Meu coração aparece nítido na tela, agora que o contemplo fixo. Mas não o sei ler .(página 35 de Um Novo Coração)
Sílvio Castro publicou em Novembro passado o romance – Um Novo Coração, (Rio de Janeiro, 2010). Muito bem escrito, num português límpido, narra uma experiência do autor, uma dolorosa experiência, diga-se – na noite de fim do ano de 2004, quando saía de casa com sua esposa para conviver em grupo em casa de amigos, Sílvio sofreu um acidente cardio-vascular e nas 180 páginas do livro relata-nos em pormenor como navegou esses dias de reclusão e de incerteza – os companheiros de quarto na clínica, os médicos e os enfermeiros, a paisagem que se vê da janela, o que se come, os exames, as cirurgias – enfim, o universo nebuloso de quem vê a vida em perigo.
Ao longo da vida construímos um labirinto com paredes intransponíveis, falsas passagens, obstáculos feitos de convenções, de conceitos abstractos. Quando colocados numa situação limite – prisão ou hospital, por exemplo – temos uma visão mais panorâmica do nosso labirinto. E se esta situação-limite ocorre com um escritor, acontecem obras como A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Enfermaria Prisão e Casa Mortuária, de Domingos Monteiro, o De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires e Um Novo Coração, de Silvio Castro - uma experiência dolorosa é convertida em obra literária.
Um pormenor – tal como Ernesto Sábato, Sílvio Castro não esconde o seu fascínio pelo futebol. Numa conversa com um dos médicos da clínica recorda a tragédia de Superga, quando a equipa do Torino-Calcio pereceu num desastre de aviação. E a subtileza e conhecimento que revela transportou-me até essa manhã de Maio de 1949, quando miúdo escolar, subindo a Rua da Madalena, vi grupos parados pelos passeios, gente de expressões fechadas. Só quando cheguei ao dorso da rua e entrei na escola 44, soube – o Torino que na véspera jogara em Lisboa com o Benfica na festa de despedida do grande Francisco Ferreira, perdera 18 jogadores, o treinador, três dirigentes… Era a espinha dorsal da selecção italiana, capitaneada por Valentino Mazzola, o mítico Mazzola.
Apoteótico o capitulo em que o regresso à vida normal é festejado por um opíparo banquete – devemos ser mais de 300 os convidados. «Devemos» porque lá apareço, entre o Manuel Simões e o José Saramago, chegados de avião para degustar, devorar, uma ementa que começa por arenque norueguês defumado, com maçãs grannysmith num tapete de saladas, e com iogurte aromatizado às cebolinhas e se prolonga por mil e um acepipes. Já entrei noutros romances – por exemplo, em O AmorTem Tantos Nomes, da Maria Rosa Colaço e no Querença do Fernando Correia da Silva. Em nenhum deles me serviram tais iguarias.
Não revelarei mais nada sobre o romance. Ele vai ser lido por todos e não vos quero retirar o prazer da descoberta. Pasmo que haja críticos e jornalistas literários que ao apreciarem um romance, revelem o desfecho. Também é verdade que não estou a fazer uma crítica formal, apenas uma reflexão após ter lido a da primeira à última as páginas deste excelente livro. Waldir Ribeiro do Val, o editor da obra, diz «A narrativa de Sílvio Castro é densa e verdadeira. Não é romance de aventuras ou de amor inconsequente. Foi, entretanto, escrito com amor. Amor denso e verdadeiro que ressalta de quase todas as páginas» (…) «Verdade e densidade parece ser o binómio sobre o qual este romance de Sílvio Castro foi construído». Subscrevo inteiramente.
Uma última nota: Adão Cruz, médico cardiologista, escritor e pintor, é o autor do quadro que reproduziremos aqui diariamente como ícone de abertura de cada capítulo. Um quadro muito bonito, na minha opinião, e que hoje se reproduz em dimensões que permitam avaliar devidamente essa beleza.
(publicamos hoje, embora atrasada, a carta que Israel Cohen, cardiologista, enviou ao seu e nosso amigo Adão Cruz, igualmente cardiologista, em resposta ao artigo do Adão que foi publicado na Revista da Ordem dos Médicos e, também, aqui no Estrolabio)
Acabo de ler a tua"OPINIÃO" na Revista da O.M. sobre Materialismo e Espiritualismo. Gostei do texto,acho-o claro e conciso, concordo inteiramente com o que dizes e senti que o escreveste com entusiasmo.
