Quarta-feira, 19 de Janeiro de 2011

X.L. Méndez Ferrin - Arraianos

 

Coordenação de Augusta Clara de Matos

Quem Conta Um Conto...

X.L. Méndez Ferrin  Meias Azuis

 

Levávamos os cavalos a passo travado. Ele, o criado de Xixín, sabia o sítio. Era uma cabana triste, com o crepúsculo a dar-lhe pela parte de trás. Situada acasa no meio dos pinheiros, parecia um animal derrubado. Na cumeeira brilhava uma águia de folheta. Reluzia a águia e, de longe, vinha o fragor do Arnoia rompendo por canais e cascatas indecisas. Nenhum cão ladrava. O caminho que nos trouxera passava junto da cabana. Era feito de pedras gran­des e antigas, aquele caminho. Pouco antes de chegar, o caminho demorava-se num lanço em que as pedras pareciam carris lavra­dos por eternidades de carro, e pisamos uma ponte altíssima, em que os nossos cavalos faziam soar ecos secos, toscos, estreitos, de mil anos.

 

Nada — dissera dias antes o criado de Xixín. Nada, que temos de ir às moças a um sítio que eu cá sei. Que são duas irmãs, ouvi dizer. Que são boas moças e de cabelo amarelo. Brancas, brancas — dizia o criado de Xixín, e ao pronunciar a palavra brancas abria a boca com desejo e gula e dentro brilhava um cuspo pecaminoso, como a espuma do mar.

 

O criado de Xixín era um tipo alegre. Tinha enfeitado com gui­zos de prata as patas do poldro que lhe confiara o amo. Conven­ceu-me e fomos.

 

Brilhava então um sol derradeiro, de Setembro. Lateral e dis­plicente, aquele solzinho iluminava a cabana e tornava-a simpá­tica. E assim chegámos, o criado de Xixín e mais eu, e pusemos pé em terra prendendo ele a cabeçada com um baraço e eu atando as rédeas nos ramos baixos de um pinheiro. Lembro-me que os cavalos, que eram amigos como éramos o criado de Xixín e eu, batiam com a cabeça um no outro.

A verdade é que têm fama de bruxas — dissera-me no dia ante­rior o criado de Xixín.

 

E eram órfãs. E viviam sós, aquelas raparigas a que nós íamos, por Tras da Chaira. Habitavam uma terra seca, montanhosa, fria, em que corria o corço e se moviam rebanhos de cabras, como nuvens soltas. Terra fria não dá pão. Por um corgo abaixo, atra­vessado pelo carreiro malhado do lobo, caía um caminho empe­drado em plácidos remansos. Depois estavam as casas da aldeia. Por fim, num sítio de pinheiros do país, figurava a casa delas, só. Parece que eram de alguma forma bruxas.

 

Entramos pela eira, o criado do Xixín e eu, fazendo soar cada qual sua espora, que levávamos firme, atada contra a polaina e a bota. Também fazia tlim a onça de ouro da minha corrente do reló­gio, prenda recente do papá — que me empurrava assim a subs­tituí-lo nos negócios de empréstimo e contrabando de vacas barrosãs.

 

Moças aqui, moças aqui — gritava o criado de Xixín, e eu ria às gargalhadas e a bater no portão verde. Veio um silêncio, e julgo que chiou a águia do telhado. Depois, em seguida, houve risos dentro, que era tudo escuro, ao entardecer. Risos de raparigas fres­cas, como nós éramos moços feitos, e acenderam-se um, depois dois archotes, e estes foram cravados nas paredes de pedra irre­gular. E o lume da lareira foi aumentado. Entrem, entrem — dis­seram as gargantas lindas. Sentem-se, sentem-se, diziam elas. E ainda veio uma e trouxe um candeeiro de carbureto e colocou-o em cima da masseira.

 

A luz azul dominou aquela cozinha de tecto, traves e paredes negras como o alcatrão. Vimo-las loiras, lavadas, claras, o cabelo longo, as tranças sobre o peito. Os lenços haviam sido postos para trás e cobriam-lhes apenas o pescoço, deixando livres as cabeças, ambas como capacetes de oiro.

 

Estavam arranjadas, com os aventais e as blusas limpas. Como se estivessem à nossa espera. E nem era dia de namorar. Se fosse quinta-feira (riu uma delas) haviam de ver os senhores a maravi­lha de moços à espera, no banco da eira, para conversarem con­nosco. Não nos tratavam por tu, se calhar por ambos os visitantes usarmos espora e, eu, corrente de ouro no colete. Mas, aos poucos, foram elas entregando-se, francas.

 

Haviam sido gémeas de um parto. Num instante, certa sombra silenciosa pousou num dos escanos junto da lareira. Gache, gache — enxotaram elas. E o gato negro lançou-nos um olhar de ouro velho antes de saltar e fugir pelos fundos do tanque de pedra. Dizia o criado de Xixín serem elas bruxas. Quase que não se diferen­ciavam, à parte que uma delas tinha uma mancha castanha no olho esquerdo. O gato havia-nos esfriado o lombo.

 

E assim foi passando a primeira hora da noite em plena escu­ridão. Os quatro, tocando-nos. Cada casalinho em seu escano, sen­tindo o lume aquecer-nos as partes. Eram meigas. Eram simpáti­cas e a cara cheirava-lhes a funcho e a tomilho, caras de rosa linda. E ríamos como crianças. Olha que boas moças fomos encontrar naqueles confins de além do Arnoia, em Tras da Chaira. Tínha­mos quase adormecido quando relincharam fora os cavalos e elas disseram, de repente muito sérias, que numa légua em volta da casa não entrava lobo nem javali. Há, então, outro silêncio no meio do qual rangeu algo entre as telhas, e teria de ser a águia da cumeei­ra. Procurei os olhos do criado de Xixín, e notei-lhes medo. Des­cansava a cara corada no peito da sua moça. Passou pela cozinha uma coisa dura, sem corpo nem cheiro, que nos meteu bom medo aos dois valentes namoradores.

 

O lume esmorece — murmurou uma das raparigas pressentindo talvez um certo laço entre nós. Foi a outra apanhar um braçado de caruma de um monte que ali estava, junto à pedra do lar. Aga­chou-se. Usava uma saia curta. O criado de Xixín e eu abrimos muito os olhos ao vermos o seu coxame. A moça usava meias azuis de lã, até lhe cobrirem os joelhos. Ainda curvou mais as costas e as nádegas subiram-lhe muito a beira do vestido. A carne, depois das meias, não era branca, como esperávamos cobiçosos. Era ene­grecida. Tinha crosta.

 

Badalhoca, carro de merda — berrou o criado de Xixín. Sem combinarmos nada, desatámos a rir. Dei um pontapé à rapariga, de tal modo que a atirei de cabeça para o monte da caruma. A irmã atirou-se a mim como uma gata-de-algália e arranhou-me uma face. Agarrei-a por um pulso e atirei com ela ao lume. Ergueu-se uma do meio das brasas e das cinzas e outra com a cabeça e o dengue6 espinhado de caruma seca que parecia um ouriço-cacheiro. Deitavam faíscas pelos olhos, as filhas do Inimigo. Berravam pala­vras que se enrolavam e disparavam em espiral, como fazem as cobras naja para atacar o indivíduo humano. Abriam os braços e imitavam o voar esquinado do morcego, ou talvez o dessa outra cobra com asas que vai pelo ar morrer para os lados da Babiló­nia. Nós tínhamos medo mas ríamo-nos delas às gargalhadas. Chamávamo-lhes merdosas, montes de esterco. Elas insultavam-nos com maldições, e abriam as pernas e levantavam as saias. A ambas víamos idênticas meias azuis e as coxas crestadas e o bicho peludo. Mesmo eu senti que me chegava ao nariz, daquelas paragens de cinta abaixo, um fedor húmido e denso.

 

Malditos sejais — disse uma baixinho e com os olhos quase fechados de raiva. Assim vos coma a noite — agourou a outra num guincho que prolongou o gato negro do alto da trave num miar surdo e duradouro.

 

Corremos aos cavalos e saímos dali a trote, soltando risadas até nos doer a barriga e a cintura. Deixámos atrás o pinhal e mete­mos pela vereda adiante para nossa casa, felizes e contentes, a gabar-nos do que ali deixáramos armado. Trapalhada como aquela nunca se tinha ouvido falar na minha aldeia, nem no lugar de Xixín, e naquela mesma noite havíamos de a contar bem contada a toda a gente do serão, pois claro, e havíamos de fazer rir casa­das e solteiras, e se calhasse ainda lhe iria valer a mais de quatro um beliscão ou uma luta ao contarmos como tínhamos abraçado as bruxas na cozinha delas.

 

E seriam mesmo? — perguntou de repente o criado de Xixín. O quê? Bruxas, bruxas. Encolhi os ombros e fechei-me num mutismo que enchia de temores estranhos, naquele mesmo instante, o baru­lho dos cascos dos cavalos a bater numa parte enlameada do cami­nho, caminho que depressa entrou nas bouças de Auguela, para cair em doces voltas pelos sítios, fundos de vidoeiros e frescura, de Ardeúva a Santa Maria de Rebordechao.

 


 

Aconteceu então que o mundo familiar e sabido por onde caval­gávamos estourou e desfez-se como uma bola de sabão. No cruzeiro das Sete Espadas vimos sair voando (negraz) a coruja-do-souto de cima da mesa dos defuntos, onde ela estava a matar um leirão que, mal ferido, ainda desatou a chiar por cima da ribeira para se ir perder entre carrascos. Vi num instante o resplendor ver­melho de Marte. Grande como eu nunca vira essa estrela das des­graças e da guerra — disse eu em voz alta. O criado de Xixín não me respondeu e apontou uma névoa espessa e suja que vinha con­tra nós, como um manto, e que já estava a ocupar tudo à volta, e a cruz de pedra, num suspiro, deixou-se de ver. Depressa o nevoei­ro nos ocultou a Lua, e também o planeta do sangue e da ira. Por ali — disse o criado de Xixín —, e seguimos um bocado pelo pavimento empedrado da calçada, para as nossas casas.

 

Perdemo-nos no caminho. Extraviámo-nos. Por touças impre­cisas, por tojeiras que ora sim ora não reconhecíamos ou julgá­vamos ser familiares, passávamos a carreiros em que os cavalos eriçavam as crinas e tremiam com as quatro patas fincadas em terra, como se receassem feras do monte.

