Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2011

Pequenas memórias da Guerra da Guiné (10) por Adão Cruz

Aquilo que deveria ser por dias foi quase por dois meses. O médico que me haveria de substituir continuava em Bissau, ao que me constou, por inexplicáveis expedientes e cunhas. Chamava-se Cavadinha, era meu conhecido, mas eu não quero especular, pois ele já morreu há anos e muito novo. Nestes quase dois meses no mato, valeu-me o facto de ter feito bons amigos nesta Companhia de “periquitos”.

 

O comandante do meu Batalhão sediado em Farim, era o tenente-coronel Agostinho Ferreira, um homem de pequena estatura mas muito determinado. Julgo que gostava de mim. De vez em quando fazia uma visita à companhia. Numa dessas visitas, enquanto tomávamos um café, eu disse-lhe:

 

- Meu comandante, encontro-me doente, preciso de ir fazer uma radiografia. Tire-me daqui para fora, ou então eu evacuo-me a mim mesmo. Não como praticamente nada, alimento-me de petiscos, de umas rolitas que vou caçando…

Ao que ele respondeu:

 

- Ah! Você alimenta-se de petiscos!

- O meu comandante não me foda mais porque fodido já eu estou.

Ele riu-se.

 

Todas as quintas feiras vinha a Bigene uma avioneta civil, uma Dornier da TAIGP, pilotada quase sempre por um simpático e muito experiente piloto, o Sr Coelho, o qual viria a morrer na queda da sua avioneta. Era uma pequena carreira aérea que trazia o correio e géneros, e transportava um ou outro civil, ou mesmo militar.

 

Ao fim de um mês e meio, já depois de ter falado com o comandante, enviei um “rádio” para o Batalhão dizendo o seguinte: “Encontro-me doente, preciso de ir a Bissau, peço autorização para seguir avião quinta-feira”. Recebi como resposta um “rádio” no qual se lia: “Não autorizado”. Fiquei redondamente fodido, como é óbvio. No princípio da semana seguinte envio novo “rádio”: “Encontro-me doente, preciso de ir a Bissau, sigo avião quinta-feira”. Desta vez a resposta não deu lugar a dúvidas: “Autorizado”.

 

Toda a população de Bigene se juntou na orla da pista. Eram centenas de pessoas, com panos, lenços e algumas lágrimas a despedirem-se de mim. O piloto, que eu não conhecia, e ele a mim também não, (julgo que o Sr. Coelho já tinha morrido), deu, por sua livre vontade, meia dúzia de voltas por cima da multidão antes de seguir o seu destino. Voltou-se para mim, com ar de espanto, e disse-me:

-Eu nunca vi uma coisa destas. Esta gente devia gostar muito de si.

De facto, foi um daqueles momentos da minha vida que dificilmente se varrerão da minha memória.

 

( Esta história lixada continua por mais um pequeno capítulo).

 

 

 

 

Todo aquele espaço ao lado da pista, entre a árvore grande e a capela, estava repleto de gente.

publicado por Carlos Loures às 19:00
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6 comentários:
De Luis Moreira a 14 de Janeiro de 2011
Estas histórias são porreiras.
De augusta clara a 14 de Janeiro de 2011
Estas histórias são porreiras? Eu acho que são horríveis. Porreiras foram as pessoas que se souberam comportar de forma diferente de muitos facínoras que por lá andaram de farda a "salvar a Pátria". Porreiras foram as populações que não mediram todos pela mesma bitola e tiveram a nobreza e a inteligência, provando que os pretos não são estúpidos, de, apesar da guerra que lhes impuseram, saberem distinguir os amigos dos inimigos. Isso é que é porreiro: a nobreza do ser humano seja em que condição se encontre. Por mim, preferia nunca ter ouvido estas histórias. Estas e outras muito piores do que estas.
De Luis Moreira a 14 de Janeiro de 2011
Augusta, acredito que a ti pouco te digam. beijinhos.
De augusta clara a 14 de Janeiro de 2011
Dizem mais do que tu pensas, Luís, mas de maneira diferente. E acho que têm que ser contadas. Mas são muito penosas de ouvir.
De Luis Moreira a 14 de Janeiro de 2011
Concordo que sim e que a tua sensibilidade se queixe.. Mas estas recordações tão vivas do Adão mostram que ele as viveu de corpo inteiro. A maioria não as tem com esta clareza. Chama-se o "efeito de negação" ou "evitamento", sem isso a maioria não as suporta. Não é o caso do Adão.
De augusta clara a 14 de Janeiro de 2011
Nisso estamos de acordo.

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