Terça-feira, 18 de Janeiro de 2011

Cartas da Terra - por Mark Twain

 

 

Coordenação da Augusta Clara de Matos

 

 

Boas e Más Memórias

 

 

 

 

 

 

 

 

por Mark Twain


 

 

Noé e a sua família foram salvos — se é que se pode chamar a isso uma vantagem. Pus o se aí no meio pela razão de que nun­ca houve uma pessoa inteligente com sessenta anos de idade que aquiescesse a viver novamente a sua vida. A sua ou a de outra pessoa.

 

A família foi salva, sim, mas não estava cómoda, pois estavam todos cheios de micróbios. Cheios até às orelhas; gor­dos deles; obesos deles; distendidos como balões. Era um estado desagradável, mas não podia ser evitado, já que era preciso salvar micróbios suficientes para abastecer as futuras raças do homem com doenças desoladoras, e não havia senão oito pessoas a bor­do para servirem de hotéis para eles. Os micróbios eram de lon­ge a parte mais importante da carga da Arca, e a parte em rela­ção à qual o Criador se sentia mais ansioso e com a qual estava mais enfeitiçado. Tinham de ter boa alimentação e quartos agra­dáveis.

 

Havia germes tifóides, e germes da cólera, e germes da hidrofobia, e germes do trismo, e germes da consumpção, e ger­mes da peste negra, e algumas centenas de outros aristocratas, criações especialmente preciosas, áureas portadoras do amor de Deus pelo homem, bem-aventuradas dádivas do enfeitiçado para os Seus filhos — e todos eles tinham de ser sumptuosamente alojados e ricamente recebidos. Estavam instalados nos locais de melhor qualidade que os interiores da Família podiam fornecer: nos pulmões, no coração, no cérebro, nos rins, no sangue, nas tripas. Sobretudo nas tripas. O grande intestino era o ponto de reunião favorito. Era aí que se juntavam, aos milhares de mi­lhões, e que trabalhavam e se alimentavam, e se enroscavam, e cantavam hinos de louvor e acção de graças — e à noite, quan­do tudo ficava silencioso, podia ouvir-se o seu suave murmúrio. O intestino grosso era efectivamente o seu céu. Atulharam-no por completo — fizeram com que ficasse rígido como o anel de um tubo de gás. Sentiam orgulho nisto. O seu principal hino fa­zia-lhe uma contentada referência:

 

Prisão de ventre, oh, prisão de ventre

O som rejubilante proclamará

Até que a mais remota entranha do homem

Louve o nome do seu Criador.

 

Os incómodos proporcionados pela Arca eram muitos e va­riados. A Família tinha de viver mesmo na presença dos múlti­plos animais e respirar o tormentoso fedor que eles faziam, e ser emouquecida dia e noite pelo estrépito trovejante que os seus rugidos e guinchos produziam — e, a juntar a estes intoleráveis incómodos, era um sítio especialmente penoso para as senhoras, que não podiam olhar em nenhuma direcção sem verem uns quantos milhares de criaturas envolvidas em tarefas de multipli­cação e satisfação. E depois havia as moscas. A praga voava para todo o lado e perseguia a Família o dia inteiro. Eram os primei­ros animais a levantar-se, de manhã, e os últimos a deitar-se, à noite. Mas não podiam ser mortos, não podiam ser feridos, eram sagrados, a sua origem era divina, eram os animais de esti­mação especiais do Criador, os seus mais-que-tudo.

 

Em breve, as outras criaturas começaram a ser distribuídas aqui e ali sobre a Terra, dispersas: os tigres foram para a índia, os leões e os elefantes para o deserto vacante e os lugares secretos da selva, as aves para as ilimitadas regiões de espaço vazio, os insectos para um ou para outro clima, consoante a natureza e as necessidades —, mas a mosca? Ela não tem nacionalidade - todos os climas são a sua casa, todo o globo é a sua provín­cia, todas as criaturas que respiram são a sua presa, e para todas elas ela é um flagelo e um inferno.