 

Pensávamos, sem nos falarmos, que as irmãs eram bruxas e nos tinham desviado da rota. A mim soava-me nas orelhas a maldição que nos lançara a que tinha a mancha castanha no olho. Amaldi­çoados sejais e que vos coma a noite. Comia-nos a noite.

 

Em dada altura foi-se a névoa e caiu sobre nós um céu ponti­lhado de estrelas, entre as quais chamava a atenção uma grande, vermelha. Encontrávamo-nos numa gândara alongada e plana. O luar permitia-me consultar o relógio, que marcava as horas der­radeiras da noite. Longe, por detrás de uns píncaros coroados de pedras erguidas contra o céu de leite, talvez pedras sagradas dos antigos, vinha um potente resplendor. Não sabia qual era aquele sítio e deitámo-nos a chorar ao mesmo tempo, o criado de Xixín e eu. Aquela luz avermelhada era, sem dúvida, uma cidade, tal­vez de Portugal. Mas depressa voltou de novo a névoa a tapar o mundo em redor. E as nossas cavalarias, cansadas, desmaiavam e não queriam andar mais. Não queriam, mas chegados a não se sabe onde, voltaram a subir por uma vereda velha e, como conhe­cendo-a, estugaram o passo.

 

Aquele caminho era feito de pedras grandes e antigas, e demo­rou numa volta onde o chão mostrava, a uma nova luz que pene­trava o nevoeiro, marcas de rodas lavradas por eternidades de carro e logo depois pisámos uma ponte altíssima em que os nossos cava­los faziam ressoar ecoares secos, toscos, estreitos, de mil anos.

 

Veio o dia.

 

Abriu-se totalmente a névoa com o raiar do amanhecer. Para­ram por si os nossos cavalos e sentimos um calafrio na espinha, o criado de Xixín e eu, porque estávamos próximo de uma cabana triste, com o alvor dando-lhe pela parte da frente. Posta a casa no meio dos pinheiros, parecia um animal derrubado. Na cumeeira brilhava uma águia de folheta. Reluzia a águia e, de longe, vinha o fragor de um rio, inequivocamente já o Arnoia, destacando-se em caneiros e cascatas indecisas. Nenhum cão latia. O caminho que nos trouxera passava rente à cabana donde partira a maldição, o castigo de meias azuis.

 

6 Peça do trajo tradicional feminino galego: espécie de xaile de pano vermelho com veludo negro, com as pontas cruzadas no peito, atadas na cintura. (N. do T.)

 

(in Arraianos, Editorial Notícias)

 

publicado por Augusta Clara às 14:00

editado por Luis Moreira às 11:41
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Sábado, 8 de Janeiro de 2011

EVENTO DA LITERATURA MOÇAMBICANA - por Manuel Simões

Com este texto de Manuel Simões, reabrimos este dossiê evento, uma iniciativa lançada por Sílvio Castro. De lembrar que a tréplica de Carlos Loures a Sílvio Castro sobre as origens da Literatura Brasileira será apresentada nesta segunda fase.

A literatura moçambicana é essencialmente um fenómeno do século XX, se considerarmos que a primeira manifestação colectiva de carácter literário partiu do núcleo cultural da então “Casa dos Estudantes do Império”, criada em Lisboa, com a publicação de uma antologia poética, “Poesia em Moçambique”, em 1951. Antes desta data houve evidentemente tentativas, ainda que tímidas, de dar expressão literária ao real moçambicano e, nessa perspectiva, pode aludir-se a Campos de Oliveira, poeta de origem e vivência moçambicana (nascido na ilha de Moçambique em 1847), o qual, pelo menos com o poema “O Pescador de Moçambique” insere um discurso de protesto no espaço colonial e cuja motivação anda à volta da diferença racial :” Eu nasci em Moçambique,/ de pais humildes provim,/ a cor negra que eles tinham/ é a cor que tenho em mim”.

Este problema volta a aparecer nos escritos de princípio do século XX, sendo um bom exemplo Rui de Noronha, que colabora já nos anos 30 no jornal “O Brado Africano”, de Lourenço Marques, com alguns textos onde emerge a “dor de ser preto” ligada ao “sentimento de africanidade”, um traço distintivo que começou a aparecer, com alguma insistência, na produção indígena até ao emergir de Noémia de Sousa que, no dizer de Manuel Ferreira, “ultrapassa de uma e por todas as vezes, o precursor Rui de Noronha. É dela o poema “Sangue negro”, modelo de muitos discursos posteriores, e não só em Moçambique: “Ó minha África misteriosa, natural/ minha virgem violentada!/ Minha Mãe!”.

Também a publicação “Itinerário” (1941-1955) deu voz ao tema do negro num contexto social em conflito, o que conflui na tomada de consciência do intelectual dividido pelo sangue, pela cultura (sem esquecer os fenómenos típicos de aculturação) e por uma geografia afectiva que acabariam por modelar a consciência nacional e a própria luta de libertação contra os espinhos pungentes representados pelos mecanismos da colonização.

publicado por Carlos Loures às 11:00

editado por Luis Moreira às 01:45
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Sexta-feira, 7 de Janeiro de 2011

Stephen Vizinczey, autor de Verdade e Mentira na Literatura, um livro que eu li

 

João Machado

 

 

Stephen Vizinczey é húngaro. Nasceu em 1933. Começou a escrever muito novo, fazendo poesia, e escrevendo para o teatro. As suas três peças de teatro foram proibidas pelo regime comunista, embora a segunda, uma peça intitulada A Última Palavra, tenha recebido o prémio Attila József. Conta Vizinczey que durante os ensaios apareceu-lhe a polícia política, e confiscou tudo, cenários, roupas, etc. Na sequência da revolta de 1956, esmagada pela URSS, fugiu para o Ocidente.

 

Os seus conhecimentos de inglês eram quase nulos. Aplicou-se na aprendizagem de tal modo que, em pouco tempo, estava a ganhar a vida a escrever argumentos para filmes. Fundou uma revista, Exchange, e trabalhou na rádio. É de notar que, posteriormente, Vizinczey chegou a ser comparado a Conrad e a Nabukov.

 

Escreveu o seu primeiro romance, In Praise of Older Women, que foi publicado em 1965. Vizinczey teve de se desempregar para conseguir vender o livro, pois nenhum editor o tinha aceitado. O livro está traduzido em 21 línguas, e é reeditado regularmente. Foram feitas duas adaptações para o cinema.

 

Em 1968 saiu The Rules of Chaos, um livro classificado como filosófico, baseado num artigo que Vizinczey tinha escrito para The Spectator, indicando as razões porque achava que os EUA iam perder a guerra do Vietname. A propósito, leiam no blogue de Vizinczey (http://stephenvizinczey.blogspot.com) a análise que ele faz sobre a guerra no Afeganistão.

 

Outro romance, An Innocent Millionaire, saiu em 1983, conhecendo também um sucesso apreciável. Em 1986, saiu Truth and Lies in Literature, o livro que li agora (já lá vai um mês), numa tradução de Maria José Marques Figueiredo, edição da Estampa, de 1992. Devo dizer que achei notável. Agrupa vários trabalhos, já saídos na imprensa ou em revistas mais especializadas. Começa por, no prólogo, nos apresentar um texto de 1985, Os Dez Mandamentos de um Escritor, uma fórmula discutível, é certo, mas de leitura interessante. Depois vem uma parte inteiramente dedicada à literatura francesa, até Sartre e Malraux. Permitam-me que dê particular relevo aos escritos de Vizinczey sobre Stendhal, de que ele é um grande admirador (e este humilde estrolábio também). Acho que ele deixa bem claro a importância de Stendhal na literatura, assim como de Balzac. Mas é sobretudo o que ele escreve sobre Stendhal que merece o maior relevo.

 

A seguir debruça-se sobre a literatura alemã, também acho que com grande interesse. Permito-me chamar a vossa atenção para o que Vizinczey escreve sobre Kleist. A comparação que faz com Goethe é de bastante interesse. Depois vem uma parte do livro intitulada Sexo, Sociedade, Política, em que se ocupa de vários temas, analisa um livro de Margaret Mead, uma biografia de Mary Wollstonecraft, e mais livros, incluindo um sobre anarquistas, o Sexual Politics de Kate Millet, e remata com The Confessions of Nat Turner, de William Styron. Tem depois uma parte sobre escritores russos, incluindo Gogol, Tolstoi, Pasternak e Soljenitsyne. Na última parte, O que mais importa, aborda, sempre com muito interesse, Leonardo Da Vinci, Swift, o Dr. Johnson e Boswell, e remata com um ensaio intitulado precisamente Verdade e Mentira na Literatura, que vocês têm que ler e dar a vossa opinião. A propósito, digam-me onde posso encontrar o Contre Sainte-Beuve, do Proust. Leiam o Vizinczey. Dele, só li este livro. Se leram os outros, contem. Para além dos que acima referi, tem um chamado Wishes, sobre o qual não consegui qualquer referência.

 

O Stephen Vizinczey tem um site, http://stephenvizinczey.com.

publicado por João Machado às 16:00
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Quinta-feira, 6 de Janeiro de 2011

Cidade Maravilhosa – 3 – Sílvio Castro

(Continuação)

 

 

Retrato  ¾  de  um  jovem  professor  de  filosofia  na  “Cidade Maravilhosa”

Tudo começa concretamente antes do início verdadeiro. E começa em ritmo de valsa, no  grande baile de gala no Clube Municipal pela turma de bachareis da Faculdade de   Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal, do ano 1954. Impecável, mas quase tonto no meu magnífico smoking, danço em viravoltas com Nadyr, muito bela no seu vestido longo. Tenho grande receio de pisar na grande roda do vestido de gala de Nadyr, o que fatalmente acontece depois da meia-noite e de tantos rodopios.

