Domingo, 30 de Janeiro de 2011

Quem são e o que pretendem os Irmãos Muçulmanos? - por Carlos Loures

A situação no Egipto agrava-se a cada momento. O número de mortos nos confrontos ocorridos principalmente no Cairo, Suez e Alexandria, quase atinge a centena. Os feridos, segundo a Al-Jazira (que entretanto foi proibida de operar no país) cifra-se em dois milhares e meio. De acordo com a Reuters a polícia abriu fogo sobre os manifestantes fazendo-o com projécteis reais e não com balas de borracha. O que querem os manifestantes?

 

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Quando falamos de integrismo, lembramo-nos logo do integrismo islâmico. No entanto há outros integrismos - Roger Garaudy, no seu livro Religiões em Guerra – O debate do século (1994), afirma «O islamismo é uma doença do Islão, tal como o integrismo é uma doença de todas as religiões.» «O integrismo é a pretensão de se possuir a verdade absoluta e, por conseguinte, de possuir não só o direito mas também o dever de a impor a todos, sem olhar a meios. O primeiro integrismo é o colonialismo ocidental.» Esta afirmação assenta como uma luva à atitude colonialista das potências europeias que pretenderam à outrance implantar em África e na Ásia as suas estruturas sociais – considerando essa prepotência um acto meritório, civilizador. Os Estados Unidos cometem o mesmo erro quando vão ao Iraque impor a democracia. Digo erro, embora o termo «erro» branqueie a verdade – não se trata de um erro, mas de uma deliberada violência.

O que está a acontecer no Egipto não me parece que seja, como expressão da vontade popular, estabelecer um regime democrático, como aconteceu em Portugal em 1974. Há dias, um tunisino, um berbere, salvo erro, homem rude, sem cultura formal, mas sabendo muito bem o que dizia, definia os acontecimentos de Tunes como uma «revolução popular». Mas a vontade popular naquele caso (e no do Egipto) é o de cortar com os vícios ocidentalistas, repondo a sharia como fonte única de jurisprudência e o Corão como paradigma social e político.

Desde 1789, nós europeus, identificamos a vontade popular com a democracia. Mas já antes, Jean-Jacques Rousseau, no seu Contrato Social, nos advertia contra a veleidade de querer repor um ideal criado na Grécia antiga em época tão diversa e com um formato sociológico tão distinto. Dois séculos e meio depois, por maioria de razão, as suas reticências contra essa transposição ainda mais se justificam. Mais grave do que esse salto no tempo, transpor os princípios da democracia para sociedades cuja tradição cultural, religiosa, social e jurídica, pouco ou nada tem a ver com a Grécia, é o assomo de um integrismo europeu, ocidental – achamo-nos possuidores da verdade absoluta e queremos impô-la a outros, como se lhes estivéssemos a fazer um favor. A civilizá-los, dizemos. E para os civilizarmos, destruímos a civilização deles, a cultura deles. E destruída a civilização, apagada a cultura, arrasados os templos – aparecemos a oferecer-lhes os nossos idiomas, as nossas tradições, religiões – tudo coisas que eles já tinham antes de os termos ido civilizar.

Analisar acontecimentos de outras esferas socioculturais à luz de princípios que só a nós, ocidentais, dizem respeito, conduz a conclusões distorcidas. É o que vejo acontecer relativamente ao que se está a passar no Egipto. Os Irmãos Muçulmanos, organização que está poir detra´s do movimento popular, vistos pelas lentes ocidentais, não poderão deixar de ser considerados anti-democráticos, fundamentalistas - errados, numa palavra. Vejamos então, muito sucintamente, quem são estes Irmãos Muçulmanos.

Em 1928, um professor egípcio, al-Banna, ergueu a sua voz contra a presença britânica e afirmou que só numa dupla perspectiva, política e espiritual, se poderia organizar uma oposição eficaz contra o colonialismo. Organizou então, em Ismaília, alguns fiéis islamitas. Defendiam o panarabismo, uma unidade entre os países árabes que deveria ir ao ponto de constituir uma só nação. Não esqueçamos que poucos anos antes a revolução laica de Ataturk extinguira o califado, depondo o sultão e proclamando a República. Al-Banna e os seus adeptos, propunham a reconstituição do califado e da grandeza otomana. Uma unidade baseada na religião, no islamismo. Terá sido o substrato desta ideia que levou Gamal Abdal Nasser em 1958 a apadrinhar a criação da República Árabe Unida (RAU), que uniu o Egipto e a Síria. A RAU foi desmantelada em 1961.

