Boas e Más Memórias
Vida e Obra de Um Poeta
Herberto Helder
Não descuido a minha obra. Deve-se velar por aquilo que conseguiu ascender, entre riscos e ameaças, às condições da realidade. Mas serão os meus poemas uma realidade concreta no meio das paisagens interiores e exteriores? Não possuo um só dos papéis que enchi; interessa-me a forma acabada das minhas experiências, e suas significações, mantida numa espécie de memória tensa
e límpida. Os papéis, esses, estão em França (Paris ou Marselha), na Holanda, na África do Sul. Encontram-se nas mãos de conhecidos, desconhecidos, amigos, inimigos — e cada qual saberá usar deles de modo particular e, suponho, exemplar. Tirarão daí indeclináveis razões para a moralidade dos seus pensamentos com relação a mim e a eles mesmos. Não, não sei de cor as pequenas composições de palavras. Retenho a fantasia, a objectividade delas — ponto onde me apoio para saber que sou sólido, e tenho (ou sou) uma obra. Avancei muito no conhecimento da divindade, desde o dia em que escrevi um dístico na parede de um urinol de Lisboa até à minha obra-prima (um poema dramático), oferecida com maliciosa ingenuidade a uma prostituta nas docas de Amesterdão (ela não sabia português). Um poema desesperadamente religioso que falava do corpo e da sua magnificência e perenidade.
Foi assim que me pus a escrever — enquanto esperava a oportunidade de entrar numa casa (numa retrete, digo) ou quando, já nela, começava a pensar, a investigar, a decifrar, entregue e defendido na retrete, na profundidade que eu mesmo transportara ao longo dos anos, mal aflorada por instantes e agora enfim oferecida. O mundo não me tocara e fecundara em vão. Eu apurara a experiência, encontrara os meus centros. Levava tudo para a retrete: o amor, o terror, a grande cidade, o anjo da guarda com quem atravessara o bairro atulhado de putas. A minha obra nascia. Às vezes, no meio dos perigos, medos e vertigens destas experiências, olhava a cara num pequeno espelho de bolso, para ver se eu próprio me transformava por fora, ao sabor do sensível movimento do espírito, este conhecimento que ia ganhando da vida e da poesia. Vi que sim. O rosto anunciava com antecedência a chegada súbita de um sentimento muito agudo e quase doloroso das coisas, sua concordância e relações, a chegada da iluminação. Num dos poemas que deixei em Paris falo disto explicitamente, falo do homem vendo nos próprios olhos a nascente e brilhante imagem do mundo. É um bom poema em que trabalhei quinze noites seguidas, sempre sentado numa retrete da rue des Abbesses.
Outro princípio fulcral da minha poesia — o da Fêmea-Mãe — foi descoberto, imaginado, organizado e assumido na mesma retrete. Devo muito a essa retrete. Certas noites dava uma volta por Pigalle e estudava miudamente os cartazes nas casas de strip-tease. Absorvia a nudez retratada das actrizes como se absorve um plasma forte. Elas eram intérpretes de Deus. Via nesses corpos uma declaração divina, e o jogo espectacular do que chamam vícios era uma espécie de escrita manifesta, uma alusiva visibilização de Deus. E tudo isso me era dado como um caminho de conhecimento, uma complexa viabilidade. Todas as putas de Pigalle eram minhas mães; a carne fotografada, tornada viva em mim pelo enredo da comoção, era a carne-mãe, a matéria fundamental da terra. Deus instigava-me e amparava-me na descoberta e, posteriormente, na magnificação e glorificação do mundo.
Hoje, nada sei de quem me amou ou ama. Nada me reparte no tempo. Abro-me à unidade da vida — e amo o passado e o futuro com um só fervor: completo. A geografia não existe. Quem está em Joanesburgo e me ama ou possui um breve poema rabiscado nas costas de um envelope, ou quem me odeia em Roterdão e apenas tem algumas palavras sem destinatário, nada poderá supor da minha lenta maturidade. Esses papéis pouco valem, e esses sentimentos (de amor e ódio). Vale quem sou. Ultrapasso as palavras escritas aos trinta anos. O poema que agora escrevesse diria como estou pronto para morrer, referiria enfim a excelência do meu corpo urdido nas aventuras da solidão e da comunhão, e falaria de tudo quanto auxilia um homem no seu ofício — a ferocidade dos outros, o apartamento, ou o seu amor que, ferido pela ignorância, se inclina para ele, para o seu trabalho, o desejo, a expectativa. Morrerei como se fosse numa retrete de Paris — só, com a minha visão, o pressentido segredo das coisas.
E é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno.
(in Passos Em Volta, Assírio & Alvim)
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