 

Aquela era a festa pelo fim de uma atividade formativa, desejada desde sempre por mim, e que me ocupara quase completamente nos últimos quatro anos. Meu curso de Filosofia foi um decorrer de fortes descobertas. Principalmente nos três anos do bacharelado, quando me confrontei com o desconhecido desejado, guiado por professores de alta professionalidade e cultura. Entre eles, destaco o professor de História da Filosofia, Tarcísio Padilha, pouco mais velho do que o seu aluno, mas que já demonstrava a profundidade de saber e de interesses que o iriam acompanhar nos anos; o professor de Lógica, Júlio Barata, espírito universal, de grande versatilidade cultural, que me desvendava os mistérios de um setor do conhecimento filosófico a que eu dava particular atenção, e que muito me ajudou nos meus estudos jurídicos, começados um ano depois do início daquele de Filosofia. Júlio Barata ocupava igualmente o ensino de Literatura Latina na nossa Faculdade. Quase sempre eu seguia também as suas aulas de literatura, assim como o fazia para com aquelas de Afrânio Coutinho, de Teoria Literária. Uma vez, escutando eu uma das lições sempre brilhantes do Prof. Júlio Barata, e tendo eu interropido o docente para lhe fazer uma pergunta, diante da amplidão, segundo ele, da mesma pergunta, o Professor Barata me disse diante de toda a turma: “Sílvio, porque é que você segue o curso de Filosofia e não o de Literatura?“ Respondi-lhe, talvez com a presunção de todo o jovem de 22 anos: “Porque literatura eu já sei.” A aparente irresponsabilidade da resposta podia ser amenizada porque eu queria dizer, em verdade, que da literatura eu já me sentia de posse do significado mais amplo, enquanto que tudo me faltava da filosofia.

publicado por Carlos Loures às 20:00

editado por Luis Moreira às 20:32
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Sexta-feira, 31 de Dezembro de 2010

A Sereiazinha (6) - por Hans Christian Andersen

(Conclusão)

No dia seguinte, o navio entrou no porto da bela cidade do rei vizinho. Todos os sinos tocaram e das torres altas soaram trombetas, enquanto os soldados formavam com bandeiras flutuando ao vento e baionetas cintilantes. Cada dia havia uma festa. Bailes e reuniões de socie¬dade seguiam-se uns aos outros, mas a princesa ainda não chegara; estava a ser educada longe dali, num templo santo, disseram. Aprendia aí todas as virtudes reais. Por fim chegou.


A sereiazinha sentiu-se curiosa de ver a sua beleza e teve de reconhecê-lo: era a figura mais bonita que vira. A pele era fina e macia e, por detrás das longas pestanas escuras, sorria um par de olhos azuis-escuros, leais.


- És tu! exclamou o príncipe. - Tu que me salvaste, quando jazia como um cadáver na costa! - e apertou a noiva nos braços, que se fez vermelha. - Oh! Sou demasiado feliz! - disse ele para a sereiazinha. - O melhor, aquilo que nunca ousei esperar, tornou-se realidade para mim. Vais alegrar-te com a minha felicidade, pois gostas mais de mim do que todas as outras! - E a sereiazinha beijou-lhe a mão e pareceu-lhe sentir já o coração quebrar-se-lhe. A manhã do seu noivado trar-lhe-ia, pois, a morte e transformá-la-ia em espuma do mar.


Todos os sinos repicavam, os arautos percorriam as ruas a cavalo, a anunciar o noivado. Em todos os altares ardiam óleos aromáticos e preciosas lâmpadas de prata. Os sacerdotes balança¬ram os turíbulos, e noivo e noiva deram um ao outro as mãos e receberam a bênção do bispo. A sereiazinha estava vestida de seda e ouro, e segurava a cauda da noiva, mas os seus ouvidos não ouviam a música festiva, os olhos não viam a cerimónia santa, pensava na sua noite de morte, em tudo que havia perdido neste mundo.


Ainda nessa noite foram noiva e noivo para bordo do navio, os canhões soaram, todas as bandeiras flutuavam ao vento e no meio do navio estava erguida uma preciosa tenda de ouro e púrpura e com as mais bonitas almofadas. Aí ia o casal de noivos dormir na noite calma e fresca.


As velas enfunaram ao vento e o navio deslizou ligeiro e sem grande oscilação sobre o mar claro.


Quando escureceu, acenderam-se lâmpadas de cores variegadas e os homens do mar dan¬çaram danças alegres na coberta. A sereiazinha teve de lembrar-se da primeira vez que veio ao cimo do mar e viu a mesma pompa e alegria e lançou-se a rodopiar na dança, pairou, como paira a andorinha quando é perseguida, e todos manifestaram com júbilo a sua admiração, nunca dan¬çara tão maravilhosamente! Era como se facas afiadas lhe golpeassem os pés finos, mas ela não o sentia, feriam-na no coração mais dolorosamente. Sabia que era a última noite que veria aquele por quem havia deixado a família e o lar, por quem havia perdido a bonita voz e sofrido diaria¬mente tormentos infindos, sem vacilar. Era a última noite, respirava o mesmo ar que ele, via o mar fundo e o céu azul com estrelas. Uma noite eterna sem pensamentos e sonhos esperava por ela que não tinha nenhuma alma, nem podia alcançá-la. E tudo foi alegria e satisfação no navio bem para além da meia-noite, enquanto ela dançava com o pensamento da morte no coração. O príncipe beijou a linda noiva e ela acariciou-lhe o cabelo negro, e de braço dado foram repousar na tenda magnífica.


Fez-se silêncio e houve calma no navio, só o timoneiro ficou ao leme. A sereiazinha pôs os braços alvos na amurada e olhou para leste à procura de ver a aurora, o primeiro raio de sol, sabia ela, iria matá-la. Viu então as irmãs subirem ao de cima do mar. Estavam pálidas como ela, o seu cabelo longo e bonito não flutuava mais ao vento, fora cortado.


- Oferecemo-lo à bruxa para que nos ajudasse a conseguir que não morresses esta noite. Deu-nos uma faca, está aqui. Vês como é afiada! Antes de o sol se levantar, tens de a espetar no coração do príncipe e quando o seu sangue quente se derramar sobre os teus pés, transformar-se-ão estes numa cauda de peixe e tu voltarás a ser uma sereia, poderás descer na água até nós e viver os teus trezentos anos antes de vires a ser espuma morta e salgada. Despacha-te! Estás a ver a faixa vermelha no céu? Em poucos minutos vai nascer o sol e terás então de morrer! — E lançaram um suspiro estranho e profundo mergulhando nas ondas.


A sereiazinha afastou o tapete de púrpura da tenda e viu a bela noiva a dormir com a cabeça no peito do príncipe, beijou-lhe a linda testa, olhou para o céu, onde a aurora luzia mais e mais, olhou para a faca afiada e voltou a fitar os olhos no príncipe, que em sonhos pronun¬ciava o nome da noiva. Ela só estava nos seus pensamentos e a faca tremeu na mão da sereia... mas lançou-a para longe nas ondas que brilharam vermelhas onde caiu. Era como borbulhassem gotas de sangue ao de cima da água. Ainda uma vez olhou para o príncipe, com o olhar meio enublado, depois lançou-se do navio ao mar, onde o seu corpo se desfez em espuma.


Nasceu então o sol. Os seus raios tombaram suaves e quentes sobre a espuma do mar fria de morte e a sereiazinha não sentiu a morte, viu o sol luminoso e por cima dela pairarem centenas de belas criaturas transparentes. Podia ver através delas as velas brancas do navio e as nuvens vermelhas do céu. As suas vozes eram melodiosas, mas tão espirituais que nenhum ouvi¬do humano podia ouvi-las, tal como nenhuns olhos terrestres podiam vê-las. Sem asas pairavam pela sua própria leveza no ar. A sereiazinha viu que tinha um corpo como elas, que se elevava mais e mais da espuma.


- Para quem venho eu? — disse ela e a sua voz soou como a dos outros seres, tão espiritual que nenhuma música terrestre pode transmiti-la.


- Para as Filhas do Ar! — responderam as outras. - As sereias não têm uma alma imortal, não podem nunca alcançá-la, só se ganhassem o amor dum ser humano. Dum poder estranho depende a sua existência eterna. As Filhas do Ar também não têm alma eterna, mas podem elas próprias com boas acções obter uma. Voamos para as terras quentes, onde o ar pestilento e abafado mata os homens. Aí produzimos frescura. Espalhamos perfume de flores no ar e damos frescura e alívio. Se nos tivermos esforçado trezentos anos por fazer o bem, podemos então alcan¬çar uma alma imortal e participar na felicidade eterna dos seres humanos. Tu, pobre sereiazinha, esforçaste-te com todo o coração pelo mesmo que nós, sofreste e suportaste dores, elevaste-te para o mundo dos espíritos do ar e agora podes tu própria com boas acções conseguir uma alma imortal dentro de trezentos anos.


E a sereiazinha ergueu os braços claros para o sol de Deus e, pela primeira vez, sentiu correrem-lhe lágrimas... No navio havia outra vez alarido e vida, viu o príncipe com a sua linda noiva a procurá-la. Olhavam tristes para a espuma borbulhante, como se soubessem que se lan¬çara nas ondas. Invisível, beijou a testa da noiva, sorriu para ele e subiu com as outras Filhas do Ar na nuvem cor-de-rosa que flutuava no céu.


- Em trezentos anos ascenderemos assim para o reino de Deus!


- Também podemos mais cedo alcançá-lo! — murmurou uma — Entramos invisíveis nas casas dos homens, onde há crianças e por cada dia que encontramos uma criança boa, que faz a alegria dos pais a merece o seu amor, Deus encurta o nosso tempo de prova. A criança não sabe, quando voamos pela casa e, se tivermos de sorrir de alegria por ela, é-nos tirado um ano dos trezentos, mas se virmos uma criança malcriada e má, então temos de chorar lágrimas de tristeza e cada lágrima aumenta de um dia o nosso tempo de prova!

publicado por Carlos Loures às 14:00
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Quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010

A Sereiazinha (5) - por Hans Christian Andersen



(Continuação)


Foi presenteada com lindos vestidos de seda e de musselina. No palácio, era a mais bonita de todas, mas era muda, não podia nem cantar nem falar. Belas escravas vestidas de seda e ouro avançaram e cantaram para o príncipe e para os seus régios pais. Uma cantou melhor do que todas as outras e o príncipe bateu palmas e sorriu-lhe. A sereiazinha ficou triste, pois sabia que ela própria cantaria muito melhor! Pensou: «Oh! Bem devia saber que eu, para estar com ele, dei a minha voz, por toda a eternidade!»

Depois dançaram lindas escravas suas danças, ondulando ao som da mais bela música. Então levantou a sereiazinha os lindos braços brancos, ergueu-se nas pontas dos pés e deslizou sobre o chão, dançou, como ninguém antes dançara. Em cada movimento foi a sua beleza ainda mais visível e os olhos falaram mais profundamente ao coração do que os cantos das escravas.

Todos ficaram encantados, especialmente o príncipe que lhe chamou a sua esposazinha e ela dançou mais e mais, se bem que cada vez que os pés tocavam o chão, era como se pisasse facas afiadas. O príncipe disse que devia ficar sempre com ele e recebeu permissão de dormir fora diante da porta do seu quarto, numa almofada de veludo.

