Terça-feira, 1 de Fevereiro de 2011

ANTÓNIO BOTTO NO BRASIL – 15– por António Sales

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Percurso Esgotado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Continuação)

 

 

 

 

À meia-noite uma multidão espalha-se pela Baía de Guanabara festejando ruidosamente o novo ano de 1959, último de uma década tempestuosa: conflitos, doenças, hospitais, dívidas, despejos, pobreza, um gigantesco saco de maleitas que o perseguiu sem que os êxitos, poucos, o tenham compensado. Um tempo longo, António, sem nada a acrescentar à tua obra de Lisboa. O que há são textos, poemas soltos, artigos, ensaios, rascunhos de memórias, trabalhos sem unidade que confiram carácter até porque o livro Ainda não se Escreveu não é significativo.

 

Com quem brindaste no instante simbólico de mandares para o lixo o tempo das más recordações e erguer a taça das ilusões reconquistadas, agora que o destino parece querer recolocar paz e ordem no teu espírito? Com amigos, certamente, mas com Carminda em particular, selando a esperança de ambos. Parece um pacto bizarro, no mínimo insólito, o da vosso relação íntima de mais de trinta anos que nada teve a ver com paixão, prazer ou atracção física, coisas arredadas pela tua homossexualidade confessada e consentida por Carminda desde a primeira hora. Neste caso a palavra amor traduz uma relação afectiva cuja raiz platónica não impediu, antes reforçou, laços de mútua generosidade e sacrifício.

 

Carminda da Conceição Rodrigues foi a mulher da sua vida não pela beleza mas pelos anos que viveu com o poeta participando dos seus êxitos e fatalidades com devota admiração. Sem desfalecimentos, senhora de uma coragem silenciosa, foi a aduladora sombra feminina tornando menos agrestes as amarguras e angústias consequentes das agitações do seu feitio. Nesse longo e doloroso percurso foi sua mulher de facto e não de passagem. Fiel apesar da solidão sexual, generosa na humildade espiritual da sua presença, paciente na consciência do seu sacrifício. Se não lhe desejaste o corpo ela ofereceu-te a alma compreendendo o teu comportamento e criando em teu redor, com a sua companhia, um poema sem nome deitado na trajectória da tua vida. Por conseguinte é justo que inscreva neste livro algumas linhas que a retirem do esquecimento dos humildes, elevando a simplicidade de um caso de amor dedicado capaz de dar sem pedir nada em troca.

 

Nesta história tu não foste menor, António, foste mesmo surpreendentemente amante no sentido de um companheiro que retribuiu oferecendo de si o carinho e a dignidade que Carminda merecia. Apesar do teu exacerbado narcisismo não a repudiaste nem a desprezaste, porque a teu lado a quiseste como tua mulher mesmo nos acontecimentos públicos da tua vida. É difícil interpretar este comportamento generoso num homem de vincado egoísmo pela sua personalidade. Em tudo quanto escreveste ou disseste a seu respeito não se encontra um queixume, uma palavra de crítica, um desabafo onde a desmereças. Pelo contrário, Carminda surge como a companheira com quem divides sacrifícios mas também repartes bons momentos, ou para quem procuras encontrar meios de minorar a tristeza dos dias de chumbo. Nas piores situações, quando o desânimo e a revolta tomam conta da razão, não se encontra um arrependimento por essa união em que as dores do viver deram asas aos sentimentos.

 

Fica dessa relação uma imagem de indefectível amor como se qualquer coisa inexplicável vos ligasse. Custa-me defini-la de felicidade, palavra aplicada às alegrias e fortunas da vida quando tudo corre sem sobressaltos. Não obstante, entendo que também pode existir felicidade no sofrimento quando este nos fortalece e aguenta unidos apesar dos erros e desaires. Embora vaidoso, megalómano, estou convicto que na solidão das tuas mágoas choraste algumas vezes as lágrimas de ambos, lágrimas de um homem que pagou caro os defeitos do seu carácter mas soube, sem hesitações, minorar o silencioso drama da sua companheira de uma vida.

