Coordenação de Augusta Clara de Matos
continuação...
Tenho conversado muito com os meus amigos Jean-Pierre Changeux, Thomas Insel e António Damásio grandes cientistas das novas interrogações. Também Jean-Pierre se apaixonou pela arte, também ele caiu nas suas mãos traiçoeiras. Mas não se meteu propriamente com ela, foi mais esperto. Não se deixou levar pela tentação do seu corpo nem pelo calor das suas tintas, não tentou penetrá-la e possuí-la de forma séria, profunda e infinita, agarrando-a pelo sexo numa cumplicidade de tragédia. Deixou-se embevecer e atrair pela sua beleza, é certo, mas dentro de uma espécie de amor platónico, não ousando tocá-la, talvez por imposição profissional, talvez por medo, talvez por pudor. Daí o ter-se preocupado, essencialmente, com a razão estética e com a força ontológica da criação. Provavelmente, por isso, nunca lhe fora apresentada a amiga frustração, tendo-se livrado, assim, quem sabe, do valente frete que constitui a obscura consciência da inferioridade e da falsamente compensadora necessidade de uma indignada afirmação de si próprio.
Conhecendo o enigma do artista, sabendo que a criação artística permanecera sempre um mistério dentro de uma atmosfera de magia, bom observador das duas perspectivas, psicológica e sociológica da arte, apercebeu-se que as neurociências e a psicologia cognitiva há muito começaram a contribuir para a reequacionamento desse mesmo mistério. Aventurou-se pelo complexo mundo do processo criativo, tentando responder às questões simples que a minha amiga da onça desconhece, mas que logo usaria se as conhecesse, como jóias e enfeites para as suas maliciosas conquistas e para satisfação da sua insaciável vaidade:
- O que se passa no cérebro do artista quando cria?
- Que mecanismos regem a actividade cerebral no momento em que se contempla uma pintura?
- De onde surge a estranha e poderosa emoção que é o prazer estético?
É isto que me está a dar um gozo bestial, pois é uma área que lhe escapa, uma área onde a vaidade não tem lugar e onde ela, de certeza, se vai ver em palpos de aranha. Como ela não faz a mínima ideia da complexidade da formidável máquina química que é o cérebro, e como não concebe a realidade do binómio razão e prazer, estou convencido de que redobrará a sua traição quando souber que ando por estes sítios de má fama. Que se lixe!
Seria, contudo, cataclísmico para a minha honorabilidade, no que respeita ao bom-senso, eu atrever-me a penetrar, à deriva, num mundo tão fascinante quanto complexo, ignorando a sua profundidade técnica e científica. Seria dar-lhe, a ela, razões de sobra para futura chacota. Por isso serei, enquanto a ciência me não permitir outra atitude, muito simplista, ainda assim valendo-me dos meus amigos Jean-Pierre, Tom e António, cujo pensamento muito específico terei de acompanhar, procurando, no entanto, fazê-lo da forma mais racional e consciente, dentro duma interpretação pessoal.
Facilmente imaginamos a arte e a ciência como opostos. Todavia, o avanço no conhecimento do cérebro humano e nas funções cognitivas obriga a dilatar o nosso horizonte artístico e científico, de uma forma até aqui impensada. Toda a investigação, todo o poder e prazer contemplativos acontecem no cérebro. A compreensão de um quadro é fruto da sua contemplação. A contemplação, à luz da biologia molecular e das neurociências, percorre os neurónios até aos mais sofisticados dispositivos de percepção. O reconhecimento do psicológico como indissociável do neuronal e, logicamente, do físico-químico, constitui a base de uma autêntica biologia do espírito.
Segundo o meu amigo, articulam-se no seio do cérebro três evoluções: a das espécies, a do indivíduo e a das culturas. A criação da obra de arte e a sua contemplação não podem ser concebidas fora delas. A análise científica dos mecanismos lógicos do comportamento foi encontrar na biologia molecular toda a sinalização química da comunicação interneuronal. A farmacologia da memória, da dor, da angústia, da alegria, da tristeza e do amor não pode, doravante, ser escamoteada.
O prazer estético e a arquitectura do prazer estético parecem nascer das bases neuronais das funções superiores do cérebro. Nem outra coisa seria de esperar. O cérebro constrói representações, coordena-as em raciocínio, elabora intenções, simula comportamentos, comunica pela linguagem e faz selecções que transforma em actos. Para isso, as células gnósticas reagrupam-se em colectividades e populações que contribuem para o conhecimento de figuras cada vez mais complexas. O objecto mental identifica-se com o estado de actividade, no espaço e no tempo, de populações definidas ou assembleias de células nervosas, eventualmente distribuídas por regiões muito diferentes do encéfalo.
A obra de arte, além do seu papel de imagem, possui uma função simbólica cuja inteligibilidade requer um saber subjacente, expressão de uma cultura especial num determinado momento histórico. O quadro encerra uma multiplicidade de sentidos cuja apreensão depende da formação cultural do espectador e da informação armazenada na sua memória. A obra de arte participa numa forma de comunicação em que a individualidade do criador e do observador ocupam um lugar central. Assim, a contemplação do quadro mobiliza o mais elevado grau da hierarquia cerebral, o da razão, dado que na essência da harmonia estética, já ninguém duvida que se encontra a harmonia da sensualidade e da razão. A representação artística ao nível da razão, como tudo na vida, conduz a uma maior projecção na área do deleite.