Mandou também fazer-lhe um traje de homem para que pudesse segui-lo a cavalo. Cavalgaram pelos bosques odoríferos, onde os ramos verdes lhe batiam nos ombros e os passa¬rinhos cantavam por detrás das folhas frescas. Trepou com o príncipe às altas montanhas e se bem que lhe sangrassem os pés delicados, a ponto de outros o notarem, riu disso e seguiu-o, até verem as nuvens passarem por baixo deles, corno se fossem um bando de aves voando para terras estranhas.

Em casa, no palácio do príncipe, quando de noite os outros dormiam, saía ela para a larga escadaria de mármore e aí refrescava os pés escaldantes, pondo-os na água fria do mar e pensava então naqueles lá no fundo.


Uma noite vieram as irmãs de braço dado, cantavam tristes enquanto nadavam, e ace¬nou-lhes e elas reconheceram-na e disseram-lhe como tinha deixado todos tristes. Noites segui¬das a visitaram depois, e, uma noite viu ao longe a velha avó que há muitos anos não subia à superfície do mar, e o rei do mar, com a sua coroa na cabeça, estendendo as mãos para ela. Mas não ousaram aproximar-se tanto da terra como as irmãs.

De dia para dia era mais querida para o príncipe, que gostava dela como se gosta duma criança boa e amável, mas fazê-la sua rainha nem sequer o pensava e ela sua mulher tinha de ser, senão não conseguiria obter uma alma imortal; antes viria na manhã do noivado a transfor¬mar-se em espuma do mar.


- Não gostas mais de mim de que de todas as outras? - pareciam dizer os olhos da sereia¬zinha, quando ele a tomava nos braços e lhe beijava a linda testa.

- Sim, és para mim a mais querida - disse o príncipe -, pois tens o melhor coração de todas, és a mais delicada e pareces-te com uma jovem que uma vez vi, mas que certamente não mais encontrarei. Eu estava num navio, que naufragou, as ondas levaram-me para terra junto a um templo santo, onde várias jovens prestavam serviços. A mais nova encontrou-me aí na baía e salvou-me a vida. Só a vi duas vezes, era a única que podia amar neste mundo, mas tu pareces-te com ela, quase suplantas a sua imagem na minha alma, ela pertence ao templo santo e, portanto, a minha boa sorte levou-me para ti, não vamos nunca separar-nos!... «Ai! Não sabe que lhe salvei a vida!», pensou a sereiazinha. «Trouxe-o sobre o mar para o bosque, onde está o templo, pus-me por detrás da espuma da água a ver se vinha algum ser humano. Vi a bela jovem de quem gosta mais do que de mim!» E a sereia suspirou fundo, chorar não podia. «A donzela pertence ao templo santo, disse ele, não virá nunca para o mundo, não se encontrarão mais. Estou em casa dele, vejo-o todos os dias, quero cuidar dele, amá-lo, oferecer-lhe a minha vida.»


Mas agora ia o príncipe casar-se com a bonita filha do rei vizinho, contava-se. É por isso que se aparelha tão lindamente um navio. O príncipe viaja para ver as terras do rei vizinho, diz-se, mas é para ver a filha do rei vizinho, que vai levar um grande séquito. Mas a sereiazinha abanou a cabeça e sorriu. Conhecia os pensamentos do príncipe muito melhor do que todos os outros.

- Tenho de partir em viagem! - disse ele a ela. - Tenho de ver a bela princesa, meus pais assim o querem. Mas não me obrigam a trazê-la para casa como noiva, isso não! Não posso gostar dela! Não se assemelha à bonita jovem do templo, como tu te assemelhas. Se alguma vez tenho de escolher noiva, será a ti, minha esposazinha muda de olhos falantes!

E beijou-lhe a boca rubra, brincou com o seu cabelo longo e pôs a cabeça junto ao coração dela, que assim sonhava com a felicidade humana e com uma alma imortal.

- Não tens medo do mar, minha mudazinha? - disse ele, quando já estavam no navio magnífico que deveria conduzi-lo às terras do rei vizinho. E falou-lhe de tormentas e calmias, de peixes estranhos no fundo, e do que os mergulhadores aí haviam visto. E ela sorriu com as suas descri¬ções, conhecia melhor do que ninguém o fundo do mar.

Nas noites claras de luar, quando todos dormiam, com excepção do timoneiro, que estava ao leme, sentava-se na amurada do navio a olhar para baixo na água clara e pareceu-lhe ver o palácio do pai. Sobrepondo-se a tudo estava a velha avó com a coroa de prata na cabeça que olhava através das correntes fortes para a quilha do navio. Depois vieram as irmãs ao de cima da água, olharam tristemente para ela e agitaram as mãos brancas. Acenou-lhes, sorriu e queria dizer-lhes que tudo corria bem e que era feliz, mas um moço de bordo aproximou-se e as irmãs mergulharam de tal modo que este ficou na crença de que o branco que vira era espuma do mar.

(Continua)

publicado por Carlos Loures às 14:00
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O meu amigo Romeu Correia



Carlos Loures

A revista “Nova Síntese” (Edições Colibri), publicou no seu número 4, dedicado ao tema “O rural e o urbano no neo-realismo”, um texto do Professor Alexandre Castanheira, com o título “Romeu Correia, um neo-realista esquecido”. O texto começa com uma citação do crítico literário João Gaspar Simões que, no jornal Sol de 21 de Maio de 1949, dizia sobre “Trapo Azul”, o romance de estreia de Romeu Correia: «Um jovem cheio de talento que insuflou ao “neo-realismo” decrépito uma vida que o “neo-realismo” nunca tivera entre nós».


Não vou referir-me hoje ao magnífico texto de Alexandre Castanheira, nem dissecar esta precipitada notícia necrológica de Gaspar Simões, crítico inteligente, mas controverso, que considerava decrépito um movimento que ainda mal ensaiara os primeiros passos. Basta consultar as datas de publicação de grandes obras de Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, para verificar que as grandes obras do neo-realismo não tinham ainda sido publicadas em 1949. Mas o texto incentivou-me a escrever hoje sobre Romeu Correia.



Conheci-o pessoalmente pelo final dos anos 50, acabara de publicar a sua peça “Sol na Floresta”. Travámos uma amizade duradoura, embora nunca nos tratássemos por tu (era quase da idade do meu pai). A verdade é que eu o «conhecia» já há uns bons dez anos. Quando em 1948 saiu o seu livro “Trapo Azul”, um vizinho, morador na Baixa, mas nascido em Almada, em conversa com os meus pais, a que eu assistia (mas com dez anos não podia intervir na conversa dos adultos) disse que tinha saído um livro cheio de calúnias para com as gentes daquela vila, hoje cidade.


Era uma coisa tão miserável que, dizia ele, pela primeira vez na vida tinha rasgado um livro, deitando-o fora a seguir. Como quem não quer a coisa, eu perguntei o nome do livro e quem era o autor. Os meus pais olharam para mim com ar apreensivo. O meu vizinho dignou-se responder-me: «”Trapo Azul”, de um tal Romeu Correia». Isto foi a um serão em nossa casas e no dia seguinte convenci a minha mãe, que também ficara curiosa, a irmos comprar o livro. Foi na Férin, salvo erro, que o encontrámos. E lá o trouxemos para casa. A minha mãe lia-o primeiro e, depois, logo se via se eu o podia ou não ler. Aceitei o acordo.


Ela leu o livro duma assentada e de manhã deu o veredicto. Era um bom romance, mas não era próprio para mim. Claro que mais não foi preciso para que uma grande curiosidade me assaltasse. Manhoso, fingi-me completamente desinteressado e fui observando que a vigilância ao volume ia sendo cada vez mais descuidada, deixou de estar fechado à chave numa gaveta e semanas depois já ninguém se lembrava daquele perigo para a minha educação.


Quando sabia que ia estar uma hora ou mais sozinho ia lendo, memorizando a página em que interrompia a leitura e deixando-o tal e qual na posição em que o encontrara dentro da gaveta. E assim o consegui ler em relativamente pouco tempo. Esse exemplar não o encontrei entre os livros de minha mãe e o que tenho foi-me oferecido pelo autor ao qual contei as minhas aventuras para ler o seu livro.


Mas voltando a esse primeiro encontro com Romeu Correia, foi (se a memória não me falha) no segundo piso do Café Avis, nos Restauradores do lado do Eden, Era um café estranho – no primeiro piso era frequentado por gente de extrema-direita, legionários, inclusive, ali levados pela grande cruz de Avis em néon que brilhava sobre a porta principal. No piso superior, era para a malta de esquerda. Disseram-me ser ali que o Amílcar Cabral dava explicações de Matemática.


Parava também por aquele segundo piso um grupo heterogéneo onde se incluía o Renato Ribeiro e sua mulher, a Fernanda Barreira, o Manuel de Castro, o Manuel de Seabra, o Romeu Correia que trouxe um dia a Maria Rosa Colaço, e este vosso amigo. O estranho é que os legionários nos viam passar e se faziam comentários era em voz baixa. Nunca houve ali provocações. Um dia hei-de escrever um texto sobre «os meus cafés». Muitos.


Os cafés do Romeu Correia eram outros. Ao Avis só ia para se encontrar comigo, com a Maria Rosa, com o Renato… À noite vinha de Almada no barco e parava na Coimbra, da Alexandre Herculano num grupo de que o Namora e o Bernardo Santareno faziam parte (uma vez que fui lá para o encontrar, eles estavam lá) e, à hora do almoço podíamo-lo, sempre sozinho, encontrar no café Bom (trabalhava na sede do Banco Ultramarino, na Rua do Ouro). O Café Bom ficava na Rua da Betesga em frente à cervejaria Mó, que ainda existe. Ali estava ele, preenchendo com a sua letra grande e irregular folhas soltas de páginas brancas. Era mais um romance em gestação.


Romeu Correia falava de uma forma apaixonada, revivendo as suas histórias e emocionando-se com as recordações. Não raro, fechava os olhos para que a memória lhe fosse mais fiel. Numa noite de Verão, creio que em 1959, numa esplanada da Avenida descreveu-me a Amália gravando «O Céu da Minha Rua», tema musical da série que a RTP produziu a partir do seu romance homónimo. Não saiu bem durante uma série de tentativas e quando o realizador queria desistir, às quatro ou cinco da manhã, Amália fez uma última tentativa, rasgando as meias com as unhas enquanto cantava. E saiu bem. «Uma mulher muito inteligente e cheia de raça», concluiu.