Curiosamente, acabei de ler o livro de A. Damásio "O Livro da Consciência". Pelas tuas palavras, na introdução e em algumas passagens do texto, chego a pensar que o possas ter lido tambem.
Li os três anteriores livros dele publicados cá e gostei muito...mas este último torna-se, talvez mais pela forma do que pelo conteudo, muito complexo e vou ter que o ler de novo, desta vez talvez com fichas e esquemas... Tal como está escrito, traz-me à cabeça duas citações: "...Tive pouco tempo para escrever menos...", eu diria tambem "melhor", e outra, que nunca mais esqueci, que foi dita por um Prof. meu da Faculdade: "Inteligência é saber explicar um assunto, por mais complexo que seja, de maneira que até um guarda republicano o consiga entender!". Neste caso, o guarda republicano sou eu...confesso que nunca soube muito de anatomia (cartografia) cerebral para conseguir entender muito do que foi escrito nesse livro, mais ainda quando se descrevem as numerosíssimas conecções e relações existentes entre todas essas estruturas.
Na realidade sabemos que a cartografia cerebral está em grande parte feita, que a fisiologia dos neurónios e seus componentes é já bastante conhecida, que a neuro-química e a neuro-biologia estão em boa parte desvendadas, que muitos circuitos intra e extra-cerebrais já foram convenientemente percorridos, que muito se sabe já da formação e mapeamento das imagens, quais as estruturas muito presumivelmente responsáveis pelo aparecimento e evolução do proto-eu, do eu nuclear e do eu auto-biográfico, da mente e da consciência, dos sentimentos e das emoções, que há já portanto um longo e meritório caminho percorrido,que a genética, os ambientes físico e cultural são palavras-chaves em tudo isto de que estamos a falar, que a neuro-ciência e a psiquiatria terão cada vez mais tedência para se tornarem indistintas, provavelmente com o nome justamente de neuro-ciência... o que, até este ponto do conhecimento, possivelmente faltará...será resumir tudo isto de uma maneira simples, de modo a ser bem entendido por uma pessoa "mediana", até porque é um assunto muito sério e de gande utilidade para uma visão correcta de nós próprios e de tudo o que nos cerca...Não digo que seja fácil. Digo que é importante.
Penso sinceramenta que neste livro o António Damásio complicou as coisas e não deu a oportunidade a muita gente de ficar, tanto quanto possível, esclarecida.
Acho que, se ele escreveu só para neuro-investigadores, terá sido "curto", e se escreveu para pessoas "normais", não atingiu, de todo, os seus objectivos...
E o mais curioso é que na FNAC e em outras livrarias, este livro se manteve durante imenso tempo e ainda se mantem nos Top Ten...será que o público português está tão culto???!!!, ou serei eu que sou de uma enorme ignorância?
Bem, desculpa este desabafo...por teres escrito um bom texto, claro e simples, não merecias levar com isto tudo em cima.
Penso que a minha exposição agradou a bastantes visitantes, e não me admira que também lhe tenha agradado, afinal o Adão não está dissociado das artes plásticas, e também escreve. A sua opinião é por isso fundamentada, tem merecimento, no entanto o entendimento que manifesta associado apenas ao sentimento é apenas uma parte de um problema. O que se entende por Arte hoje, e tanto se escreveu e escreve, exige uma conversa, não pode resumir-se em poucas. Não existe uma definição simples, portanto.
