coordenação de Augusta Clara de Matos
Boas e Más Memórias
Quanto a mim, esta é a mais bela das Cartas a Um Jovem Poeta
Rainer Maria Rilke Cartas a Um Jovem Poeta
CARTA VII
Meu caro senhor Kappus:
Longo tempo passou sobre a sua última carta. Não me queira mal. Trabalho, incómodos e preocupações quotidianas impediram-me de lhe escrever. Além disso, desejava que a minha resposta fosse o eco de dias calmos e bons. (A ante-primavera, com os seus desagradáveis altos e baixos, fez-se aqui fortemente sentir). Hoje estou um pouco melhor e aqui me tem, meu caro senhor, a saudá-lo e a dizer-lhe o melhor que puder (faço-o de todo o coração) várias coisas a propósito da sua última carta.
Como vê, copiei o seu soneto porque o achei belo e simples, feito em moldes que lhe permitem mover-se com uma serena compostura. De todos os versos seus que conheço são os melhores. Ofereço-lhe esta cópia por saber como é importante e cheio de ensinamentos vermos o nosso próprio trabalho em letra estranha. Leia estes versos como se fossem de outro e então sentirá, bem no seu íntimo, a que ponto são seus.
Foi para mim uma alegria reler várias vezes esse soneto e a sua carta. Agradeço-lhe ambos. Não se deixe perturbar na sua solidão pelo facto de sentir veleidades de a abandonar. Utilizadas com calma e reflexão, essas tentações devem mesmo ajudá-lo como instrumento susceptível de alargar a sua solidão a um país ainda mais rico e mais vasto. Os homens têm, para todas as coisas, soluções fáceis e convencionais, as mais fáceis das soluções fáceis. Contudo, é evidente que se deve preferir sempre o difícil: tudo o que vive lá cabe. Cada ser se desenvolve e se defende a seu modo e tira de si próprio, a todo o custo e contra todos os obstáculos, essa forma única que é a sua. Sabemos muito poucas coisas, mas a certeza de que devemos sempre preferir o difícil não nos deve nunca abandonar. É bom estar só, porque a solidão é difícil. Se uma coisa é difícil, razão mais forte para a desejar. Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração que bate ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, dependentes?). O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro, é preciso amealhar muito tempo, acumular um tesoiro.
Nisto consiste o erro tão frequente e tão grave dos novos: precipitam-se quando o amor os atinge, porque faz parte da sua natureza não saberem esperar. Entregam-se quando a sua alma é apenas esboço, inquietação, desordem. Mas quê? Que pode fazer a vida desta confusão de materiais desperdiçados a que chamam «a sua felicidade»? E que futuro podem esperar? Cada um se perde a si próprio por amor do outro, e perde também o outro e todos aqueles que ainda poderiam vir... E cada um perde o «sentido do largo» e os meios de o atingir, cada um troca os vaivéns das coisas do silêncio, cheios de promessas, pela confusão estéril, de que só pode sair fastio, indigência e desilusão. Só lhes resta refugiarem-se numa dessas múltiplas convenções que existem em toda a parte como abrigos ao longo de um caminho perigoso. Nenhuma região humana é tão rica em convenções como esta. Lanchas, bóias, cintos de salvação...— a sociedade, neste caso, oferece todos os meios de libertação. Inclinados a ver no amor apenas um prazer, os homens tornaram-lhe o acesso fácil, barato, sem riscos, como um divertimento de feira. Quantos seres jovens há que não sabem amar, que se limitam a entregar-se, como acontece correntemente (e decerto a maioria limitar-se-á sempre a isto), e vergam depois sob o peso do seu erro! Pelos seus próprios recursos, procuram tornar possível e fecunda a situação em que caíram. A sua natureza diz-lhes que as coisas do amor, menos ainda do que outras, também importantes, não podem ser resolvidas segundo tais ou tais princípios que servem para todos os casos. Sentem perfeitamente que é um assunto para ser resolvido de ser para ser e que cada caso necessita de uma resposta única, estritamente pessoal. Mas, se já se confundiram na precipitação da posse, se já perderam toda a personalidade, como poderão encontrar em si próprios o caminho para fugir a este abismo em que soçobrou a sua solidão? Um e outro procedem cegamente. Empregam toda a sua boa vontade em dispensar convenções, como o casamento, para cair em convenções, menos vistosas, é certo, mas igualmente mortais. É que, ao seu alcance, só há convenções. Tudo o que resulta destas uniões turvas, cuja confusão vem da precipitação, só pode ser convencional. O próprio rompimento seria um gesto convencional, impessoal, fortuito, débil e ineficaz. Nunca, nem na morte, que é difícil, nem no amor, que também é difícil, aquele para quem a vida é uma coisa grave terá a ajuda de qualquer luz, de