Romeu e Almerinda Correia

Noutra das suas descrições, esta feita no Avis, contou-me como, ainda no início da sua carreira no BNU, fora cobrador. Por vezes ia almoçar a casa, a Almada, se tinha alguma cobrança na margem esquerda. Naquele dia após uma cobrança de uma avultada importância, chegou a casa e encontrou Almerinda, sua mulher, profundamente adormecida. Jovem e bonita, era atleta de alta competição, descansava de horas de treino e de trabalhos domésticos. Resolveu fazer uma brincadeira poética, uma homenagem – cobri-la de ouro . colocou-lhe sobre o corpo notas de mil escudos, centenas delas. E depois acordou-a.


A surpresa de Almerinda, a sua expressão ao ver o dinheiro foi uma coisa linda, disse ele. Eram pobres e ela nunca vira tanto dinheiro na vida. Mas depressa percebeu o que se passava e disse-lhe «arruma lá toda esta porcaria!» e ajudou-o a recolocar as cintas nos maços e a metê-los na mala.


Outra recordação que o fazia vibrar era a do seu trabalho como artista de circo. Boxeur amador, com campeonatos ganhos, fazia um número em que com a ajuda de um projector, num jogo de luz e sombra, lutava consigo próprio.


Já nos anos 70, quando voltei a Lisboa, reatei a amizade que fora mantida com uma outra carta e no convívio durante as férias de Verão. Romeu e Almerinda passavam quinze dias todos os anos na Colónia de Férias da FNAT e, em Agosto, eu estava por ali perto, em Santo António ou, posteriormente, em São João da Caparica com a minha mulher e os dois filhos. Encontrávamo-nos sobretudo no cinema da colónia, pois éramos todos apaixonados por cinema.


A última vez que estive com ele foi no lançamento de um livro da Maria Rosa, no forum municipal de Almada que hoje se chama Forum Romeu Correia. Foi pouco tempo antes de ter falecido, notava-se já que estava doente, mas tendo ficado ao meu lado enquanto o livro da nossa amiga era apresentado, falou-me com entusiasmo de uma História da Incrível Almadense que andava a preparar.


Um bom escritor e um grande amigo. Um homem cuja vida daria um romance. Aqui fica uma resenha biográfica.


Romeu Correia, (17 de Novembro de 1917- 12 de junho de 1996) nasceu e faleceu em Almada. Escritor, ficcionista e dramaturgo, foi colaborador de diversos jornais e revistas, nomeadamente da Vértice. Em Outubro de 1942, casou com Almerinda Correia, que viria a ser campeã nacional de atletismo. O próprio Romeu Correia foi atleta de alta competição e campeão nacional de boxe amador. A sua obra está traduzida em numerosas línguas e tem sido objecto de teses académicas, em universidades portuguesas e estrangeiras.


Recebeu, em 1962 e 1975, o prémio Casa da Imprensa; em 1984, o Prémio de Teatro 25 de Abril, da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro; e, pela peça O Vagabundo das Mãos de Oiro (1962), o Prémio da Crítica. Em 1958, a sua peça Céu da Minha Rua foi transmitida em directo pela RTP com Amália Rodrigues no papel principal.


Escreveu: Sábado sem Sol (contos, 1947), Trapo Azul (romance, 1948); Calamento (romance, 1950); Gandaia (romance, 1952); Casaco de Fogo (teatro, 1953); Desporto-Rei (romance, 1955); Céu da Minha Rua (Isaura) (teatro, 1955); Laurinda (teatro, 1956) Sol na Floresta (teatro, 1957); O Vagabundo das Mãos de Oiro (teatro, 1960); Bonecos de Luz (romance, 1961); Bocage (teatro, 1965); Jangada (teatro,1966); Amor de Perdição (teatro, 1966) 3 Peças de Romeu Correia: Laurinda, Sol na Floresta e Céu da minha rua (teatro, 1968); O Cravo Espanhol (1970); Roberta (1971); Francisco Stromp (biografia, 1973); José Bento Pessoa (biografia, 1974); Um Passo em Frente (contos, 1976), Os Tanoeiros (nova versão de Gandaia)(romance, 1976); Homens e Mulheres Vinculados às Terras de Almada - nas artes nas letras e nas ciências (história, 1978); As Quatro Estações (teatro, 1981) Jorge Vieira e o Futebol do seu tempo (biografia, 1981) Tempos Difíceis (teatro, 1982); O Tritão (romance, 1982),; Grito no Outono (teatro, 1982); O Andarilho das 7 Partidas (teatro, 1983); O 23 de Julho (narrativa, 1986) Portugueses na V Olimpíada (ensaio, 1988); Cais do Ginjal (novela, 1989); Palmatória (1995)







(Este texto, com ligeiras diferenças, foi publicado antes no blogue Aventar)
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Quarta-feira, 29 de Dezembro de 2010

A vida por um fio

Adão Cruz

                                       Opistótono,  (óleo sobre tela, de Charles Bell, 1809).

        
Eu acabara de comer a canja. Na minha juventude, os casamentos da minha aldeia tinham canja, frango estufado com ervilhas e vitela assada. Mas nem ao frango eu cheguei. Alguém me veio chamar para ir ver uma mulher que estava muito mal, lá para os confins da Serra da Gralheira.
Enfiei-me no meu velho Hillman Minx e fui até Junqueira, no alto da serra, onde um homem me esperava. Daí em diante o trajecto seria feito a pé por montes e vales. Quase uma hora depois chegámos a um casebre, em cima uma humilde habitação e em baixo o curral da vaca

.
Uma mulher ainda nova jazia numa enxerga, em posição de opistótono. Uma posição em que o corpo se encontra arqueado, em forma de gatilho de espingarda, apoiado apenas pela nuca e pelos calcanhares, em razão de uma forte contractura dos músculos da espinha. Logo deduzi tratar-se de uma meningite grave ou de um tétano em estado avançado. Após algumas perguntas a duas ou três pessoas que rodeavam a cama, cheguei á conclusão de que seria mesmo um tétano, cuja porta de entrada dos esporos e da toxina teria sido uma cova de um dente, escarafunchada com um pau do quinteiro da vaca.
Fiquei paralisado, e senti-me, eu próprio, por momentos, com todo o meu corpo em contractura. Outra coisa não era de esperar num jovem médico, receoso e perdido no fim do mundo, perante situação tão inesperada quanto complicada. Sentei-me num pequeno banco e pensei: se tentasse retirar dali a mulher, para onde a levaria? Os únicos hospitais que havia ficavam muito longe, em Águeda ou no Porto, o velho Santo António. A mulher teria de ser transportada em padiola até onde pudesse ser recolhida por uma ambulância, se existisse. Mas nestes estados, todos os movimentos e estímulos agressivos são perigosos. Aos trambolhões pelos caminhos da serra, seria profundamente penoso e poderiam facilmente ocorrer fracturas, nomeadamente da coluna. Além disso, como pressupunha que a doente, naquele estado, tinha lavrada a sua sentença de morte, achava tal decisão injusta, imprudente e mesmo atrevida para a época.
Decidi fazer ali mesmo tudo o que estivesse ao meu alcance. Felizmente, para sorte dela, os músculos respiratórios não tinham sido afectados, e, por outro lado, para minha sorte, havia entre as pessoas presentes, um rapaz que tinha sido enfermeiro na tropa.
Precisávamos de uma algália, de uma sonda nasogástrica para alimentar a doente, de soros, de antibióticos, de relaxantes musculares, de sedativos, de clisteres, de seringas e agulhas, de álcool e outros desinfectantes. Precisávamos, acima de tudo, de soro antitetânico, embora, numa fase tão avançada, a sua eficácia fosse mais do que duvidosa. E aqui é que residia o grande problema. Uma dose de 300.000 unidades não existia em lado nenhum. Só num hospital central. Nas farmácias das redondezas havia ampolas de 1500 unidades, utilizadas na profilaxia. Por mais ampolas que conseguíssemos, só por milagre juntaríamos tal dose.
Mãos à obra. O enfermeiro que tinha em Junqueira uma motorizada, correria todas as farmácias que houvesse no concelho de Arouca e Vale de Cambra. Pelo meu lado, iria a Sever do Vouga, S. João da Madeira e Oliveira de Azeméis.
Era já noite quando chegámos de novo à beira da doente. Trazíamos dois caixotes cheios, daqueles que, antigamente, constituíam as embalagens de sabão amarelo. Conseguimos tudo o que queríamos, menos a dose necessária de soro antitetânico que se ficou pela metade, não chegando a 100 ampolas.
Ao ver a doente algaliada, com a sonda nasogástrica no nariz, com uma garrafa de soro em cada braço, com tanta agulha espetada nas veias, nos músculos dos braços e na face lateral das coxas, um a encher seringas e outro a injectar, o enfermeiro, de olhos desmesuradamente abertos, disse-me ao ouvido: - Sr. Doutor, eu nunca vi fazer tal coisa - ! Ao que eu respondi: - Pois eu também nunca na vida fiz tal coisa -!
Lá para a meia-noite, com as mais pormenorizadas indicações e todas as recomendações possíveis ao valioso enfermeiro, caído do céu, abandonei o local, com todas as esperanças de rastos, mas com uma sensação de alívio que me havia de acompanhar durante muito tempo.
Um mês depois, a doente passou no meu consultório a caminho de Fátima, a pé, trazendo-me um queijo.
publicado por Carlos Loures às 22:00
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Segunda-feira, 27 de Dezembro de 2010

A Sereiazinha (2) por Hans Christian Andersen

(Continuação)


Foi então a vez da quinta irmã. O seu aniversário foi precisamente no Inverno e viu assim o que as outras nunca haviam visto da primeira vez. O mar tomou inteiramente uma cor verde e à volta, flutuavam grandes icebergues, cada um parecia como uma pérola, disse ela. Eram, contudo, muito maiores do que as torres das igrejas que os homens construíam. Mostravam-se nas formas mais estranhas e brilhavam como diamantes. Sentara-se num dos maiores e todos os veleiros se afastaram assustados, para longe de onde se encontrava, com o longo cabelo a esvoaçar ao vento. Mas, lá para a noite, o céu ficou coberto de nuvens, relampejou e trovejou, enquanto o mar enegrecido levantava alto os grandes blocos de gelo, fazendo-os cintilar sob a luz vermelha. Em todos os navios arriaram as velas, havia ansiedade e terror, mas ela continuava sentada calmamente no seu icebergue flutuante, vendo os raios azuis tombarem em ziguezague no mar luzente.

