(Continuação)
1. Mas, doença de quem?
Antes de mais, queiras desculpar-me que te denomine filho. A nossa língua é doente e carrega o acento em todo o ser que tem erecção, em todo o género masculino. Porque falo para ti, filho ou filha. Esses que eu tenho como descendentes. Eis uma primeira doença, a doença do símbolo, do que representa para nós uma entidade humana. Sempre hierarquizada. Distinta entre pobres e ricos, entre os que mandam e os que devem calar e obedecer. