Sexta-feira, 4 de Fevereiro de 2011

Cartas da Terra 3 - Mark Twain

coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

Boas e Más Memórias

E Satanás, que fora expulso para a Terra, de lá continuou a enviar cartas com as suas impressões aos arcanjos Miguel e Gabriel

Mark Twain  Cartas da Terra

CARTA II

 

 

 

«Não vos contei nada sobre o homem que não seja verdade.» Deveis perdoar-me, se repito esta observação aqui e ali nes­tas cartas: quero que leveis a sério as coisas que vos conto e jul­go que, se estivesse no vosso lugar e vós no meu, necessitaria dessa chamada de atenção de quando em quando para impedir que a minha credulidade esmorecesse.

(Mirando el Suelo - Pastor Outeiral, Ourense)

Pois não há nada acerca do homem que não seja estranho para um imortal. Ele não olha para nada como nós olhamos, a sua noção das proporções é completamente diferente da nossa, e a sua noção do que são valores é de tal maneira divergente da nossa que, malgrado toda a nossa imensa capacidade intelectual, não é provável que mesmo os mais dotados de nós fossem algu­ma vez capazes de o compreender plenamente.

Considerai esta amostra, por exemplo: ele imaginou um céu e deixou completamente de fora dele a mais suprema de todas as delícias, o êxtase ímpar que aparece antes de tudo o resto no âmago de cada indivíduo da sua raça — e da nossa —: as rela­ções sexuais!

É como se uma pessoa estivesse perdida e moribunda num deserto abrasador e lhe fosse dito por um salvador que podia es­colher e ter todas as coisas por que ansiava, excepto uma, e ela escolhesse prescindir da água!

O céu dele é como ele próprio: estranho, interessante, sur­preendente, grotesco. Palavra de honra que não tem uma única característica que ele realmente aprecie. Consiste — única e exclusi­vamente — em distracções a que ele praticamente não liga aqui na Terra, contudo tem a certeza absoluta de que vai gostar delas no céu. Não é curioso? Não é interessante? Não deveis pensar que estou a exagerar, pois não é o caso. Vou dar-vos pormeno­res.

A maior parte dos homens não canta, a maior parte dos ho­mens não sabe cantar, a maior parte dos homens não se demora onde outros estão a cantar, se tal se prolongar por mais de duas horas. Registai isso.

Somente cerca de dois homens em cada cem sabe tocar um instrumento musical, e nem quatro em cem têm qualquer desejo de aprender a fazê-lo. Tomai nota disso.

Muitos homens rezam, não há muitos que gostem de o fa­zer. Uns quantos rezam demoradamente, os demais preferem atalhar.

Há mais homens a ir à igreja do que aqueles que desejariam fazê-lo. Para quarenta e nove homens em cinquenta, o Dia do Senhor1 é uma tremenda maçada.

De todos os homens presentes numa igreja a um domingo, dois terços estão cansados, quando o serviço vai a meio, e os restantes antes de ele ter terminado.

O momento de maior satisfação para todos eles é quando o pregador ergue as mãos para a bênção final. Consegue ouvir-se o suave sussurro de alívio que se estende a todo o edifício e re­conhece-se que ele é eloquente de gratidão.

Todas as nações olham com sobranceria para todas as outras nações.

Todas as nações detestam todas as outras nações.

Todas as nações brancas desprezam todas as nações de cor, seja de que matiz for, e oprimem-nas, quando podem.

Os homens brancos não se relacionam com «pretos», nem se casam com eles.

Não os deixam entrar nas suas escolas e igrejas.

O mundo inteiro odeia o judeu e não o suporta senão quan­do ele é rico.

Peço-vos que registeis todas essas características.

Adiante. Todas as pessoas sãs de espírito detestam barulho.

Todas as pessoas, sãs de espírito ou insanas, gostam de ter variedade na sua vida. A monotonia rapidamente as cansa.

Cada homem, segundo o equipamento mental que lhe coube em sorte, exercita o seu intelecto constantemente, incessante­mente, e este exercício constitui uma parte considerável e valiosa e essencial da sua vida. O intelecto mais chão, tal como o mais elevado, possui algum tipo de aptidão e tem grande prazer em testá-la, pô-la à prova, aperfeiçoá-la. O diabrete, que é superior aos seus companheiros em jogos, é tão diligente e entusiástico na sua prática como o são o escultor, o pintor, o pianista, o ma­temático e os demais. Nenhum deles poderia ser feliz, se o seu talento fosse interditado.