A primeira vez que cada uma das irmãs subiu à superfície das águas, qualquer delas ficou fascinada pelo que de novo e belo havia visto, mas quando, agora, como moças crescidas, já tinham autorização de subir cá acima quando queriam, tornou-se-lhes isso indiferente, ansia¬vam novamente pelo lar e, após decorrido um mês, diziam que lá em baixo em suas casas era, sem dúvida, o mais bonito de tudo e que aí se estava muito bem.

Muitas noites, as cinco irmãs davam os braços e subiam em fila à superfície das águas. Belas vozes tinham elas, mais bonitas do que a de qualquer ser humano e, quando se levanta¬va uma tempestade, de modo a crerem que os navios iam naufragar, nadavam diante destes e cantavam lindas canções de como era bonito o fundo do mar e rogando aos marítimos para não terem medo de virem para aí, mas estes não conseguiam perceber as palavras, pensavam que era a tempestade e além disso, não achavam nenhuma beleza lá no fundo, pois quando o navio se afundava, os homens afogavam-se e só como mortos chegavam ao palácio do rei do mar.

Quando as irmãs, assim à noite, de braço dado, subiam pelo mar, ficava a irmãzinha completamente só a olhar para elas, e era como se chorasse, mas as sereias não têm lágrimas e assim sofrem muito mais.

- Ai! Se já tivesse quinze anos! - disse ela, - Sei bem que virei a gostar do mundo lá em


cima e dos seres humanos que constroem casas e aí vivem!

Por fim, fez quinze anos.

- Estás a ver, agora vamos largar-te da mão! - disse a avó, a velha rainha viúva. - Vem,


deixa-me arranjar-te, como as tuas irmãs! - E pôs-lhe uma coroa de lírios brancos no cabelo mas cada pétala da flor era metade duma pérola. E a velha mandou oito ostras grandes fixarem-se na cauda da princesa para mostrar a sua alta condição.


- Dói tanto! - disse a sereiazinha.

- Sim, algo se tem de sofrer se se quer luxo! - disse a velha.

Oh! Como gostaria de sacudir de si todos aqueles enfeites e largar a coroa pesada. As flores vermelhas do mar ficavam-lhe muito melhor, mas não ousava mudar nada

- Adeus! — disse ela, subindo tão leve e clara como uma bolha de ar através da água.

O sol havia-se posto mesmo naquele momento, quando ergueu a cabeça na superfície das águas, mas todas as nuvens brilhavam ainda como se fossem de rosas e ouro, e no meio do céu vermelho pálido luzia a estrela da tarde, tão clara e bela! O ar estava suave e fresco e o mar completamente calmo. Encontrava-se ali um grande navio com três mastros, só uma vela estava içada, pois nenhum vento se agitava e por toda a parte no cordame e nas vergas estavam sentados marinheiros. Havia música e cantos e conforme a noite se foi tornando mais escura, acenderam-se centenas de lanternas de várias cores. Parecia que todas as bandeiras das nações flutuavam no ar. A sereiazinha nadou até mesmo junto à janela dum camarote e, de cada vez que a água a levantava no ar, podia ver lá dentro pelos vidros claros como espelhos, quantos seres humanos elegantes aí estavam, mas o mais bonito era o jovem príncipe de grandes olhos negros. Não tinha certamente mais de 16 anos, era o dia do seu aniversário natalício e por isso havia toda aquela pompa. Os marinheiros dançavam na coberta e quando o Príncipe apareceu, subiram no ar centenas de foguetes. Luziram como em claro dia, de modo que a sereiazinha ficou muito assustada e mergulhou, mas logo depois pôs a cabeça de fora e era corno se todas as estrelas do céu tombassem sobre ela. Nunca antes havia visto tais artes de fogo. Grandes sóis rodopiavam, lindos peixes de fogo balançavam-se no céu azul e tudo voltava a brilhar reflectido no mar claro e calmo. No próprio navio era tudo tão luminoso que se podia ver a mais pequena corda, para não falar dos seres humanos. Oh! Como era verdadeiramente bonito o jovem prín¬cipe que apertava a mão às pessoas, ria e sorria, enquanto a música soava na noite bela!

Tornou-se tarde, mas a sereiazinha não conseguia tirar os olhos do navio e do lindo prínci¬pe. As lanternas de cores variadas apagaram-se, os foguetes não subiram mais no ar, não soaram também mais tiros de canhão, mas fundo no mar zumbia e zunia. Estava sentada, entretanto, na água e deixava-se balançar para cima e para baixo de modo a poder ver para dentro do camarote. Mas o navio foi tomando maior impulso, uma após outra vela enfunaram, as ondas tornaram-se mais fortes, levantaram-se grandes nuvens, relampejou ao longe. Oh! Ia ficar um tempo terrí¬vel! Por isso, os marinheiros arriavam as velas. O grande navio balouçava em marcha veloz no mar bravo, a água elevava-se como grandes montanhas negras que tentavam derrubar os mas¬tros, mas o navio mergulhava como um cisne, afundando-se entre as ondas altas, ou deixava-se outra vez elevar na água a amontoar-se. Parecia à sereiazinha que era justamente uma viagem divertida, mas não parecia isso aos marinheiros. O navio rangia e estalava, as madeiras grossas dobravam-se com os embates fortes, o mar penetrou no navio, o mastro quebrou-se ao meio, como se fosse uma cana e o navio pendeu para o lado, enquanto a água lhe entrava dentro. Então viu a sereiazinha que estavam em perigo, ela própria teve de tomar atenção com as madeiras e destroços do navio que derivavam na água. Por um momento, fez-se escuro como breu, de tal modo que não podia ver a mínima coisa, mas quando depois relampejou, fez-se novamente tão claro que reconheceu todos no navio. Cada um deixava-se tombar o melhor que podia, procurou ver o jovem príncipe e viu-o, quando o navio se desmantelou, sumindo-se no mar fundo. Logo ficou muito contente, porque assim ia descer para ela, mas depois lembrou-se de que os seres humanos não podem viver na água e que ele não podia, senão morto, descer ao palácio do pai. Não, não devia morrer! Assim, nadou por entre tábuas e pranchas à deriva no mar, esquecen¬do-se simplesmente de que podiam esmagá-la; mergulhou fundo e subiu outra vez, alto entre as ondas, e alcançou por fim o jovem Príncipe que quase não tinha mais forças para nadar no mar tormentoso. Os braços e as pernas começavam a ficar exaustos, os belos olhos fechavam-se. Teria morrido, não fosse a sereiazinha tê-lo alcançado. Segurou-lhe a cabeça por sobre a água e deixou as ondas levá-los, a ele e a ela, para onde quisessem.

(Continua)

________________
A partir de 3 de Janeiro, neste horário das 14:00, poderemos entrar no Jardim das Delícias pela mão da Augusta Clara de Matos. Foi ela que nos ofereceu os contos de Natal e prossegue a sua selecção com esta maravilhosa história de Hans Christian Andersen.

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Mata-Cães ou o criador e a criatura *

Carlos Loures


Em meados dos anos 80, entre as muitas coisas que fazia, tinha a meu cargo a leitura de originais de uma pequena editora – a Salamandra, do Bruno da Ponte e do Veiga Pereira. Como sempre acontece a quem tem essa responsabilidade, era obrigado a ler muitos textos sem qualquer interesse, sem qualidade e, portanto, sendo de gente desconhecida, sem qualquer viabilidade de edição. Fazia um pequeno relatório de leitura e depois os donos da editora tomavam as suas medidas.


Muito raramente, era surpreendido pelo aparecimento de textos que se distinguiam no meio desse amálgama de lixo produzido por infatigáveis escrevinhadores. Devo abrir um parêntesis para vos confessar que o ler grandes doses de má literatura, acaba por embotar a capacidade crítica. Começamos a ler um texto já com a ideia de que se vai ler mais uma pessegada. O pior é que quase sempre se acerta.



Por isso, quando me apareceu um original de um escritor de que nunca ouvira falar, um tal Fernando Correia da Silva, li as primeiras páginas com a má vontade aliada ao espírito de sacrifico com que sempre começava a ler um novo texto. A certa altura percebi que o «Mata-Cães», assim se chamava o romance, não se enquadrava na tipologia habitual. Voltei ao princípio e, surpreendi-me a dar gargalhadas com as saídas da personagem do Chico, por alcunha o «Mata-Cães» e com as alhadas em que ele se ia metendo, criando um ambiente caoticamente ordenado.


A respeito deste romance, disse António José Saraiva que Correia da Silva revelava ao leitor desprevenido «um mundo caótico», através de uma «escrita viril e desabrida». Leitor desprevenido, eu, pude verificar que o livro era muito pouco literário no sentido que o termo costuma assumir. O autor não parecia minimamente preocupado em seguir as regras do jogo em moda – malabarismos formais, viagens de circum-navegação em torno da palavra.


Voltando a António José Saraiva e à sua opinião sobre este livro, perguntava ele: «Que é isto? Um poema? Um conto picaresco? Uma recordação onírica? Um testemunho realista? Uma reflexão sobre a história recente? “O livro há-de ser”, como dizia o Bernardim - “do que vai escrito nele”. Só abrindo se poderá julgar o “Mata-Cães”, que não é decerto um tranquilizante».


Fiz um relatório muito favorável e o livro foi publicado em 1986. Depois desse, Fernando Correia da Silva já publicou em 1989, LORD CANIBAL, outro romance, novas aventuras do Mata-Cães. Em 1996, o romance QUERENÇA, o qual foi passado ao cinema em 2004, com realização de Edgar Feldman. Em 1998 publica MARESIA, novo romance. em 2000 Lançou o romance LIANOR.


Tive ocasião de conhecer o Correia da Silva e tornámo-nos amigos. O curioso é que a personalidade do Fernando se confunde com a do seu herói, o Chico «Mata-Cães», quando leio os romances é-me sempre fácil imaginar os protagonistas – identificam-se sempre com o autor. LORD CANIBAL, para aumentar a confusão, entre criador e criatura, é assinado por Francisco Mata-Cães, criando não um processo pessoano de heteronímia, mas o contrário desse desdobramento de personalidade – uma concentração semelhante à que existiu entre Alfred Jarry e o seu Ubu-Roi.


Fernando Correia da Silva, um nome que devia ser mais conhecido. Enchemos a cabeça com nomes de gente medíocre – políticos, futebolistas, actores de telenovela, o povo do jet set e das revistas «do coração» e, naturalmente, depois falta-nos espaço de memória para, por exemplo. sabermos quem é, o que escreve e como escreve o Fernando Correia da Silva.






