundos.
O diagnóstico é claro: a classe média alta nos países desenvolvidos está em vias de renunciar à esperança de alcançar um bom nível de vida pelo procurando sim substitui-la pela esperança de fazer mais-valias rápida e maciçamente, em suma de enriquecer rapidamente. Este comportamento sociológico é incompatível com o bom funcionamento e, sobretudo, com a estabilidade do sistema. A social-democracia internacional explica desde há mais de meio século que os mercados não são de equilíbrio automático, que se dever regular a economia e a finança e lutar fiscalmente contra as desigualdades. Os factos, e esta crise, dão-lhe tragicamente razão. Ela acaba ainda agora de perder maciçamente as eleições europeias em todos os paises.
Votando por toda a parte pelos partidos conservadores, votando em toda a parte pelas forças que nos trouxeram a crise, os eleitores têm mostrado a sua preferência, o seu empenho, no modelo de capitalismo financeirizado, o capitalismo em que os mercados financeiros são dominantes. A esperança de ganhos na bolsa, da riqueza, tornou-se esmagadora. O resultado deixa pouco lugar para se esperar que haja um tratamento político sério da anemia económica actual. Quantas crises será necessário haver para que as pessoas se convençam? De toda a maneira, o mecanismo da sua repetição parece já estar desencadeado.
Michel Rocard, Les Européens ont voté pour que la crise continue, Peuples et gouvernements esquivent le fond du problème, Le Monde, 7 de Julho de 2009.
A SEGUIR: Trabalhar mais, para ganhar o quê? - por Robert Castel
Para lá da crise, pontos de vista de Max Dorra em que se sublinha que para sair da crise se exige que “Toda a gente, principalmente os intelectuais, tinham participado neste trabalho obscuro, obstinado, inflexível, de desbloquear o pensamento. O indispensável preliminar”. Desbloquear o pensamento é então este o caminho a fazer, o caminho por todos nós a termos de percorrer. Preliminar para a saída da crise.
Júlio Marques Mota
Nesse tempo - nas primeiras décadas do século XXI - o absurdo disputava-se contra a barbárie. Em França, nas escolas, as turmas de mais de trinta alunos tornavam o ensino quase impossível, excepto para um pequeno número de privilegiados. Os trabalhadores viviam sete anos a menos do que os executivos e, quando veio uma onda de calor no Verão, 15 000 velhos, entre os mais pobres, morreram porque ninguém estava lá para lhes dar de beber; isto foi rapidamente esquecido.
Poucos dias se passavam sem que não houvesse a informação de um suicídio entre os prisioneiros (e por vezes entre os seus supervisores) nas prisões superlotadas. Hospitais a funcionarem como empresas, e uma vez que tinham que ser "rentáveis", foram sujeitos a avaliações, classificações, cujo efeito perverso não se fez esperar: os "melhores" serviços foram aqueles em que a duração de estada era a mais curta, o que incitava a uma selecção de pacientes.
Ao mesmo tempo, os africanos viviam trinta anos a menos do que os europeus, 200 milhões de crianças em todo o mundo estavam a trabalhar como escravos, 6 milhões delas morrem anualmente de desnutrição. De tudo isto, muitas pessoas se indignavam, mas a maioria, certamente, por uma espécie de cegueira voluntária preferia - como os biólogos soviéticos que anteriormente tinham negado os dados da genética - viver na ignorância dos factos que os podiam perturbar.
No que diz respeito à "negação da realidade", é agora, como sabemos, uma questão frequentemente levantada nos exames nacionais do final do secundário : "comente as frases históricas proferidas pelo Ministro da Economia, das Finanças e do Emprego, Christine Lagarde, em 10 de Julho de 2007 na Assembleia Nacional: "Entre a igualdade de todos na linha de partida e os resultados de cada um à chegada, o trabalho faz do indivíduo o único responsável pelo seu próprio caminho (... ). Deixemos de opor os ricos aos pobres (...). A luta de classes, esta ideia já não tem nenhuma utilidade para compreender a nossa sociedade”.
As pessoas vivem assim numa espécie de anestesia sustentada pelas quatro horas gastas diariamente com os grandes media. Na televisão, em particular, "a grande arma absoluta ", disse Georges Pompidou. Está em todos os lugares, oferecendo - e não apenas aos solitários - um grupo imaginário, uma família à qual se pertenceria com a condição de respeitar as suas regras, o seu tom. Nos estúdios, um sorriso permanente é de rigor, o tempo da palavra é curto, envolvendo uma simplificação empobrecedora dos temas mais complexos.
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