Sara está na cozinha. Augusto no quarto na internet. Na sala a TV está ligada para ninguém. O volume do som é alto para que Sara cozinhe acompanhada e Augusto navegue ao som da publicidade. Na rua, o motociclista desce e sobe com grande aparato, num ruído tão ensudercedor que faz Augusto ir à sala subir o som da televisão. Na cozinha, o som do exaustor abafa todos os outros. Sara vai para a sala, senta no sofá, folheia o jornal, baixa o som da televisão. Augusto dá um berro:
- Não baixes o som que quero saber quando começa o futebol...
Irritada vai para a net, coloca os auscultadores, aumenta o som do computador para que ele seja mais alto do que o relato da TV.
Sara e Augusto sofrem de insónias. Só adormecem se tiverem a televisão ligada.
Sozinha no campo, Sara chora com medo do silêncio. Augusto ouve o futebol com o rádio colado ao ouvido.
Vejo este quadro vezes sem conta. O encontro com nós mesmos sempre adiado. Lembro de Rilke:
“Só existe uma solidão. É grande e difícil de suportar. E quase todos nós conhecemos horas em que de bom grado a cederíamos a troco de qualquer convivência, por muito trivial e mesquinha que fosse; até pela simples ilusão de uma pequena coincidência com qualquer outro ser, mesmo com o primeiro que aparecesse, ainda que assim resultasse talvez menos digno. Mas acaso sejam estas, precisamente, as horas em que a solidão cresce – pois o seu desenvolvimento é doloroso como o crescimento das crianças e triste como o início da Primavera – ela, sem embargo, não deve desconcertá-lo, pois o único que, por certo, nos faz falta é isto: Solidão, grande e íntima solidão. Mergulhar em si mesmo e, durante horas e horas, não encontrar ninguém…Isto é o que importa conseguir. Estarmos sós, como estivemos sós quando éramos crianças, enquanto á nossa volta andavam os grandes de um lado para o outro, enredados em coisas que pareciam importantes e grandes, só porque eles se mostravam muito atarefados, e porque nós não entendíamos nada dos seus afazeres.
“Ora bem, se um dia os adultos acabarem por descobrir quão pobres são as suas ocupações, e como as suas profissões são vazias e falhas de qualquer nexo com a vida, porque não seguir, então, olhando todas essas coisas com os olhos da infância, como se fosse algo exterior e estranho? Porque não olhar tudo de longe, da profundidade do nosso próprio mundo, desde os extensos domínios da nossa própria solidão, que é também trabalho e dignidade e ofício?”.
(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, sexta carta, de 23 de Dezembro de 1903)
. Ligações
. A Mesa pola Normalización Lingüística
. Biblioteca do IES Xoán Montes
. encyclo
. cnrtl dictionnaires modernes
. Le Monde
. sullarte
. Jornal de Letras, Artes e Ideias
. Ricardo Carvalho Calero - Página web comemorações do centenário
. Portal de cultura contemporânea africana
. rae
. treccani
. unesco
. Resistir
. BLOGUES
. Aventar
. DÁ FALA
. hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
. ProfBlog
. Sararau