(*Este texto, com ligeiras diferenças, foi publicado no blogue Aventar).
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Domingo, 26 de Dezembro de 2010

...


A FOME


Augusta Clara de Matos





(Cândido Portinari: "Retirantes")




Quando ouço um homem dizer que tem que pedir uns ovos, um pão e poucas outras coisas à família porque a empresa em que trabalha vai fechar e não lhe paga o que lhe deve e que essa é a única refeição que come durante o dia…

Quando ouço outro homem dizer, de cara baixa, que tem a seu cargo o filho e os netos a quem tem que garantir uma merenda para levarem para a escola, quando a voz desse homem se embarga afirmando ser capaz de explicar ao filho que já quase não há dinheiro para nada, mas não conseguir dizer às crianças que vai ter de lhes retirar os poucos mimos que já têm…

E quando ouço ainda um terceiro homem dizer que é viúvo com três filhos e que a renda da casa está por pagar há três meses …

Quando sei que estes três homens e as suas famílias se multiplicam por muitos mais e vão continuar a multiplicar-se por mais ainda…

Recuso-me a entrar em lugares-comuns, mas algum grito tenho que dar. E o que faço a seguir? Deixo de escrever? É que perdi completamente a vontade.

E todos aqueles que afirmam que estas medidas draconianas são necessárias, senão…mas, para estes e muitos outros já não é senão nada. Já lá chegaram. Que mais condicionantes pode haver para quem já não come como gente, já não vive como gente, já não consegue olhar nos olhos da gente que ainda comemos o que precisamos de comer?

E, ainda por cima, têm vergonha de nos olhar nos olhos, como se tivessem cometido algum crime.

Não sei porque é que me veio à cabeça a Natália Correia. Talvez porque só assim, daquela forma histriónica que era a dela, se possa, se deva gritar contra a fome. Que outra maneira há de expressar isto? E o que é isto?

Não me importa a prosa. É olhar para aquela gente e, embora, vendo-os iguais a nós, não os vemos como nós. Eles estão acossados pela vida, foram marcados a ferro quente, tratados como gado, não sabem o que vai ser o futuro, mesmo o mais próximo.

E eu o que faço, que sou da mesma humanidade mas ainda não estou como eles? Ainda posso manter a minha alimentação, a maior parte dos meus hábitos.

Nunca tive fome, nem me faltaram nunca as refeições necessárias. Mas posso imaginar como me sentiria.

Nunca tive filhos, nem me faltou que lhes dar de comer. Mas posso imaginar como seria vê-los com fome.

E, se eu posso imaginar, como será a realidade?

Já não gosto das palavras que se usaram durante décadas. Estão coçadas, gastas. Que outras há que espelhem a minha desolação?

Só o silêncio mas o silêncio agora não chega.

Vou inventar as palavras que não me vêm neste momento. E, só depois, volto a escrever.
publicado por João Machado às 16:00
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Sábado, 25 de Dezembro de 2010

Um conto de Natal de António Lobo Antunes - O Natalzinho

O nosso Natal foi ficarmos a gente os dois aqui em casa com um pinheiro a piscar lâmpadas a noite inteira. O pinheiro deitámo-lo fora no dia seguinte.

(primeiro encostado à porta juntamente com o lixo e depois entornado no contentor da rua onde encontra, entre garrafas vazias e papéis de embrulho, outros colegas pinheiros, como ele sem estrelas nem bolinhas prateadas)

mas as lâmpadas, unidas por um fio eléctrico, guardamo-las numa caixa de cartão, outrora caixa de sapatos, que por sua vez se arruma na prateleira mais alta da despensa onde moram as coisas de que precisamos menos
(um calorífero avariado, a canadiana de quando torci o pé, o retrato do meu sogro, os remédios fora do prazo)
e onde permanecem, sem piscar nada, até ao próximo Natal. Para as desencantar a minha mulher traz o escadote da marquise
(que eu fico a segurar devido às suas tendências traiçoeiras manifestadas por intermédio de desequilíbrios e oscilações)
sobe a medo os três degraus metálicos prevenindo

- Vê-me lá isso

remexe o calorífero, a canadiana, o retrato e os medicamentos

(não sei como, as lâmpadas emigram sempre lá para o fundo onde moram baratas, pantufas velhas e pó)

alcança a caixa após manobras intermináveis acompanhadas dum vocabulário de chofer de táxi, a quem abalroaram pela esquerda, e cuja energia e variedade me surpreende sempre numa pessoa naturalmente mansa e calada, tenta entregar-me o Natal exigindo que o receba sem largar o escadote, o que é difícil, arredonda mais frases de chofer de táxi, à procura, a descer os degraus, tacteando-os um a um. De costas para mim com as Boas-festas nos braços, despenteada e exausta, observa o escadote num palavrão derradeiro, jura que para o ano retirará as decorações da gaveta dos talheres que não exige alpinismos, eu transporto o escadote para a marquise a tropeçar na mobília e arrancando a pinturas dos móveis, e como já colocámos o novo pinheiro no vaso

(não o deixando suspeitar do destino de lixo que o espera)

basta-nos desenrolar a grinalda de ampolas de cores diferentes em torno dos ramos, pendurar as bolas prateadas, colocar a estrela no topo e ligar a ficha à tomada de corrente para que o Natal desate a piscar a sua alegria pulsatória. Em regra assim que aplico os dois cilindrozitos metálicos na tomada uma das ampolas explode, os fusíveis rebentam e andamos por ali às escuras a esbarrarmos um no outro

(eu e o chofer de táxi a quem as trevas enriqueceram a capacidade de expressão)
em busca do contador da luz. Encontrado o contador à custa de fósforos que nos queimam os dedos e esburacam a alcatifa

(o chofer de táxi exalta-se sempre quando nota a alcatifa esburacada)

accionando o interruptor, observamos as lâmpadas uma a uma, atarraxamos os casquilhos que nos parecem soltos, pegamos na ficha a medo, afastamos o sofá
(nessas alturas o sofá, quase sempre leve, decide pesar arrobas)
para utilizar a tomada, aparentemente mais benigna, na parede por trás dele, olhamo-nos a ganhar coragem, introduzimos os cilindrozitos metálicos nos buracos e o prédio inteiro desaparece com um estrondo. O piquete camarário, que um vizinho que principia a odiar-nos convocou, fala de sobrecarga no sistema, o que me parece uma denominação um bocado forte quando aplicada a qualquer coisa que se pode arrumar numa caixa de sapatos, e sugere-nos, através dum funcionário de boina conhecedor dos mistérios das resistências e dos ampères, que se queremos ter “um Natalzinho em condições” o melhor é desligar todas as máquinas usar círios românticos para o jantar em lugar do lustre, e embrulharmo-nos em cobertores para diminuir as probabilidades de uma pneumonia que ele apelida, com convicção, “das tesas”. De forma que colamos duas ou três velas a dois ou três pires, com pingos de estearina que preferem cair fora dos pires e raspados à faca nos estragam as cómodas, semeamos pela sala aquelas chamazinhas fúnebres
(aos buracos na alcatifa acrescentam-se agora manchas negras no tecto)
a minha mulher traz o xaile, eu visto o sobretudo, jantamos bacalhau e trocamos prendas com a árvore a aparecer e a desaparecer ao ritmo da grinalda e nós a aparecermos com ela, como um par de fantasmas ora azuis outra nada, ora verdes ora nada, ora amarelos ora nada, e sempre que azuis ou verdes, ou amarelos, fantasmagóricos e enormes, projectando sombras quilométricas nas paredes. O meu fantasma recebe umas luvas de lã e um porta-chaves, o fantasma da minha mulher um colar de pérolas quase autêntico e uma escovinha e uma pá de cobre de limpar as migalhas da mesa. Passada meia hora de silêncio enregelado um de nós sugere que se apague a árvore, o outro, intermitentemente invisível, afirma que não se pode por respeito à quadra. E acabamos por deitar-nos em gestos que o pinheiro tinge de arco-íris, proibidos de adormecer por aquele fervor luminoso que transforma o quarteirão num ventrículo disforme de sístoles e diástoles eléctricas, enquanto as chamas das velas se dissolvem nos pires numa fumaça nauseabunda. Acordamos não num apartamento mas numa prisão turca a seguir a um motim sobre cujas ruínas o Natal vai piscando, indiferente, a sua satisfação inalterável, e usamos a escovinha e a pá de cobre para nos desfazermos dos cadáveres. Quando a Amnistia Internacional vier investigar os nossos crimes contra a Humanidade será recebida por uma senhora de colar de pérolas quase autênticas e um cavalheiro de sobretudo, azuis, verdes e amarelos, com um pinheirinho inocente na mão.

(Segundo Livro de Crónicas, Publicações Dom Quixote)
publicado por Carlos Loures às 14:00
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Sexta-feira, 24 de Dezembro de 2010

O berço da pobreza





Adão Cruz


A pobreza transformou-se agora em bandeira eleitoral de todos aqueles que por ela são e sempre foram responsáveis. Descarada hipocrisia.

Em nome da competitividade e da convergência cometem-se as maiores barbaridades. Em nome da competitividade e da convergência, a indiscutibilidade das decisões, a globalização, a modernidade, a flexibilização e a privatização são as palavras inquestionáveis das estratégias de dominação por parte daqueles que sabem quem tudo ganha à custa de quem tudo perde.


Tais fórmulas transformaram-se numa ideologia sem sentido que leva à destruição sistemática do Homem, através do desemprego, do baixo salário, da toxicodependência, do crescimento dos sem-abrigo, do desespero, da apatia e iliteracia da juventude. O assalto às economias pelas mãos de luva branca, hoje quase institucionalizado entre aqueles políticos que mais não são do que homens sem qualquer honra, vergonha ou dignidade, levou à perversão dos conceitos, à aniquilação da resistência e da vontade dos homens dignos, à inoperância da Justiça.

Todos estes fenómenos se acentuaram quando se desenvolveram políticas doentias de saque e destruição, destinadas a reforçar o poder do capital de forma profundamente criminosa, através de absurdos super-lucros e mais-valias, e do escandaloso desvio do nosso dinheiro para obscenas reformas de ninhadas de parasitas, à custa do esmagamento da qualidade de vida da maior parte do povo.