A descodificação das arquitecturas neurais que levam à razão aponta para um conjunto complexo e heterogéneo de áreas do córtex cerebral, situadas no lobo frontal. A sua superfície cresceu exuberantemente do antepassado primitivo até ao Homem, o que levou a qualificá-lo de órgão da civilização. Há, além disso, áreas muito circunscritas do sistema límbico, envolvidas no prazer e no seu oposto, a repulsa. Tudo leva a crer que o prazer estético resulta da interacção concertada entre as representações mentais elaboradas no córtex cerebral e os estados de actividade do sistema límbico. Estes últimos distinguem-se claramente de estruturas nervosas alojadas no hipotálamo e que intervêm, segundo parece, na satisfação de sentimentos e desejos primários como a fome, a sede e o sexo. Aqui chegados, não se ofendam com a interposição pessoal de uma última pergunta: situar-se-á por estas bandas, mais amplas ou menos amplas, a tal identificação sentimental e primária com a arte representativa de que falámos lá atrás?
Numa espécie de conclusiva ilação podemos dizer que quem se entrega a esta atrevida senhora propõe a si próprio uma verdadeira aventura. Para isso tem de traçar um caminho, caminho belo, difícil, desconhecido, atapetado de contradições, sem rota nem destino. Outro não pode ser o caminho da arte. Dentro da abordagem psicológica e sociológica da magia e do mistério da arte, cabe-nos identificar:
- Um caminho único, irrepetível, dentro do pensamento idealista
ou
- Um caminho de linguagem cujo íntimo é possível apreender.
No meio deste dilema que atravessou e atravessará os séculos, não podemos deixar de nos situar numa posição de humildes aprendizes. Não podemos viver se não estruturarmos um caminho de análise, de reflexão, de aprofundamento cultural e de intensa pesquisa individual e colectiva, que nos confira a dignidade de intérpretes da “Filosofia da Arte”. Arte que ninguém consegue definir de forma absoluta e universal, arte qualidade intrínseca de uma obra produzida pela inteligência humana, com efeito estético que gera juízos de valor sobre a própria obra, o seu autor e as técnicas e modalidades de produção.
Muitos passos já dados, passos de vida, de procura, de exercício de pensamento têm como consequência, dentro das muitas consequências sentidas mais ou menos conscientemente, a colocação de uma interrogação, já patente em muitos anos da nossa existência:
- Será que todos sentimos a “óbvia” necessidade de “comunicação”, suporte de uma “mensagem”, destino credível de uma “obra de arte”?
- Será o “movimento da mensagem” a seiva que pode fazer de todos os fenómenos culturais fenómenos de comunicação?
- Será o verdadeiro destinatário a satisfação de caprichos e vaidades, ou o ser humano, o destinatário humano como interpretante dentro de um processo de significação?
Cientes da riqueza, do deslumbramento e dos perigos do binómio “Arte e Comunicação”, mantendo alguma inclinação para considerar a arte como linguagem, vamo-nos aventurando mais profundamente no campo do pensamento. Assim, consideramos, como Mukarovsky, que a obra de arte se deve dirigir ao fruidor, não como um convite para estabelecer uma relação primariamente sentimental mas, pura e simplesmente, para que ele a compreenda. A obra não se dirige ao homem mas a todos os homens, e, sobretudo, ao homem total, senhor das suas faculdades e das suas “verdades” autênticas.
O homem que sonha a vida na arte e a arte na vida só pretende o diálogo entre ele e os outros homens. A sua obra foi criada com a necessidade e a exigência de que todos a compreendam, ainda que esta exigência seja idealista e praticamente irrealizável. De qualquer forma, tal necessidade e exigência constituem uma propriedade fundamental da obra de arte e um estímulo essencial da criação artística. Decorrente da forma de estar nesta magnífica aventura, começamos lenta e progressivamente a acreditar que a obra de arte deve mediar um significado suprapessoal.
A sensação de que a estética está substancialmente filiada numa “Filosofia da Arte” ou numa “Teoria do Conhecimento Sensível”, leva-nos a perceber que a definição do gosto e da apreensão artística em geral, cabem à estética propriamente dita, sendo a “Ciência da Arte” o campo dos problemas técnicos e teóricos.
A originalidade das obras sempre se encontrou limitada por códigos artísticos dominantes. Pensamos que a “revolta” do artista é o fermento inovador contra a inércia e a crença na inviolabilidade das regras. Ainda que as leis e o quotidiano possam estar presentes na estruturação da obra, agimos, talvez intuitivamente, como se esta estivesse sempre “fora” do seu alcance. Não é uma fuga mas uma tentativa de desencapsulamento da vida e da nossa identidade, no sentido de que estas se processem a escalas cada vez mais elevadas da pesquisa artística.
Neste percurso dentro do mundo da nossa amiga, teimosamente falseado de arranjos curriculares que visam pôr o artista acima da obra, fica-nos a sensação e a ideia de que a autêntica obra artística é um jogo, no qual o artista instaura livremente valores e opostos, com total soberania, com muitas interrogações mas sem respostas a dar ou a esperar, elegendo como resultado, apenas, o testemunho veiculado numa linguagem privilegiada que procura dar à mensagem a dimensão mais ampla e profunda do ser humano.
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