Segunda-feira, 7 de Fevereiro de 2011

Cartas a Um Jovem Poeta 2 - Rainer Maria Rilke

coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

 

 

 

Boas e Más Memórias

 

Quanto a mim, esta é a mais bela das Cartas a Um Jovem Poeta

 

 

 

 

Rainer Maria Rilke  Cartas a Um Jovem Poeta

 

 

 

 

 

CARTA VII

 

 

 

 

 

 

Meu caro senhor Kappus:

 

 

 

 

Longo tempo passou sobre a sua última car­ta. Não me queira mal. Trabalho, incómodos e preocupações quotidianas impediram-me de lhe escrever. Além disso, desejava que a minha resposta fosse o eco de dias calmos e bons. (A ante-primavera, com os seus desagradáveis al­tos e baixos, fez-se aqui fortemente sentir). Hoje estou um pouco melhor e aqui me tem, meu caro senhor, a saudá-lo e a dizer-lhe o melhor que puder (faço-o de todo o coração) várias coisas a propósito da sua última carta.

 

 

 

 

 Como vê, copiei o seu soneto porque o achei belo e simples, feito em moldes que lhe permi­tem mover-se com uma serena compostura. De todos os versos seus que conheço são os me­lhores. Ofereço-lhe esta cópia por saber como é importante e cheio de ensinamentos vermos o nosso próprio trabalho em letra estranha. Leia estes versos como se fossem de outro e então sentirá, bem no seu íntimo, a que ponto são seus.

 

 Foi para mim uma alegria reler várias vezes esse soneto e a sua carta. Agradeço-lhe ambos. Não se deixe perturbar na sua solidão pelo facto de sentir veleidades de a abandonar. Uti­lizadas com calma e reflexão, essas tentações devem mesmo ajudá-lo como instrumento sus­ceptível de alargar a sua solidão a um país ainda mais rico e mais vasto. Os homens têm, para todas as coisas, soluções fáceis e conven­cionais, as mais fáceis das soluções fáceis. Con­tudo, é evidente que se deve preferir sempre o difícil: tudo o que vive lá cabe. Cada ser se desenvolve e se defende a seu modo e tira de si próprio, a todo o custo e contra todos os obstáculos, essa forma única que é a sua. Sabe­mos muito poucas coisas, mas a certeza de que devemos sempre preferir o difícil não nos deve nunca abandonar. É bom estar só, porque a solidão é difícil. Se uma coisa é difícil, razão mais forte para a desejar. Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto teste­munho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas prepa­rações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, con­centradas no coração que bate ansioso e solitá­rio, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, de­pendentes?). O amor é a ocasião única de ama­durecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigên­cia, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalha­rem a si próprios. A faculdade de nos perder­mos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro, é preciso amealhar muito tem­po, acumular um tesoiro.

 

 Nisto consiste o erro tão frequente e tão gra­ve dos novos: precipitam-se quando o amor os atinge, porque faz parte da sua natureza não saberem esperar. Entregam-se quando a sua alma é apenas esboço, inquietação, desordem. Mas quê? Que pode fazer a vida desta confu­são de materiais desperdiçados a que chamam «a sua felicidade»? E que futuro podem esperar? Cada um se perde a si próprio por amor do outro, e perde também o outro e todos aqueles que ainda poderiam vir... E cada um perde o «sentido do largo» e os meios de o atingir, cada um troca os vaivéns das coisas do silêncio, cheios de promessas, pela confusão estéril, de que só pode sair fastio, indigência e desilusão. Só lhes resta refugiarem-se numa dessas múlti­plas convenções que existem em toda a parte como abrigos ao longo de um caminho perigo­so. Nenhuma região humana é tão rica em con­venções como esta. Lanchas, bóias, cintos de salvação...— a sociedade, neste caso, oferece todos os meios de libertação. Inclinados a ver no amor apenas um prazer, os homens torna­ram-lhe o acesso fácil, barato, sem riscos, como um divertimento de feira. Quantos seres jovens há que não sabem amar, que se limitam a en­tregar-se, como acontece correntemente (e decerto a maioria limitar-se-á sempre a isto), e vergam depois sob o peso do seu erro! Pelos seus próprios recursos, procuram tornar possí­vel e fecunda a situação em que caíram. A sua natureza diz-lhes que as coisas do amor, me­nos ainda do que outras, também importantes, não podem ser resolvidas segundo tais ou tais princípios que servem para todos os casos. Sentem perfeitamente que é um assunto para ser resolvido de ser para ser e que cada caso necessita de uma resposta única, estritamente pessoal. Mas, se já se confundiram na precipi­tação da posse, se já perderam toda a persona­lidade, como poderão encontrar em si próprios o caminho para fugir a este abismo em que soçobrou a sua solidão? Um e outro procedem cegamente. Empregam toda a sua boa vontade em dispensar convenções, como o casamento, para cair em convenções, menos vistosas, é certo, mas igualmente mortais. É que, ao seu alcance, só há convenções. Tudo o que resulta destas uniões turvas, cuja confusão vem da precipitação, só pode ser convencional. O próprio rompimento seria um gesto convencional, impessoal, fortuito, débil e ineficaz. Nunca, nem na morte, que é difícil, nem no amor, que também é difícil, aquele para quem a vida é uma coisa grave terá a ajuda de qualquer luz, de