Circulam no mundo triliões de dólares avidamente à procura do sítio onde se lucra mais, nem que esse sítio seja o imenso cemitério para onde resvalam milhões de vítimas. Não basta os políticos tidos por sérios dizerem que a solidariedade é um factor fundamental e o princípio mais importante do nosso século. Não basta dizerem que continua a haver países mais ricos e outros mais pobres e, dentro dos mais ricos, cada vez maior diferença entre ricos e pobres. Não basta lamentarem a pobreza e dizerem que a pobreza e a exclusão geram guerras intermináveis. Tudo isto é sabido e não é cantarolando a Paz e a Cooperação, de mão dada com os corruptos, os ladrões e os senhores da guerra que se ganha o título de vencedor.

Muitos destes políticos pregadores da paz e da liberdade foram e são co-responsáveis pelo engrossamento do exército de famintos, refugiados, oprimidos e condenados da terra. Co-responsáveis no abrir de portas e no estender de tapetes às chancelarias do crime organizado. Por mais que preguem, por mais debates e conferências que façam, não anulam o descrédito em que caíram ao pretenderem convencer-nos de que as expectativas de paz, liberdade e justiça são possíveis com o aperto de mão dos verdadeiros terroristas do mundo ou com as orações a Deus, as quais, pelos vistos, só são ouvidas quando saem da boca dos afortunados e não quando tomam a forma de gemidos.

Nós andamos distraídos com os fumos de incenso que os responsáveis vão espargindo pelos quatro canais da estupidez institucionalizada. E tudo isto porque os importantes grupos económicos, células de um cancro universal, tomaram conta do poder político, transformaram os governantes em lacaios e limparam os pés à soberania. Arrepanharam toda a informação global, e com ela o poder de mudar e moldar os comportamentos até à anulação da verdade e do pensamento. De forma humilhante e perversa criaram uma maquiavélica desinformação, com a qual inundaram de publicidade enganosa e de ignominiosas mentiras as cabeças de um povo cada vez mais roubado, massificado, ridicularizado, estupidificado. E depois ainda têm a lata de vir falar no combate à pobreza.
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(ilustração de Adão Cruz)


publicado por Carlos Loures às 19:00
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Quinta-feira, 23 de Dezembro de 2010

Coimbra na Literatura

João Machado

Coimbra é uma cidade milenária. Tendo em conta a sua localização e atendendo aos factos históricos não admira que tenha sido sempre um pólo de atracção importante. Foi capital de Portugal até ao reinado de D. Afonso III. Ali se realizaram as primeiras cortes de que há memória, em 1211, de onde saíram as primeiras Leis Gerais do Reino, que centravam o poder nas mãos do rei, e tentavam acabar com os abusos da nobreza e do clero. A implantação da Universidade confirmou a cidade como um grande centro cultural, e a maior cidade do centro do país.

Camões dá-nos uma imagem da importância de Coimbra, referindo-se a D. Dinis:

Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva;
E de Helicona as Musas fez passar-se
A pisar de Mondego a fértil erva.
Quanto pode de Atenas desejar-se
Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.
Aqui as capelas dá tecidas de ouro,
Do bácaro e do sempre verde louro.
(Lusíadas, Canto III, estrofe 97)

E mais adiante, numa nota triste:


Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano de alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
(Lusíadas, Canto III, estrofe 120)



Destacam-se a seguir três episódios especialmente relevantes, relativos a realizações que tiveram grande repercussão e influência mesmo a nível nacional, e das quais Coimbra foi o palco principal em dois deles e papel bastante importante no terceiro. Referem-se isoladamente algumas obras literárias, que de algum modo dizem respeito a Coimbra.



A “Questão Coimbrã”, ou a Questão do Bom Senso e Bom Gosto

Cerca de 1860 eram grandes as tensões na Universidade de Coimbra.  São grandes os protestos contra a disciplina arcaica e a legislação universitária, velha de três séculos. Em 1865 Antero de Quental, que terminara o curso de Direito, publica na Imprensa da Universidade um livro de poemas, as Odes Modernas. Inclui uma nota que foi considerada uma provocação aos defensores do romantismo, nomeadamente do romantismo da última fase. Respondeu-lhe António Feliciano de Castilho, numa carta incluída no Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas. A conflitualidade passou assim do âmbito geral da Universidade para o plano literário, desencadeando assim uma das mais importantes, senão a mais importante polémica literária ocorrida em Portugal. É contudo totalmente errado reduzi-la a um mero conflito entre literatos. Na realidade, confrontavam-se ideias antigas e novas, sendo que estas preconizavam a abertura às correntes novas europeias, não só no campo da arte, favorecendo a instauração do realismo, como também no campo político e social. A polémica teve grande repercussão na Universidade e em todo o país. Uma “guerra” de troca de opúsculos e manifestos animou a cena portuguesa, tendo Antero de Quental sido responsável pelo intitulado Bom Senso e Bom Gosto e outros, e Teófilo Braga pelas Teocracias Literárias. Intervieram figuras de todo o país, como Ramalho Ortigão (chegou a bater-se em duelo com Antero), Camilo Castelo Branco e outros. Sem dúvida que a Questão Coimbrã abre caminho a outras realizações como as Conferências do Casino, e não será exagero afirmar que ajudou a preparar o terreno para as grandes alterações políticas que culminaram na implantação da república.

Os Grandes Paspalhões Assinalados

Paródia aos Lusíadas incluída em In Illo Tempore, obra de Trindade Coelho (1861-1908), publicada em 1902, que constitui um testemunho importante sobre a boémia coimbrã.

Os grandes paspalhões assinalados,
Que nas reuniões da Academia
Foram solenemente apepinados
Por sua telha ou sua fidalguia
Que nas guerras das mocas esforçados
Mais do que a força humana permitia
No Teatro Académico asnearam
Tolices de que todos se espantaram

A Presença, revista literária

A 10 de Março de 1927 aparece em Coimbra o primeiro número desta revista. Afirma-se como uma folha de arte e crítica, antiacadémica e antiliterata, nos termos do artigo de abertura, de José Régio. O grupo que promove a revista resulta da fusão de dois que estavam ligados a outras duas revistas, Bysâncio e Tríptico, também de Coimbra, que tiveram vida efémera. Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões vão assegurar a direcção da Presença até ao número 27, saído em 1930. Branquinho da Fonseca e um grupo de colaboradores, entre os quais Miguel Torga e Edmundo de Bettencourt,  afastam-se nessa altura, entrando um ano depois para a direcção Adolfo Casais Monteiro. A Presença durou até 1940. A primeira série contou com 54 números, a segunda com apenas dois.

A revista procurou acolher todas as manifestações artísticas de qualidade. Ajudou a revelar muitos nomes, que viriam a integrar diversas correntes literárias e artísticas, incluindo o neo-realismo. Destacam-se João José Cochofel, Fernando Namora, Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Pedro Homem de Melo, Irene Lisboa. Ilustraram a revista artistas de grande qualidade como Almada Negreiros; Mário Eloy, Sarah Afonso, Arlindo Vicente (foi o autor da primeira capa) e muitos outros. O grupo Orpheu deve à Presença a divulgação que teve.

Muitas individualidades puderam dar os primeiros passos, na criação e na crítica, graças à Presença. José Régio, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Edmundo de Bettencourt, Casais  Monteiro são nomes muito conhecidos. Branquinho da Fonseca (1905-1974) com o romance A Porta de Minerva (1947), os contos O Barão, Rio Turvo, e obras de teatro e poesia, foi sem dúvida um homem da Presença, embora dela se tenha afastado a dada altura. João Gaspar Simões (1903-1987), com um papel de relevo na crítica literária, e também ficcionista e ensaísta, é outro exemplo.

Neo-realismo

Para muitos o neo-realismo foi uma corrente que teve implantação apenas na zona do vale do Tejo, na Grande Lisboa, no Alentejo, e pouco mais. Tal não é verdade. Em Coimbra ocorreram etapas algumas relevantes da vida deste movimento. O Novo Cancioneiro, resultado do trabalho de um grupo de jovens poetas, alguns dos quais tinham estado ligados à Presença, foi uma delas.  Conseguiram, entre 1941 e 1944, fazer publicar dez livros de poesia, naquilo que, segundo Alexandre Pinheiro Torres, terá sido a primeira grande manifestação colectiva do neo-realismo português. A afirmação é discutível, mas sem dúvida que a publicação do Novo Cancioneiro teve um enorme significado.

Também a revista Vértice, fundada em 1942, por Raul Gomes, estudante da Universidade de Coimbra, é um produto do meio intelectual e progressista de Coimbra. Entre os seus apoiantes encontram-se Eduardo Lourenço e Francisco Salgado Zenha.  Em breve associam-se a Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, Arquimedes da Silva Santos, Joaquim Namorado Rui Feijó, e inicia-se uma segunda fase da revista (ver o livro de Viviane Ramond, A Revista Vértice e o Neo-realismo Português), que sobreviveu até hoje, embora não sediada em Coimbra.
publicado por Carlos Loures às 17:00
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Quarta-feira, 22 de Dezembro de 2010

Zorba

Marcos Cruz

O Zorba era um cão fabuloso, nunca fazia nada à espera do osso. Eu até podia acabar aqui este texto e “postá-lo” mesmo assim, que ele não se chateava. Às vezes ficava horas nos degraus da sala a ver-me ver televisão. Era maior do que eu. Em tudo. Eu prendia-me a uma realidade. A dele incluía-me. Um dia, sem que nada o fizesse prever, pediu-me o divórcio.

Não deu razões, mas bastou-me olhar para ele para ver que era coisa séria. Assinei os papéis sem pestanejar, mas cá por dentro estava como se o meu cão, o Zorba, me tivesse pedido o divórcio. Chorei dias e dias. Lágrimas, por acaso, não. Demorei anos a ultrapassar a dor de não o ter ali, comigo, a sublinhar o nada, que era o que eu fazia. A consciência de que, finalmente, estava pronto a amar de novo só me chegou há coisa de uma hora, quando dei com a Rela, que é a cadela da vizinha, a espreitar pela janela cá para dentro, vendo-me a ver televisão. Abri-lhe a porta, claro, e adoptei-a. Minutos depois, quem me aparece à janela? O Zorba! Estava a chegar de Marrocos, aonde foi engolir uns ovos de haxixe para vender cá, e vinha à procura dela, da Rela. Iam-se casar. Combinaram ali, na minha casa, porque ele queria que ela visse a estupidez de vida que ele teve durante tanto tempo, e também porque estava a dar o Herman. Eu senti um misto de tristeza e felicidade. Tristeza porque ficava sem pau nem bola. Felicidade porque já tinha quem partilhasse a minha tristeza: a vizinha.


(Ilustração de Manel Cruz)


publicado por Carlos Loures às 19:00
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