 

 

Para o homem, ela é um embaixador divino, um ministro plenipotenciário, o representante especial do Criador. Infesta-o no seu berço; agarra-se em cachos às suas pálpebras remelosas; zumbe à roda dele e morde-o e atormenta-o roubando-lhe o so­no, bem como as forças à sua fatigada mãe naquelas longas vigí­lias que ela devota a proteger o seu filho das perseguições desta peste. A mosca atormenta o homem doente em sua casa, no hospital, até no seu leito de morte, antes do último suspiro. Apoquenta-o às refeições — antes disso, procura pacientes sofredores de doenças repugnantes e mortíferas; ataca as suas feri­das com vigor, infecciona as patas com milhões de germes fatais; depois vem até à mesa do tal homem saudável, sacode estas coisas na manteiga e evacua um carregamento intestinal de germes tifóides e excrementos nos bolinhos dele. A mosca-doméstica arruína mais a compleição humana e destrói mais vidas humanas do que toda a multidão divina de mensageiros da miséria e agen­tes da morte juntos.

 

Sem estava cheio de ancilóstomos. É maravilhoso, o estudo meticuloso e exaustivo que o Criador devotou à grandiosa tarefa de tornar o homem extremamente infeliz. Eu já tinha dito que Ele concebeu um agente de sofrimento especial para toda e qual­quer minudência da estrutura do homem, sem descurar uma úni­ca, e disse a verdade. Muitas pessoas pobres têm de andar des­calças, visto que não têm dinheiro para sapatos. O Criador viu aí a sua oportunidade. Devo mencionar, de passagem, que Ele está sempre de olho nos pobres. Nove décimos das suas doenças-invenções destinam-se aos pobres, e eles apanham-nas. Os que estão bem na vida ficam só com o que sobra. Não suponhais que estou a falar de forma inconsiderada, pois tal não acontece: a vasta maioria dos sofrimentos-invenções é especialmente ela­borada para a perseguição dos pobres. Poderíeis adivinhar isto pelo facto de um dos nomes mais esplêndidos e mais comuns atribuídos ao Criador ser «O Amigo dos Pobres». Em nenhuma circunstância o púlpito faz um elogio que seja ao Criador que te­nha em si um vestígio de verdade. O inimigo mais implacável e infatigável dos pobres é o seu Pai no Céu. O único amigo ver­dadeiro dos pobres é o seu semelhante. É ele que tem pena de­les, que se condói deles, e que o mostra com as suas acções. Faz muito para aliviar a sua miséria — e, em toda e qualquer situa­ção, quem colhe os louros por isso é o Pai deles no Céu.

 

É a mesma coisa com as doenças. Se a ciência extermina uma doença que estava a trabalhar para Deus, é Deus que colhe os louros, e todos os púlpitos irrompem em agradecidos reclamos-êxtases e chamam a atenção para o quão bom ele é! Sim, ele fê-lo. Talvez tenha esperado mil anos antes de o fazer, mas isso não é nada: o púlpito diz que Ele esteve o tempo todo a pensar nisso. Quando homens exasperados se sublevam e se livram de uma tirania secular e libertam uma nação, a primeira coisa que o deliciado púlpito faz é anunciá-lo como sendo obra de Deus e convidar o povo a pôr-se de joelhos e a desabafar-Lhe os seus agradecimentos por isso. E o púlpito diz, com entusiasta emo­ção: «Que os tiranos percebam que o Olho que nunca dorme cai sobre eles; e que se lembrem que o Senhor nosso Deus não será sempre paciente, mas soltará os turbilhões da Sua ira sobre eles no dia por Si decidido.»

 

Do que eles se esquecem de mencionar é que não há quem se mova de forma tão vagarosa no universo; que o seu Olho que nunca dorme bem podia fazê-lo, já que leva um século a ver aquilo que outro olho qualquer veria numa semana; que, em toda a história, não há um único caso em que Ele tenha imaginado uma nobre acção primeiro, antes a imaginou um bocadinho de­pois de outra pessoa a ter imaginado e concretizado.

 

Muito bem, há seis mil anos Sem estava cheio de ancilóstomos. De tamanho microscópico, invisíveis a olho nu. Todos os produtores de doenças especialmente mortíferos do Criador são invisíveis. É uma ideia engenhosa. Ao longo de milhares de anos, foi o que impediu o homem de chegar à raiz dos seus pa­decimentos e derrotou as suas tentativas de os dominar. Só muito recentemente a ciência foi bem-sucedida em expor algumas dessas perfídias.