 

Mal despontara o ano de 1959, mais precisamente no mês de Fevereiro, já o nosso poeta teria transferido novamente a residência, agora para a Avenida Princesa Isabel (onde fazia tenda a portuguesa vendedora de galinhas que lhe emprestara o dinheiro para o médico), visto ser esse o remetente da segunda carta que Botto endereça a Salazar. Nesse mês adquire na Casa Samuel Rodrigues (vendia rádios, refrigeradores, pianos), sedeada na Avenida Copacabana, um conjunto de artigos no valor de 44.000 cruzeiros, entregando 20.000 à vista e o restante em prestações com letras de 2.400 cruzeiros cada. Parece, então, que as coisas iam melhor. Em termos de saúde sem dúvida, de bem-estar deixara para trás as casas miseráveis onde até aí vivera, de dinheiro nem falo pois adquirira o hábito de viver emprestado com “honrados” calotes a que habituara os amigos. De qualquer modo tudo aponta para uma certa estabilidade capaz de proporcionar a recuperação da sua obra criando algo de novo o que até aqui não tinha acontecido. Os inéditos careciam de unidade, estrutura literária, inspiração capaz de representar renovação na sua obra. Títulos existem vários, indicações também, mas tudo sem sequência nem orientação. Não se encontra um fio, uma identidade, uma forma de comunicação literária entre o seu mundo e o dos outros.

 

Embora António Botto não deixe transparecer mas a glória advém-lhe do passado. É possível que o excessivo culto pela sua pessoa o impedisse de tomar consciência da debilidade que a sua imagem literária ia assumindo, admito, porém, vislumbres dessa consciência escondida dos outros como de si próprio. Resulta daqui uma frustração maligna em relação ao Brasil consequente da inadaptação ao tipo de vida, ao carácter temperamental e alegre do povo, àquela imensidão que confere uma dimensão do mundo bastante para além do nosso umbigo. Botto foi um deslocado em terras brasileiras e o êxito surpreendente da chegada só serviu para alimentar ilusões que acabaram por marcar a sua alma com a agonia da decadência.

 

Nesta trajectória biográfica a aproximar-se do fim compreendo melhor a personalidade do poeta que imolou o seu talento pela vaidade. Contudo, afirmou-se sem lançar anátemas e infelicidade sobre destinos alheios. Gerou invejas e semeou antipatias com as suas mentiras e inimigos com a sua má-língua, não digo inocente mas participativa das tertúlias literárias e que Lisboa adorava. Os actos mais críticos e prejudiciais, as atitudes mais frívolas e imponderadas, a obsessiva paixão pelo sucesso e pela glória constituíram um roteiro de provocações contra si próprio. O grande inimigo foi o prazer exacerbado com a sua pessoa, a grande fraqueza o luxo da celebridade, a maior pobreza a sua falta de convivência com a humildade. Nada disto, porém, ofusca a beleza da maioria dos seus poemas e outros textos.

 

Tinhas talento? Certamente que sim. Os teus detractores podem querer apagar a importância da tua obra poética (sobretudo) mas não podem riscá-la do movimento modernista português dos anos vinte. Aliás, sempre soubeste isso, acontece que não soubeste foi gerir o teu talento, a tua arte. Agora que esse talento está gasto aproveita ainda a esperança em o reanimares. Se puderes aproveita-a bem porque a esperança será intemporal enquanto a felicidade, pelo contrário, é curta e a tua está esgotada.

 

(continua)

 

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Poema de Cinza

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

À memória de Fernando Pessoa

 

Se eu pudesse fazer com que viesses

Todos os dias, como antigamente,

Falar-me nessa lúcida visão –

Estranha, sensualíssima, mordente;

Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,

Meu pobre e grande e genial artista,

O que tem sido a vida – esta boémia

Coberta de farrapos e de estrelas,

Tristíssima, pedante, e contrafeita,

Desde que estes meus olhos numa névoa

De lágrimas te viram num caixão;

Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,

Voltávamos à mesma: Tu, lá onde

Os astros e as divinas madrugadas

Noivam na luz eterna de um sorriso;

E eu, por aqui, vadio da descrença

Tirando o meu chapéu aos homens de juízo …

Isto por cá vai indo como dantes;

O mesmo arremelgado idiotismo

Nuns senhores que tu já conhecias

- Autênticos patifes bem falantes …

E a mesma intriga; as horas, os minutos,

As noites sempre iguais, os mesmos dias,

Tudo igual! Acordando e adormecendo

Na mesma cor, do mesmo lado, sempre

O mesmo ar e em tudo a mesma posição

DE condenados, hirtos, a viver –

Sem estímulo, sem fé, sem convicção …

 

Poetas, escutai-me! Transformemos

A nossa natural angústia de pensar –

Num cântico de sonho!, e junto dele,

Do camarada raro que lembramos,

Fiquemos uns momentos a cantar!

 

(in As Canções de António Botto – ed. Livraria Bertrand, pág. 245, Lx. 1956)

 


 

 

 


publicado por João Machado às 23:55
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