 

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

qualquer resposta já dada, de qualquer ca­minho de antemão traçado. Não há regras ge­rais para nenhum destes deveres que trazemos escondidos em nós e que transmitimos àqueles que nos seguem sem jamais os esclarecer. Na medida em que estamos sós, o amor e a morte tocam-se. As exigências dessa terrível empresa que é o amor através da nossa vida não são à medida dessa vida e jamais estaremos à altura de merecer o amor desde os primeiros passos. Mas se, à força de constância, consentirmos em suportá-lo como dura aprendizagem, em vez de nos dispersarmos em brinquedos fáceis e frívolos que permitem que os homens se fur­tem à gravidade da existência, talvez um pro­gresso insensível, um certo alívio possa então resultar para aqueles que nos seguirem, muito tempo ainda depois da nossa morte. E isto já seria muito. Hoje, mal podemos ainda conside­rar, sem preconceitos, as relações de dois se­res. As nossas tentativas para viver tais recordações carecem de exemplos que as guiem. E, contudo, o passado contém esboços de vida que poderiam ajudar os nossos passos hesitan­tes. As raparigas e as mulheres, na sua evolu­ção, só temporariamente imitarão as manias e as modas masculinas, só temporariamente exercerão as profissões dos homens. Logo que acabem estes períodos incertos de transição,

ver-se-á que as mulheres se prestaram a estas mascaradas, muitas vezes ridículas, apenas para extirpar da sua natureza as influências deformantes do outro sexo. A mulher, que uma vida mais espontânea, mais fecunda, mais con­fiante habita, está sem dúvida mais perto do humano do que o homem — o macho preten­sioso e impaciente que ignora o valor do que julga amar por não estar preso às profundida­des da vida, como a mulher, pelo fruto

 das suas entranha. Esta humanidade, que na dor e na humilhação amadurece a mulher, virá à superfície quando esta quebrar as cadeias da sua condição social. E os homens, que não sentem aproximar-se esse dia, ficarão surpreendidos e vencidos. Um dia (sinais certos o atestam já nos países nórdicos), a rapariga existirá, a mulher existirá. E estas palavras: «rapariga», «mulher», não significarão somente o contrário de «homem», mas qualquer coisa de pessoal, valendo por si mesma; não apenas um complemento, mas uma forma completa de vida: a mulher na sua verdadeira humanidade.

 

 

 

 

 Um tal progresso transformará a vida amoro­sa, hoje tão cheia de erros (e isto mau grado o homem, que, de princípio, será ultrapassado). O amor deixará de ser o comércio de um ho­mem e de uma mulher para ser o de duas humanidades. Mais perto do humano, será in­finitamente delicado e cheio de atenções, bom e claro em tudo o que fizer ou desfizer. Este será o amor que, lutando duramente, agora preparamos: duas solidões que se protegem, se completam, se limitam e se inclinam uma para a outra. Isto, ainda: Não julgue que o amor que conheceu adolescente se tenha per­dido. Não foi ele que fez germinar em si aspi­rações ricas e fortes, projectos de que ainda hoje vive? Tenho a certeza de que esse amor apenas sobrevive, tão forte, tão poderoso na sua recordação, pelo facto de ter sido a primei­ra ocasião de estar só no mais profundo de si próprio, o primeiro esforço interior que tentou na sua vida.

 

 

 

 

Meu caro senhor Kappus, todos os meus votos de felicidade. Seu

 

 

 

RAINER MARIA RILKE

 

 

 

Roma, 14 de Maio de 1904

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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publicado por Augusta Clara às 14:00
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1 comentário:
De ethel feldman a 7 de Fevereiro de 2011
Tens toda a razao! Obrigada, Augusta.

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