 

O mais recente destes abençoados triunfos da ciência é a descoberta e identificação do assassino escondido que dá pelo nome de ancilóstomo. A sua presa especial são os pobres que andam descalços. Fica de emboscada em regiões quentes e luga­res arenosos, e esburaca o seu caminho através dos seus pés des­protegidos.

 

O ancilóstomo foi descoberto há dois ou três anos por um médico que há muito estudava pacientemente as suas vítimas. A doença provocada pelo ancilóstomo andava a fazer o seu trabalho maléfico aqui e ali, pela Terra fora, desde que Sem aporta­ra em Ararat, mas nunca se suspeitou de que fosse sequer uma doença. As pessoas que a tinham, pensava-se simplesmente que eram preguiçosas e, por conseguinte, eram desprezadas e alvo de chacota, quando deviam ter sido alvo de compaixão. O ancilós­tomo é uma invenção particularmente dissimulada e clandestina, e há séculos que vinha fazendo o seu trabalho sub-reptício sem ser molestado —, mas aquele médico e os seus assistentes vão exterminá-lo agora.

 

Deus está por detrás disto. Há seis mil anos que Ele andava a pensar muito nisto e a decidir o que fazer. A ideia de extermi­nar o ancilóstomo foi dele. Esteve muito perto de o fazer antes de o Dr. Charles Wardell Stiles o ter feito. Mas ainda vai a tem­po de colher os louros por isso. Vai sempre.

Vai custar um milhão de dólares. Ele estava provavelmente prestes a contribuir com essa soma, quando um homem lhe pas­sou à frente — como é costume. O Sr. Rockefeller. Ele fornece o milhão, mas os louros hão-de ir para outro lado — como é costume. Os jornais desta manhã falam-nos um pouco sobre a actuação do ancilóstomo:

É frequente os parasitas ancilostomídeos reduzirem de tal ma­neira a vitalidade daqueles que são afectados a ponto de atrasar o seu desenvolvimento físico e mental, de torná-los mais susceptí­veis a outras doenças, de fazer com que o trabalho seja menos efi­ciente e, nos sectores onde o padecimento é mais prevalecente, de aumentar grandemente a taxa de mortalidade de consumpção, pneumonia, febre tifóide e malária. Foi revelado que a vitalidade mais baixa de multidões, há muito atribuída à malária e ao clima, e que compromete seriamente o desenvolvimento económico, se deve na verdade, em muitas regiões, a este parasita. Esta doença não está de modo algum confinada a uma só classe — retira o seu quinhão de sofrimento e morte não só dos altamente inteligentes e bem na vida, mas também dos menos afortunados. É uma esti­mativa prudente que dois milhões dos nossos concidadãos são afectados por este parasita. A doença é mais comum e mais séria em crianças em idade escolar do que noutras pessoas.

 

Apesar de esta infecção ser generalizada e grave, certo é que as perspectivas são encorajadoras. A doença pode ser facilmente re­conhecida, rápida e eficazmente tratada, e, tomando precauções sanitárias simples e adequadas, prevenida com êxito [com a ajuda de Deus].

As crianças pobres estão debaixo do Olho que nunca dorme, percebeis? Tiveram essa má sorte em todas as eras. Elas e «os pobres do Senhor» — como diz a expressão sarcástica — nunca foram capazes de escapar às atenções do Olho.