Talvez o fracasso deste projecto adviesse da circunstância de a componente religiosa não ter sido contemplada. Porque os Irmãos Muçulmanos entendem que o Islão se debe sobrepor a tudo e estar presente em todos os aspectos da vidara. A sharia, a lei islâmica regulando-se pelo Corão. O movimento foi sendo divulgado nas mesquitas e expandiu-se por toda a região ganhando seguidores em todos os países muçulmanos. Defendem o regresso à pureza do Islão que o contacto com as civilizações ocidentais fez perder. Segundo eles, a religião tem de estar presente em todos os aspectos das vidas dos crentes.

A revolta popular no Egipto é animada por este espírito. Os soldados estão a aderir à sedição porque são muçulmanos e pensam como o povo. Estabelecer analogias com a Revolução portuguesa de 1974 é criar equívocos. A recusa do modelo democrático ocidental está implícita neste movimento. Mubarak é acusado de estar demasiado influenciado pelo chamado Ocidente. O simulacro de democracia existente no Egipto desaparecerá se o movimento triunfar. As cedências às pressões norte-americanas e o tácito convívio com a política sionista de Israel, terão os dias contados.

Porém, como ontem Josep Vidal dizia num comentário, na medida em que exprime a vontade popular, em que é a expressão do desiderato das maiorias, podemos considerar esta revolta como democrática.

Embora pretenda acabar de vez com a democracia.

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publicado por Carlos Loures às 12:00

editado por estrolabio às 14:11
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12 comentários:
De Luis Moreira a 30 de Janeiro de 2011
Bem visto! Se é o que o povo quer...mas em termos globais as melhorias não seriam nenhumas. Mas ver derrubar um ditador dá gozo.
De ethel feldman a 30 de Janeiro de 2011
Obrigada, Carlos. Tenho sempre medo das análises feitas na base do nosso olhar voltado em exclusivo para a nossa realidade ocidental.
De augusta clara a 30 de Janeiro de 2011
A propósito da ocidentalização forçada, Orhan Pamuk lembra, no seu "Istambul", a imposição de Ataturk do uso exclusivo da língua turca numa cidade onde se falavam cinco línguas: turco, inglês, italiano, ladino e uma outra de que não me lembro agora qual (francês? grego?). Foi, igualmente, imposta a maneira de vestir ocidental. Foram, também, destruídas todas as casas típicas do Império Otomano, construídas à beira do Bósforo, sem que se tenha minimamente preservado a memória arquitectónica cultura a esse nível.
De augusta clara a 30 de Janeiro de 2011
Eu sei, Carlos, que extrapolar o que se está a passar no Cairo para o 25 de Abril é errado. Foi, apenas, uma exaltação minha mas, de facto, os militares egípcios estão com o povo porque são muçulmanos como ele e, por isso, reagem às políticas ocidentalizadas de Mubarak . Continua a falar-nos do evoluir dos acontecimentos e das suas origens. Esses teus artigos são sempre um prazer tanto pelo que nos ensinam como pela maneira como estão escritos.
De Muito bons artigos Carlosadão ctuz a 30 de Janeiro de 2011
Muito bons artigos Carlos. Como sempre. Estas situações são sempre muito complexas. De qualquer modo e de uma forma muito simplista, fico sempre contente quando antevejo possibilidades de Israel e os EU levarem um pontapé no cu, aqui ou em qualquer parte do mundo.
De Carlos Loures a 30 de Janeiro de 2011
Obrigado a todos pelos vossos comentários.

Adão Cruz, também gosto de ver os Estados Unidos e Israel levarem pontapés nos respectivos cus. Só que pontapear potências que dispõem de arsenal nuclear, às vezes, não é bom para a saúde...

