Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2011

Coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Boas e Más Memórias

Vida e Obra de Um Poeta

Herberto Helder

Não descuido a minha obra. Deve-se velar por aqui­lo que conseguiu ascender, entre riscos e ameaças, às condições da realidade. Mas serão os meus poemas uma realidade concreta no meio das paisagens interio­res e exteriores? Não possuo um só dos papéis que enchi; interessa-me a forma acabada das minhas ex­periências, e suas significações, mantida numa espé­cie de memória tensa

e límpida. Os papéis, esses, estão em França (Paris ou Marselha), na Holanda, na África do Sul. Encontram-se nas mãos de conhecidos, desco­nhecidos, amigos, inimigos — e cada qual saberá usar deles de modo particular e, suponho, exemplar. Tira­rão daí indeclináveis razões para a moralidade dos seus pensamentos com relação a mim e a eles mesmos. Não, não sei de cor as pequenas composições de palavras. Retenho a fantasia, a objectividade delas — ponto onde me apoio para saber que sou sólido, e tenho (ou sou) uma obra. Avancei muito no conhecimento da divinda­de, desde o dia em que escrevi um dístico na parede de um urinol de Lisboa até à minha obra-prima (um po­ema dramático), oferecida com maliciosa ingenuidade a uma prostituta nas docas de Amesterdão (ela não sabia português). Um poema desesperadamente religi­oso que falava do corpo e da sua magnificência e pe­renidade.

 

Comecei a escrever com determinação aos trinta anos, quando corria o bairro des Abbesses, em Paris. para meter-me nalguma casa que tivesse a porta aber­ta, e ir dormir na retrete. Explico: em Paris, os três fi­lhos de Deus debatiam-se com o árduo problema da dormida. Éramos um português e dois espanhóis, de­saparecidos um dia de suas casas, das pátrias, e en­contrados no acaso de vadiagens e bebedeiras. Tínhamos assuntos religiosos comuns. Para dormir havia acidentais quartos de amigos, a entrada do me­tropolitano e, no bom tempo, as pontes do rio. Mas eu precisava de solidão e conforto (era a obra que. secretamente, se desenvolvia em mim) — e tomei como minha uma ideia que circulava pela cidade. Era possí­vel dormir nas retretes, nas retretes privadas, nas retretes das casas das outras pessoas! A ideia abalou--me tanto que andei confuso e comovido durante dias Fui ao ponto de escrever um poema inteiramente ins­pirado nela. Eu e os meus amigos, poucas semanas passadas sobre o início desta nova vida surpreen­dente, tínhamos já uma lista de cento e vinte e dois prédios onde devíamos tentar a entrada. Simples: estudávamos as portas de determinado bairro residencial, a ver se poderiam ser abertas de um modo qualquer, ou se as deixavam abertas. Chegava a hora do sono alheio, cada um subia até à sua retrete. Uma ascen­são! Talvez Deus estivesse lá em cima à nossa espe­ra. Claro que só escolhíamos edifícios antigos, com sentina de patamar para uso comum dos inquilinos. Acendia a luz, instalava-me fechado por dentro, e pen­sava ou lia, ou escrevia às vezes. Nunca a solidão foi para mim tão fértil. Se alguma pessoa vinha à retrete a meio da noite, eu puxava o autoclismo e saía como in­quilino também, natural, desenvolto nos meus direitos. Defecação democrática, por ludíbrio, no seio da gran­de família burguesa. No dia seguinte reuníamo-nos os três, os filhos de Deus, para falar das nossas aspira­ções e meditações, da inspiradora solidão nocturna.

Foi assim que me pus a escrever — enquanto es­perava a oportunidade de entrar numa casa (numa retrete, digo) ou quando, já nela, começava a pensar, a investigar, a decifrar, entregue e defendido na retrete, na profundidade que eu mesmo transportara ao longo dos anos, mal aflorada por instantes e agora enfim ofe­recida. O mundo não me tocara e fecundara em vão. Eu apurara a experiência, encontrara os meus centros. Levava tudo para a retrete: o amor, o terror, a grande cidade, o anjo da guarda com quem atravessara o bairro atulhado de putas. A minha obra nascia. Às vezes, no meio dos perigos, medos e vertigens destas experiências, olhava a cara num pequeno espelho de bolso, para ver se eu próprio me transformava por fora, ao sabor do sensível movimento do espírito, este conhecimento que ia ganhando da vida e da poesia. Vi que sim. O rosto anunciava com antecedência a chegada súbita de um sentimento muito agudo e quase doloroso das coisas, sua concordância e relações, a chegada da ilu­minação. Num dos poemas que deixei em Paris falo dis­to explicitamente, falo do homem vendo nos próprios olhos a nascente e brilhante imagem do mundo. É um bom poema em que trabalhei quinze noites seguidas, sempre sentado numa retrete da rue des Abbesses.

Outro princípio fulcral da minha poesia — o da Fêmea-Mãe — foi descoberto, imaginado, organizado e assumido na mesma retrete. Devo muito a essa retrete. Certas noites dava uma volta por Pigalle e estudava miudamente os cartazes nas casas de strip-tease. Ab­sorvia a nudez retratada das actrizes como se absorve um plasma forte. Elas eram intérpretes de Deus. Via nesses corpos uma declaração divina, e o jogo espec­tacular do que chamam vícios era uma espécie de es­crita manifesta, uma alusiva visibilização de Deus. E tudo isso me era dado como um caminho de conhe­cimento, uma complexa viabilidade. Todas as putas de Pigalle eram minhas mães; a carne fotografada, torna­da viva em mim pelo enredo da comoção, era a carne-mãe, a matéria fundamental da terra. Deus instigava-me e amparava-me na descoberta e, posteriormente, na magnificação e glorificação do mundo.

Hoje, nada sei de quem me amou ou ama. Nada me reparte no tempo. Abro-me à unidade da vida — e amo o passado e o futuro com um só fervor: comple­to. A geografia não existe. Quem está em Joanesburgo e me ama ou possui um breve poema rabiscado nas costas de um envelope, ou quem me odeia em Roterdão e apenas tem algumas palavras sem destinatário, nada poderá supor da minha lenta maturidade. Esses papéis pouco valem, e esses sentimentos (de amor e ódio). Vale quem sou. Ultrapasso as palavras escritas aos trinta anos. O poema que agora escrevesse diria como estou pronto para morrer, referiria enfim a excelência do meu corpo urdido nas aventuras da solidão e da co­munhão, e falaria de tudo quanto auxilia um homem no seu ofício — a ferocidade dos outros, o apartamento, ou o seu amor que, ferido pela ignorância, se inclina para ele, para o seu trabalho, o desejo, a expectativa. Morrerei como se fosse numa retrete de Paris — só, com a minha visão, o pressentido segredo das coisas.

E é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno.

(in Passos Em Volta, Assírio & Alvim)

publicado por Luis Moreira às 14:00
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