(ilustração de Adão Cruz)
qualquer resposta já dada, de qualquer caminho de antemão traçado. Não há regras gerais para nenhum destes deveres que trazemos escondidos em nós e que transmitimos àqueles que nos seguem sem jamais os esclarecer. Na medida em que estamos sós, o amor e a morte tocam-se. As exigências dessa terrível empresa que é o amor através da nossa vida não são à medida dessa vida e jamais estaremos à altura de merecer o amor desde os primeiros passos. Mas se, à força de constância, consentirmos em suportá-lo como dura aprendizagem, em vez de nos dispersarmos em brinquedos fáceis e frívolos que permitem que os homens se furtem à gravidade da existência, talvez um progresso insensível, um certo alívio possa então resultar para aqueles que nos seguirem, muito tempo ainda depois da nossa morte. E isto já seria muito. Hoje, mal podemos ainda considerar, sem preconceitos, as relações de dois seres. As nossas tentativas para viver tais recordações carecem de exemplos que as guiem. E, contudo, o passado contém esboços de vida que poderiam ajudar os nossos passos hesitantes. As raparigas e as mulheres, na sua evolução, só temporariamente imitarão as manias e as modas masculinas, só temporariamente exercerão as profissões dos homens. Logo que acabem estes períodos incertos de transição,
ver-se-á que as mulheres se prestaram a estas mascaradas, muitas vezes ridículas, apenas para extirpar da sua natureza as influências deformantes do outro sexo. A mulher, que uma vida mais espontânea, mais fecunda, mais confiante habita, está sem dúvida mais perto do humano do que o homem — o macho pretensioso e impaciente que ignora o valor do que julga amar por não estar preso às profundidades da vida, como a mulher, pelo fruto
das suas entranha. Esta humanidade, que na dor e na humilhação amadurece a mulher, virá à superfície quando esta quebrar as cadeias da sua condição social. E os homens, que não sentem aproximar-se esse dia, ficarão surpreendidos e vencidos. Um dia (sinais certos o atestam já nos países nórdicos), a rapariga existirá, a mulher existirá. E estas palavras: «rapariga», «mulher», não significarão somente o contrário de «homem», mas qualquer coisa de pessoal, valendo por si mesma; não apenas um complemento, mas uma forma completa de vida: a mulher na sua verdadeira humanidade.
Um tal progresso transformará a vida amorosa, hoje tão cheia de erros (e isto mau grado o homem, que, de princípio, será ultrapassado). O amor deixará de ser o comércio de um homem e de uma mulher para ser o de duas humanidades. Mais perto do humano, será infinitamente delicado e cheio de atenções, bom e claro em tudo o que fizer ou desfizer. Este será o amor que, lutando duramente, agora preparamos: duas solidões que se protegem, se completam, se limitam e se inclinam uma para a outra. Isto, ainda: Não julgue que o amor que conheceu adolescente se tenha perdido. Não foi ele que fez germinar em si aspirações ricas e fortes, projectos de que ainda hoje vive? Tenho a certeza de que esse amor apenas sobrevive, tão forte, tão poderoso na sua recordação, pelo facto de ter sido a primeira ocasião de estar só no mais profundo de si próprio, o primeiro esforço interior que tentou na sua vida.
Meu caro senhor Kappus, todos os meus votos de felicidade. Seu
RAINER MARIA RILKE
Roma, 14 de Maio de 1904
68
67
. Ligações
. A Mesa pola Normalización Lingüística
. Biblioteca do IES Xoán Montes
. encyclo
. cnrtl dictionnaires modernes
. Le Monde
. sullarte
. Jornal de Letras, Artes e Ideias
. Ricardo Carvalho Calero - Página web comemorações do centenário
. Portal de cultura contemporânea africana
. rae
. treccani
. unesco
. Resistir
. BLOGUES
. Aventar
. DÁ FALA
. hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
. ProfBlog
. Sararau