Pessoalmente não rejeito o que se pode fundamentar, com poesia ou sem poesia, embora seja exigente quanto aos pressupostos criativos da novidade e autenticidade. A pureza das manifestações é posta em causa muitas vezes, existem contaminações da pintura por palavras, tanto quanto estas se fazem acompanhar da música e da dança, e as possibilidades criativas em aberto multiplicam-se para lá das convenções e dos princípios tradicionais. Fazem-se experiências com materiais e o significado ontológico aceita as palavras para que as realizações sejam consideradas, não tanto como explicação de uma obra, mas para ser a consequência ou parte fundamental da obra. E nesta perspectiva de uma conceptualizada realização, a arte, a não arte ou a anti-arte, coexistem, e nem sempre se distingue o que é bem feito do mal feito, porque tudo se assume. E eu próprio tenho dificuldade em dizer que gosto ou não gosto, afasto o gosto pelo desejo da conversa, desejo que ela se instale antes de tomar uma posição incontroversa de rejeição disto ou daquilo. Conversando posso entender as obras de arte e a perspectiva de enquadramento, assim como as mudanças qualitativas podem surgir. Arrasto para aqui a leitura de determinados livros, porque eles fazem parte do meu ser, ensinam-me a viver, permitem-me que seja o artista que sou, tentando perceber também o que outros artistas fazem, e há tanta coisa que rejeito, lamentando não poder falar com esses artistas. Talvez os convencesse a mudar ou a desistir, porque de facto existem coisas que não fazem sentido, ou fazem se fossem explicadas na perspectiva da mudança. Claro que estou a pensar no domínio específico das artes visuais, já que em relação à poesia das letras, também rejeito tanta coisa que se publica, que nada tem a ver com a dimensão labiríntica que entendo, e considero no sentido metafórico. Independente da aura que a minha pintura pode trazer e ser factor de encanto, ela é pensada, é uma pintura de pensamento, posso falar dela como consequência do labirinto que convoco para o (meu) entendimento do mundo. E porque depois da aproximação à escrita vieram as palavras dos outros e as minhas, devo referir-me à obra situando-me a montante e os outros a jusante. Não é a obra que está a jusante, mas os outros. A obra medeia, estabelece a aproximação, é interventiva, interpela e se transforma pela consequência positiva de participações de dentro e de fora. Há com certeza um sentimento poético presente no acto criativo, e a relação ontológica muito presente vem dimensionar o caminho das procuras, trazer a filosofia a assumir-se, obrigando-me a ter atenções a um conhecimento que me liberta dos aspectos especificamente artesanais. Estes podem ser cuidados, afinal a aprendizagem existiu, mas devo considerar a dimensão suplementar da pintura, dimensionar a pintura pela percepção da intenção de escrita através da escrita, e referir uma consciência possível sobre a realidade que me envolve. Naturalmente que o homem que sou acompanha o artista que também sou, e o sentimento poético vai ter uma dimensão, que não pode deixar de se perceber associado a algo que nada devo ao entretenimento. Sob este ponto de vista considero-me um artista não entretido, mas comprometido e de esquerda, embora não realize uma obra panfletária. É evidente que não imponho o modo de viver o que faço, respeito as realizações diferentes, sobretudo aquelas que se assumem pela qualidade, mesmo se essa qualidade não se resume ao lado físico e considera as ideias, que pressupõe o trabalho das ideias. Desta forma a arte pode ser útil, menos a inutilidade útil que reportamos à pintura, assumindo-se relacional pelo pensamento, e abre-se ao estudo hermenêutico. E o Adão responde positivamente a esta questão, não sem se contradizer, referindo as investigações académicas. E porque não um titulo ? É que certas obras se dimensionam também a partir de um simples título. Existem intenções com a realização das obras de arte que devem ser respeitadas, porque correspondem a modos próprios de sentir e de entender. Afinal as obras de arte são como que propriedades imperfeitas na abertura, sem excluírem a pluralidade dos significados, e o respeito pelos direitos de propriedade só pode exigir deveres. Por último: Haver ou não títulos, embora tenha dificuldade em perceber os títulos das pinturas, é uma questão pessoal. Eu prefiro dar títulos às exposições, sempre acompanhadas de documentos, catálogos ou simples folhetos, que ficam depois das exposições, e vão ter um valor documental.
Como já disse ao Carlos Loures, vejo-me grego para cumprir as minhas obrigações com o Estrolabio, até porque ainda trabalho, e a minha profissão exige muito. Por isso lhe disse que, se calhar, não ajudaria na tarefa dos dez livros.
Mas a chegada da Carla Romualdo estimulou-me e eles aí vão. Não por qualquer razão ao calhas. Apenas pelo facto de serem alguns dos livros que mais mexeram comigo e mais me fizeram tremer.
O Juiz,
de Hall Caine
24 horas na vida de uma mulher, de Stefan Zweig
Les damnés de la terre, de Frantz Fanon
O Homem neuronal, de Jean Pierre Changeux
O sentimento de si, de António Damásio
O Espectáculo da Vida
de Richard Dawkins
Vozes anoitecidas, de Mia Couto
A santa Aliança, de Eric Frattini
Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago ______________________