Ora bem, já tendes os factos. Sabeis do que a raça humana gosta e do que não gosta. Ela inventou um céu, saído da sua própria cabeça, sem ajuda de ninguém: adivinhai como ele é! Nem em mil e quinhentas eternidades o conseguiríeis. A mente mais capaz por vós ou por mim conhecida em cinquenta mi­lhões de evos não o conseguiria. Muito bem, vou falar-vos sobre ele.

1. Antes de mais nada, chamo-vos de novo a atenção para o facto extraordinário com que comecei. Isto é, que o ser huma­no, como os imortais, coloca naturalmente as relações sexuais de longe acima de todos os outros prazeres — e, todavia, deixou-as de fora do seu céu! A simples ideia de as ter excita-o; a oportunidade deixa-o frenético; neste estado, arriscará a vida, a reputa­ção, tudo — até mesmo o seu insólito céu —, para concretizar essa oportunidade e aproveitá-la até ao seu irrefreável clímax. Da juventude à meia-idade, todos os homens e todas as mulheres apreciam a cópula acima de todos os outros prazeres juntos, po­rém, na verdade, é como vos disse: ela não existe no céu deles; a oração ocupa o seu lugar.

Deste modo, têm-lhe um elevado apreço; contudo, tal como as suas supostas «mercês», trata-se de uma coisa pobre. No seu melhor e mais demorado, o acto é breve para além da imagina­ção — a imaginação de um imortal, quer dizer. Em termos de repetição, o varão é limitado... oh, bem para além do concebimento imortal. Nós, que prolongamos o acto e os seus êxtases mais supremos de forma continuada e sem interrupções durante séculos, jamais seremos capazes de compreender ou de nos condoermos de forma adequada da horrível pobreza destas pessoas no que toca a esse valioso dom que, se possuído como nós o possuímos, faz com que todas as outras posses sejam triviais e nem valham o trabalho de passar factura.

2. No céu dos homens, toda a gente canta! O homem que não cantava na Terra, ali canta; o homem que não conseguia cantar na Terra, ali consegue cantar. Esta cantoria  universal não é for­tuita, nem ocasional, nem aliviada por intervalos de silêncio; prossegue, ao longo de todo o dia, e dia após dia, durante um período de doze horas. E toda a gente se queda — enquanto na Terra o lugar ficaria vazio em duas horas. A cantoria consta uni­camente de hinos. Não, consta somente de um hino. As palavras são sempre as mesmas, em número serão para aí uma dúzia, não há rima, não há poesia: «Hosana, hosana, hosana, Senhor Deus dos Exércitos, 'rra! 'rra! 'rra! ssss! — bum!... a-a-ah!»

3. Entretanto, cada pessoa está a tocar harpa — aqueles mi­lhões e milhões! —, ao passo que não mais de vinte em mil delas sabiam tocar um instrumento na Terra, ou sequer alguma vez quiseram saber.

Imaginem o ensurdecedor furacão de som — milhões e mi­lhões de vozes a berrarem em uníssono, e milhões e milhões de harpas a rangerem os dentes ao mesmo tempo! Pergunto-vos: é medonho, é odioso, é horrível?

Imaginem também: trata-se de um serviço de louvor— um serviço de elogio, de lisonja, de adulação! Perguntais quem está disposto a aguentar este estranho cumprimento, este insano cumprimento — e quem não somente o aguenta, mas gosta de­le, desfruta dele, precisa dele, o ordena? Preparai-vos!

É Deus! O Deus desta raça, quer dizer. Ele senta-se no seu trono, servido pelos seus vinte e quatro anciãos e outros dignitá­rios quaisquer pertencentes à sua corte, e olha por sobre quiló­metros e quilómetros de tempestuosos adoradores e sorri, e sol­ta suspiros maviosos, e mostra a sua satisfação acenando com a cabeça para norte, para este, para sul — no que imagino seja o espectáculo mais bizarro e ingénuo até agora concebido neste universo.

É fácil de ver que o inventor do céu não foi o autor desta ideia, antes a copiou dos espectáculos-cerimónias de algum des­graçado Estadito soberano situado algures nas distantes colónias do Oriente.

Todas as pessoas brancas sãs de espírito odeiam barulho, porém aceitaram tranquilamente este tipo de céu — sem pensar, sem reflectir, sem examinar — e querem de facto ir para lá! Ve­lhos de cabelo grisalho profundamente devotos dedicam grande parte do seu tempo a sonhar com o ditoso dia em que largarão as preocupações desta vida e entrarão nos prazeres daquele lo­cal. Não obstante, podeis ver quão irreal esse local é para eles e o quão pouco lhes prende a atenção como sendo realmente um facto, uma vez que não fazem nenhuma preparação prática para a grande mudança — nunca se vê nenhum deles com uma harpa, nunca se ouve nenhum deles a cantar.

