(Continuação)
Já aqui contei esta história, mas acho que faz sentido incluir uma nota de humor nesta série de textos em que, mais do que historiar, sumarizei os movimentos de luta armada contra a ditadura. A história da «Operação Papagaio» é muito curiosa, pois para além dos seus contornos anedóticos, mostra-nos que grande maioria dos intelectuais portugueses, mesmo os surrealistas dos quais não se esperavam grandes atitudes de resistência, estavam contra o regime, odiavam a ditadura e aspiravam pela liberdade.
Quando se fala de luta armada de civis contra o salazarismo, recorda-se a ARA e a sua espectacular ofensiva contra o aeródromo militar de Tancos, destruindo 28 aeronaves, aviões e helicópteros, ou as acções das Brigadas Revolucionárias contra as instalações da NATO ou ainda a LUAR, de Palma Inácio, com o seu audacioso plano de tomada da cidade da Covilhã. A «Operação Papagaio», inconsequente, com o seu quê de chaplinesca, mal organizada, foi, no entanto, um espelho cruel de toda a resistência, a militar incluída até que as referidas organizações entraram em cena. Esta conspiração de poetas correu mal - outras organizadas por generais, com meticulosas "ordens de operações" e com unidades militares envolvidas, não correram melhor. Porém, quem queira levar um pouco mais longe a investigação sobre esta operação, deparará com uma enorme carência de fontes. E, as poucas que existem, apresentam algumas contradições entre si.
Luiz Pacheco em “Prazo de Validade” (Contraponto, 1998) dedica um capítulo à "Operação Papagaio". Tem muitas falhas, a começar pela data. Logo no começo do texto, diz que tudo aconteceu quinze anos antes da Revolução de Abril, o que situaria os acontecimentos em 1959. E isto não pode ser verdade. Em 1959, ninguém daquele grupo foi preso e nos dois anos seguintes também não. Segundo os meus dados, inclinar-me-ia para 1962 ou mesmo em 1963. Em Dezembro de 1961 saí de Lisboa e, à cidade onde trabalhava, chegou-me a notícia (salvo erro, através do jornalista Adriano de Carvalho) da prisão de alguns amigos escritores do café Gelo na sua maior parte.
Em Agosto tive as habituais férias. Passava-as com a família numa casita perto da Caparica. Não tinha carro (nem havia ainda a ponte) e uma manhã em que fui a Lisboa tratar de qualquer assunto, no regresso à Costa encontrei o Virgílio Martinho (1928-1994), o autor de «O Grande Cidadão», que morava em Almada ou nos subúrbios. Fizemos juntos a travessia no «cacilheiro» , onde apanhávamos os respectivos autocarros.
Foi o Virgílio que pela primeira vez me descreveu no que consistira a «Operação Papagaio», nome de código para uma tentativa de derrube da ditadura, feita por gente do chamado grupo do Gelo e do Royal – o António José Forte (1931-1988), o Renato Ribeiro, o Manuel de Castro (1935-1971) e o Mário Henrique-Leiria (1923-1980), que não pertencia ao grupo, mas era grande amigo de alguns dos seus elementos, como era o caso do Forte. Aliás, o Pacheco esqueceu o Mário-Henrique Leiria que, tanto quanto julgo saber, foi o elemento principal. Porque há uma outra fonte - a do nosso Fernando Correia da Silva, amigo íntimo do Mário Henrique-Leiria e que dele terá escutado a narração dos acontecimentos. O Fernando dá a operação como realizada o que comprovadamente é um equívoco (talvez da sua memória) – a operação abortou – aí o que o Martinho me contou e o que Pacheco diz no seu livro coincide totalmente. Quanto ao Forte, tendo sido seu colega na Fundação Gulbenkian, de onde saí em 1971, demo-nos até à sua morte, em 1988, almoçando juntos em regra uma vez por mês, além de vários passeios de fins-de-semana que demos juntos, eu, ele, a minha mulher e a sua, a artista plástica Aldina. Mas, tal como o Mário, o Forte não gostava de falar neste assunto. Se alguém aludia ao caso, ria-se e não adiantava a conversa.
O Mário era «entendido em armas», tinha um fascínio por pistolas, espingardas, granadas. Uma vez vi em sua casa um velho revólver, um Smith & Wesson do século XIX, como o Mário me esclareceu. Estava dentro de um frasco enorme numa solução à base de petróleo, mas parecendo um espécime conservado no Museu Bocage. Comprara-o na Feira da Ladra, ia desmontá.lo peça por peça e depois de remontado ficaria «operacional», garantiu-me. Não sei se ficou e foi uma das armas da «operação». Os outros. eram o mais civis que é possível. O Renato percebia alguma coisa do assunto, pois fora durante a 2ª Guerra oficial miliciano nos Açores, chegando ao posto de tenente e servindo na arma de Artilharia: foi degradado em Tribunal Militar, baixando a soldado raso devido a uma história rocambolesca ocorrida em São Miguel, em que teria protegido um soldado da sua bateria envolvido num crime de morte. Contava-se também que, antes de ser castigado, fizera fogo com uma anti-aérea sobre um avião anfíbio norte-americano, um Catalina. Não foi castigado porque, estando a comandar a bateria, tinha ordem para atirar sobre todos os aviões não-identificados, o que era o caso, embora essa ordem fosse letra morta. O Renato era uma inesgotável fonte de histórias.
A versão de Pacheco em «Prazo de Validade»(1998), não coincide totalmente com a que o Virgílio me contou. Mas o Pacheco não esteve envolvido na operação. O Virgílio também não, mas estava mais inteirado. Mais coincidente é a que Fernando Correia da Silva conta, em «Vidas Lusófonas», na sua biografia de Mário-Henrique Leiria (1923-1980), pois talvez a tenha ouvido do próprio Mário que esteve comigo no mesmo partido, mas nunca me falou no assunto. Em todo o caso, Pacheco dá-nos uma pista importante – Luiz Filipe Costa terá feito «uma artigalhada», segundo a pachequiana expressão, sobre o tema, publicando-a num semanário, o Extra, de existência efémera e de que não existem exemplares na Hemeroteca. Numa conversa com o Pacheco há muitos anos numa esplanada do Parque Eduardo VII (durante uma Feira do Livro) em que nos referimos de passagem a este caso, deu-me a entender que o Luís Filipe Costa estaria por dentro da operação. O que faria sentido, pois era locutor do RCP. Luís Filipe Costa, um homem ligado ao 25 de Abril (foi ele que se encarregou de transmitir as senhas que serviram de arranque às operações). Só ele poderá esclarecer-nos. Com todas estas limitações e interrogações, vamos lá então tentar uma quarta versão, subsidiária das outras três: a versão do Pacheco, a do Correia da Silva (herdada do Mário-Henrique Leiria e a minha recordação da conversa com o Virgílio no cacilheiro.
Na Primavera de 1962 (inclino-me mais para este ano), já tinha começado no ano anterior a Guerra Colonial, um grupo de escritores, surrealistas na sua maior parte, do qual faziam parte pelo menos aqueles que já citei, gizou um plano simples, mas que parecia eficaz. Com a casa do Mário-Henrique a servir de base de apoio, pois tinha uma moradia no largo principal de Carcavelos, junto da igreja e do Café São Jorge, transportando-se em dois carros (não sei de quem, pois nenhum dos citados tinha automóvel), cerca das dez da noite, atacariam o Rádio Clube Português na Parede. Dispunham de informações dadas do interior estação (Luís Filipe Costa?).
Sabia-se que àquela hora era posta a rodar uma bobina com um extenso programa do Igrejas Caeiro, «Os Companheiros da Alegria», e que até cerca da meia-noite só haveria um contínuo na estação, pois inclusivamente os intervalos para os blocos publicitários estavam gravados nessa bobina. A ideia era entrar, prender e amarrar o homem e pôr a rodar outra bobina que arrancava com o hino nacional e depois com uma voz grave que dizia, mais ou menos: «Interrompemos o nosso programa, para informar que se verificou um levantamento de tropas, havendo neste momento diversas unidades militares a caminho de Lisboa. Pedimos calma à população…, etc, etc. Marchas militares e, passados minutos, novo comunicado. Os comunicados seriam cada vez mais frequentes e alarmistas, pedindo-se num dos últimos à população para se reunir no Rossio para saudar o advento da democracia, pois Salazar fora derrubado e preso, dizia o «locutor» - Vivas às Democracia e, de novo, «A Portuguesa».
Claro, que podia acontecer que alertadas as autoridades, a estação fosse ocupada e a bobina revolucionária fosse retirada antes de chegar ao fim. No fundo, o plano baseava-se na mesma ideia que Orson Welles, tivera com «A Guerra dos Mundos», em 1938, provocando o pânico nos ouvintes, que acreditaram que a Terra estava a ser invadida por marcianos. Neste caso, os marcianos eram as tais unidades que do Norte vinham sobre Lisboa, com a adesão maciça e crescente das unidades locais e a apoteose final no Rossio.
Porém, quando à hora marcada os conspiradores chegaram junto dos portões da estação, tiveram uma desagradável surpresa – no ringue estava a disputar-se uma partida de hóquei em patins, com muita gente a assistir e polícia de serviço para manter a ordem. O RCP tinha instalações desportivas onde se disputavam provas nacionais – de hóquei, basquete, andebol, ginástica, etc. Grande balbúrdia dentro dos carros, uns queriam avançar mesmo naquelas condições, mas a maioria decidiu sensatamente adiar o ataque para a semana seguinte, quando novamente estivesse a ser emitido o programa do Igrejas Caeiro.
Só que nos cafés onde paravam, nomeadamente o Café Royal do Cais do Sodré, o Gelo do Rossio e a Brasileira do Chiado, a «Operação Papagaio» era, desde há semanas, discutida e comentada de mesa para mesa como coisa trivial. Sobretudo na Brasileira, a dois passos da PIDE, paravam muitos agentes. Resumindo: os guerrilheiros surrealistas foram todos dentro. A polícia achou graça à ideia, nunca tinham por ali passado políticos como aqueles, poetas meio malucos que davam respostas inusitadas e transformavam os sinistros autos de perguntas numa espécie de «cadavre-exquis». Durante os interrogatórios, aconteceu por diversas vezes os agentes saírem dos «gabinetes de investigação» e virem rir para o corredor. Não houve torturas. Não se formou processo. Umas chapadas, umas ameaças, e ficaram por ali. Tendo apanhado as armas que o Mário com tanto trabalho arranjara, a PIDE foi-os soltando. A «Operação Papagaio» fracassara. Como já atrás disse, tal como a maioria das que antes de 25 de Abril foram tentadas. Generais e figuras políticas da oposição não terão muitas razões para rirem dos poetas surrealistas. Só a ARA, as BR, a LUAR e, naturalmente, o MFA, fizeram melhor.
Cerca de dez anos depois, em Setembro de 1972, as forças armadas brasileiras, nomeadamente os fuzileiros, desencadearam uma grande operação contra os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil que estavam acoitados numa região a Norte de Goiás. Chamaram-lhe «Operação Papagaio»: Mas, embora com o mesmo nome de código, não teve graça nenhuma esta operação. As forças da sinistra ditadura dos coronéis mataram diversos guerrilheiros comunistas e feriram muitos outros durante a investida.
(Continua)
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