Daí a minha preocupação. O Egipto é logo ali, ao virar da esquina.
De Paulo Rato a 31 de Janeiro de 2011
Entre ver Israel e os EUA a "não" levar pontapés no cu e mulheres a serem apedrejadas até à morte por irem (mesmo hipoteticamente!?) para a cama com quem lhes apetece, prefiro a primeira hipótese.
Entre o triunfo de uma chusma de fanáticos que aproveitam o justo descontentamento dos povos para imporem regimes tão ou mais fascistas que os vigentes, ainda por cima misturando estado e religião, perseguindo os "infiéis", acorrentando os "fiéis" à "sua" religião por toda a vida - sob pena de fatwas lançadas por caquécticos que já nasceram com Alzheimer -, conseguindo (o que é uma proeza) opor-se à liberdade como o pior dos regimes nazi-fascistas, não sei se não prefiro Mubaraks...
Exércitos, como o argelino, a anularem eleições em que o "povo" elege estes idiotas - que se cagam de medo perante a possibilidade de as mulheres poderem exprimir livremente a sua identidade e, sobretudo, (alá nos proteja!) a sua sexualidade - merecem-me contrariados aplausos.
O Islão surge-me como uma das mais abjectas invenções machistas, conseguindo ser a mais cruel e imbecil de todas as religiões, nomeadamente, impondo intoleráveis penas de tortura, "ditadas" por um estranho deus que precisa dos homens para o defenderem... e, insisto, escravizando as mulheres e subjugando-as completamente à vontade de machões acobardados. Só consigo respeitar os seus seguidores que claramente repudiam os ditames que representam um retrocesso civilizacional, conseguindo retirar dos textos "sagrados" tudo o que contêm de retrógrado (o que não é nada fácil).
Ao menos os "cristãos", quando enveredaram por caminhos idênticos, fizeram-no distorcendo claramente a doutrina do Nazareno, que diziam seguir! E acabaram por ter de recuar: embora muitos mantenham idêntico fanatismo, pelo menos deixaram de o poder impor através do domínio do Estado - mas não deixaram de ter saudades do passado, atenção!
Os islamistas evocam o que está mesmo escrito no Corão (tão apocrifamente como nos Evangelhos, de resto, só que o conteúdo é muito pior...)
O apoio declarado aos "libertadores" do Egipto, por parte da Arábia Saudita e do Irão, tirou-me as poucas dúvidas que tinha sobre quem manipula os descontentamento popular e o que se pretende alcançar: o triunfo de um tipo de estupidez absoluta (como é qualquer fanatismo), que é a pior das ditaduras.
A oposição ao imperialismo americano e à ocupação sionista dos territórios palestinianos não nos pode cegar perante os perigosos venenos que escondem certos movimentos "espontâneos"... Estes "democratas" não me convencem nem um bocadinho... Pobres povos que tais mentores têm!
De augusta clara a 31 de Janeiro de 2011
Estou de acordo, Paulo. Os povos daquela zona estão metidos no maior dos dilemas: ou são os palestinianos que são desfeitos ou, em alternativa, as mulheres dos países governados pelos fundamentalistas islâmicos. O que fazer no meio disto?
De Luis Moreira a 31 de Janeiro de 2011
Paulo, para já temos os ditadores em fuga e o povo na rua. Vai para pior? Se calhar vai o que começa a dar muita razão a Israel . E se o povo quizer mesmo, ter regimes extremistas islâmicos?
Eu como já escrevi muitas vezes não posso com os muçulmanos, respeito-os, espero que me respeitem a mim e, ainda mais na nossa terra, quando cá estão. É, bom ,ouvir dizer que afinal é fundamental a democracia burguesa acautelar-se e defender-se de regimes que apedrejam mulheres...

E se tu escrevesses estes comentários como textos, bem interessantes?
De Carlos Loures a 31 de Janeiro de 2011
Não se trata de ir para melhor ou para pior, Luís, mas sim de que é completamente utópico pretender que os muçulmanos aceitem uma democracia como a nossa. De Nasser a Mubarak, há uma linha política «democratizante», «ocidentalizante» que desagrada aos islamistas. Os Irmãos Muçulmanos, com todo o seu fundamentalismo, correspondem aos anseios das maiorias. E, Paulo Rato, as mulheres apedrejadas até à morte, na sua maioria, aprovam a sharia e a imposição corânica em todos os actos das vidas do crentes. Não podemos ser como o escoteiro que obrigou a velha a atravessar a rua. Os nossos conceitos, a nossa moral, não se aplicam naquele contexto. Porém, considerar que no Egipto está e ocorrer uma revolta democrática, é uma má leitura da situação. A revolta só é democrática na medida em que corresponde à vontade da maioria. O paternalismo de Mubarak, vai ser substituído pela inflexibilidade dos clérigos. Com Israel ali ao lado, não prevejo nada de bom - e isto não é um espectáculo, Luís - pode afectar toda a região e, quem sabe? - todo o mundo.
De Luis Moreira a 31 de Janeiro de 2011
Mas, então Carlos, o papel dos US na "estabilidade" na região é mesmo fundamental. Alguém tem que mandar, é velho como o mundo, o problema é que as alternativas são sempre para pior. E, face ao que dizes, que dizer da situação de Israel? Tem razão em se defender com unhas e dentes.

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