Os Últimos Anos de Infortúnio
(continuação)
O atentado contra Carlos Lacerda (1954), onde morre o major da aeronáutica Rubem Florentino Vaz, confere ao descontentamento político uma dimensão violenta e perigosa. Café Filho não consegue acalmar os protestos contra uma economia em descalabro pela constante desvalorização da moeda. A mediocridade da geração de políticos é evidente como evidente se torna a superioridade dos intelectuais saídos da Geração 45 e do Concretismo que darão às artes e às letras obras de Cândido Portinari, Óscar Niemer, Villa-Lobos, João Cabral de Melo Neto, Bueno de Rivera, Lasa Segall, Péricles da Silva Ramos, Manuel Bandeira e outros. Graciliano Ramos (Vidas Secas, Memórias do Cárcere) morre em 1953 e o curioso poeta Ascenso Ferreira, falecido em 1955 (Catimbó e Outros Poemas), revela-se, sobretudo, na interpretação da sua poesia através de recitais. Augusto Schmidt, escritor modernista (Fonte Invisível), torna-se grande amigo de António Botto assim como José Gerardo Vieira (A Mulher que Fugiu de Sodoma), mas são os murais de Cândido Portinari, na sua força telúrica de cores e formas, que levarão à glória este pintor autodidacta que viria a falecer em 1962.
Do maciço da Tijuca o panorama do Corcovado é de uma beleza esmagadora a esconder a miséria das favelas sob o tecto maravilhoso que a natureza deu e o homem sujou. Não obstante, as eleições de 1955 vão trazer ao poder uma nova direcção, prestígio, desenvolvimento, motivação popular que coloca com o seu voto na presidência da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira. Ganha o futuro do Brasil que conhece a implantação da indústria automobilista, medidas económicas e sociais inovadoras e o sonho antigo de criar de raiz a capital no interior. Voo luminoso, começado em 1956, tem apogeu em Brasília inaugurada em 21 de Abril de 1960. Nunca como então as nossas relações estiveram tão próximas e prometedoras. Foi essa diplomacia de proximidade que levou o embaixador do Brasil a estar presente nas comemorações do 25º aniversário da posse do teu amigo Manuel Gonçalves Cerejeira como cardeal-patriarca de Lisboa.
O António Ferro, após a última exposição de arte no SNI seguiu a diplomacia e andou por essa Europa fora até falecer há pouco tempo. Diz-se que “o velho” mandou-o viajar porque estava farto dele. D’Assumpção, Sá Nogueira, Nikias Skapinakis são os novos provocadores da pintura irritando os conservadores já dispostos a ceder snobmente às obras da Vieira da Silva. O Almada, o nosso do Manifesto Anti Dantas, pintou o retrato do Fernando Pessoa, condenado à celebridade, pelo menos entre nós. O Jorge Brum do Canto filmou Chaimite e o amigo António Lopes Ribeiro foi-se ao Eça com O Primo Basílio. Surrealistas entretêm-se em discussões mesquinhas com o Cesariny à cabeça, sobretudo depois do desaparecimento do António Maria Lisboa. A sensação do grupo é Alexandre O’Neill (gente nova, António, que desconheces), poeta reinventor da palavra e da ironia com Cadernos de Poesia. A Agustina e a Irene Lisboa escreveram duas obras de referência: A Sibila (1954) e Uma mão Cheia de Nada, Outra de Coisa Nenhuma (1955). Aí vão para tu leres homem, ao menos a ver se deixas esse torpor! Eh!, chegou aqui a Ciranda de Pedra da Lígia Fagundes Teles, mas os grandes escritores brasileiros que se vendem por cá são o Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Erico Veríssimo e, naturalmente, Josué de Castro e Jorge Amado, estes na candonga. A PIDE apreendeu a edição de Quando os Lobos Uivam, do Aquilino. A peça Alguém terá de Morrer, do Francisco Rebello, é aplaudida no Trindade, mas se queremos vibrar, sentir um cheiro diferente sobre as tábuas do palco temos de aplaudir O Crime de Aldeia Velha do Bernando Santareno. A televisão iniciou as transmissões regulares tornando-se a coqueluche das casas dos ricos e o divertimento nocturno dos cafés dos pobres. O arménio Calouste Gulbekian legou um império a Portugal, salvo seja, deixando em testamento a vontade de criar uma fundação com o seu nome. Sebastião da Gama, jovem poeta de vinte e sete anos, finou-se no início de uma obra prometedora Recordas-te do Alves da Cunha, da Maria Matos, do Nascimento Fernandes? Puseram de luto o teatro.
A rua Almirante Alexandrino, nº 154, no bairro popular de Santa Teresa, onde o casal se instala em Outubro de 1955, irá ser o palco de mais uma situação conflituosa e amarga no curto futuro do poeta. Por cima do apartamento viviam uma brasileira e um galego, «pessoas de xadrez», como Botto as classificava, cujo sujeito odiava portugueses. Provavelmente, alguém da família Martinez, ou ele próprio, sofrera em Lisboa humilhações que ficaram gravadas para a vida inteira. Há rancores de estimação que nos consomem pelo que portugueses por perto eram veneno pela certa. Botto está, assim, em má vizinhança. A dupla desafia a paciência de um oriental quanto mais a de um poeta doente. Arrastam móveis, divertem-se com música alta, esmeram-se em actividades ruidosas fora de horas, mantendo a estratégia do permanente desassossego. O dia a dia torna-se um inferno pelo que António queixa-se ao senhorio Manuel Vitorino de Almeida que não só faz ouvidos de mercador como lhe aumenta a renda dos 1.700 cruzeiros para 2.500. Uma exorbitância! Proclama o poeta, comprando um litígio com a “caridosa alma” do senhor Manuel. Os Martinez atacam-no com o barulho e o Manuel com a renda, fazendo a tormenta do português. Desde há muito, sabemos Botto portador de uma inflamação auditiva grave a piorar porque o stress domina-o, a tensão arterial eleva-se e na manhã de domingo 23 de Outubro de 1955, pelas onze horas, António Botto adoece de modo a gerar inquietação: «Quando o médico chegou eu já estava surdo e quase no outro mundo», lamenta-se. No dia 26 de Outubro é internado no Hospital da Beneficência Portuguesa, começando com estes acontecimentos a sua descida ao purgatório.
A imprensa dá notícia chamando-lhe “o grande poeta universal”. «Está ali a tratar-se de uma doença que os médicos não declaram, mas não vítima de um derrame cerebral» como chegou a ser noticiado. Mas a maleita é grave e o poeta reage com lentidão. Visitam-no colegas de letras e jornalistas. D. Carminda mantém-se a seu lado. Os dois únicos semanários da colónia portuguesa pouco escrevem ou noticiam enquanto a imprensa brasileira manifesta-se sobre o acontecimento com «todo o louvor e mágoa».
(continua)
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Hoje vamos ouvir "O Mais Importante Na Vida", de António Botto, dito por Manuela de Freitas:
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