Como já vistes, esse espectáculo singular é um serviço de louvor: louvor por hino, louvor por prostração. Substitui a «igreja». Vamos lá a ver: na Terra, estas pessoas não aguentam lá mui­ta igreja — uma hora e um quarto é o máximo, e uma vez por semana, o limite que estabelecem. Que é o mesmo que dizer, ao domingo. Um dia em sete; e nem assim eles esperam por ele com impaciência. E por isso... considerai o que o céu deles lhes proporciona: «igreja» que dura para sempre, e um Dia do Senhor que não conhece fim! Eles cansam-se rapidamente deste breve Dia do Senhor hebdomadário que por aqui têm, contudo alme­jam um eterno: sonham com ele, falam sobre ele, pensam que pensam que vão gostar dele — do fundo dos seus corações sim­ples, eles pensam que pensam que vão ser felizes nele!

Isto acontece porque eles não pensam de todo — eles só pensam que pensam. Porquanto não pensam — nem dois seres humanos em dez mil têm algo com que possam pensar. E, quan­to a imaginação... oh, bem, olhem para o céu deles! Aceitam-no, aprovam-no, admiram-no. Isso dá-vos a sua medida intelectual.

4. O inventor do céu deles despeja lá todos os países da Ter­ra, no que é uma verdadeira salgalhada. Todos estão em igualda­de absoluta, nenhum tem precedência sobre os demais, todostêm de ser «irmãos», têm de se misturar, de rezar juntos, tocar harpa juntos, soltar hosanas juntos - brancos, pretos, judeus, toda a gente, sem distinções. Aqui na Terra, todas as nações se odeiam umas às outras, e todas elas odeiam o judeu. Porém, to­da e qualquer pessoa piedosa adora o tal céu e quer entrar nele. Quer mesmo. E, quando está em pleno arroubo sagrado, essa pessoa pensa que pensa que, se ao menos estivesse lá, apertaria toda a populaça contra o seu peito e abraçaria e abraçaria e abra­çaria!

É um prodígio — o homem. Quisera eu saber quem o in­ventou.

5. Todo o homem na Terra possui alguma parcela de intelec­to, grande ou pequena — e, seja grande ou pequena, sente orgu­lho nela. Ademais, o seu coração enfuna-se à menção dos nomes dos majestosos líderes intelectuais da sua raça, e ele adora as his­tórias das suas esplêndidas realizações. Pois ele é sangue do seu sangue, e, ao enobrecerem-se a si mesmos, eles enobreceram-no a ele. Vede!, o que a mente do homem pode fazer! ele lacrimeja; e faz a chamada dos ilustres de todas as eras; e faz referência às imperecíveis literaturas que eles deram ao mundo, e às maravi­lhas mecânicas que eles inventaram, e às glórias com que eles re­vestiram a ciência e as artes; e perante eles se descobre, como se reis fossem, e presta-lhes a mais profunda homenagem, e tam­bém a mais sincera, que o seu coração exultante pode prover — desta forma exaltando o intelecto acima de todas as outras coisas no mundo e entronizando-o sob a arcadura dos céus, numa su­premacia inatingível. E depois concebe um céu onde não há um pingo de intelectualidade em lado nenhum!

É estranho, é curioso, é complicado? Por incrível que pare­ça, é exactamente como vos contei. Este sincero adorador do in­telecto e pródigo recompensador dos seus poderosos serviços aqui na Terra inventou uma religião e um céu que não fazem quaisquer elogios ao intelecto, não lhe oferecem quaisquer dis­tinções, não lhe concedem qualquer dádiva; na verdade, nem se­quer lhe fazem referência.

Por esta altura já tereis reparado que o céu do ser humano foi cuidadosamente pensado e construído de acordo com um plano absolutamente definido — e que este plano é, que ele de­verá conter, em laborioso pormenor, toda e qualquer coisa ima­ginável que seja repugnante ao homem, e nem uma única de que ele goste!

Muito bem, quanto mais prosseguirmos, mais este facto curioso se tornará evidente.

Tomem nota: no céu dos homens, não há exercícios para o intelecto, nada de que este possa viver. Uma vez ali, apodreceria num ano — apodreceria e federia. Apodreceria e federia — e nessa altura tornar-se-ia santo. É uma coisa abençoada — pois só os santos conseguem suportar os prazeres daquele manicómio

_______

1. Sabbath, no original (N. do T.)

(in Cartas da Terra, Bertrand Editora)

 

publicado por Augusta Clara às 14:00

editado por Luis Moreira às 00:03
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