Sim, os pobres, os humildes, os ignorantes — são eles que a apanham. Tomai como exemplo a «Doença do Sono», de África. Esta crueldade atroz tem como vítimas uma raça de negros ignorantes e inocentes que Deus instalou num lugar selvagem e remoto, após o que deixou cair sobre eles o Seu Olho paternal - aquele que nunca dorme, quando há uma oportunidade de causar mágoa a alguém. Ele tratou destas pessoas antes do Dilú­vio. O agente escolhido foi uma mosca, da mesma família da tsé-tsé — a tsé-tsé é uma mosca que controla a região do Zambeze que pica gado e cavalos até à morte, tornando assim esta região inabitável pelo homem. O horrível parente da tsé-tsé deposita um micróbio que produz a Doença do Sono. Cam estava cheio destes micróbios e, quando a viagem chegou ao fim, descarre­gou-os em África, e a devastação começou, não conhecendo melhoramento senão passados seis mil anos e depois de a ciên­cia se intrometer no mistério e descobrir a causa da doença. As nações pias agradecem agora a Deus e louvam-no por vir em au­xílio dos Seus pobres negros. O púlpito diz que o louvor se deve a Ele pela razão de que foi a Ele que os cientistas foram buscar a sua inspiração. Ele é decididamente um Ser curioso. Comete um crime medonho, prossegue de forma ininterrupta com esse crime durante seis mil anos e depois é merecedor de louvor, porque sugeriu a outra pessoa qualquer que atenuasse as suas severidades. Chamam-lhe paciente, e Ele deve ser decerto pacien­te, caso contrário, há eras que teria mergulhado o púlpito na danação eterna pelos cumprimentos pavorosos que este Lhe dirige.

 

A ciência tem o seguinte a dizer sobre a Doença do Sono, também chamada a «Letargia do Negro»;

Caracteriza-se por períodos de sono em intervalos recorrentes.   A doença dura de quatro meses a quatro anos, e é sempre fatal. A princípio, a vítima parece lânguida, fraca, pálida e estúpida. As suas pálpebras ficam intumescidas, aparece-lhe uma erupção na pele. Adormece enquanto fala, come ou trabalha. À medida que a doença progride, é alimentada com dificuldade e fica muito ema ciada. A carência de nutrição e o aparecimento de escaras são seguidos por convulsões e morte. Alguns pacientes ficam loucos.

Foi aquele a quem a Igreja e o povo chamam o Nosso Se­nhor no Céu que inventou a mosca e a mandou infligir esta pro­longada e desoladora miséria e melancolia e desdita, e esta dete­rioração do corpo e do espírito, a um pobre selvagem que não fez mal nenhum ao Grande Criminoso. Não há um homem no mundo que não se condoa desse pobre sofredor negro, e não há um homem que não o poria de boa saúde, se pudesse. Para en­contrar a única pessoa que não tem compaixão por ele, é preciso irdes ao céu; para encontrar a única pessoa que é capaz de o curar e não pode ser persuadida a fazê-lo, deveis ir ao mesmo lu­gar. Só há um pai cruel o suficiente para atormentar o seu filho com aquela horrível doença — só um. Nem todas as eternidades podem produzir outro. Gostais de recriminadoras indignações poéticas calorosamente expressas? Aqui fica uma, acabada de sair do coração de um escravo:

A inumanidade do homem para com o homem

Faz com que incontáveis milhares chorem!

 

Vou contar-vos uma história agradável que contém o seu quê de páthos. Um homem tornou-se religioso e perguntou ao padre o que havia de fazer para ser merecedor do seu novo es­tado. O padre disse: «Imita o nosso Senhor no Céu, aprende a ser como Ele.»

 

O homem estudou a Bíblia de forma diligente e exaustiva e perspicaz e depois, orando para pedir orientação divina, instituiu as suas imitações. Endrominou a mulher de mo­do a que ela caísse escadas abaixo, e ela partiu a coluna e ficou paralítica para toda a vida; traiu o seu irmão para que ele caís­se nas mãos de um intrujão, que lhe roubou tudo o que tinha e fez com que ele acabasse na casa de caridade; inoculou um dos seus filhos com ancilóstomos, outro com a doença do sono, outro com gonorreia; proveu uma filha de escarlatina e fê-la entrar na adolescência surda, muda e cega para toda a vida; e, depois de ajudar um patife a seduzir a filha que lhe restava, fechou-lhe as portas de sua casa, e ela morreu num bordel a amaldiçoá-lo. De­pois foi informar o padre, que disse que aquilo não era maneira de imitar o seu Pai no Céu. O convertido perguntou em que ti­nha ele falhado, mas o padre mudou de assunto e perguntou co­mo andava o tempo lá para as bandas dele.

 

(in Cartas da Terra, Bertrand Editora)

 

 

 

publicado por Carlos Loures às 14:00

editado por Luis Moreira às 12:16
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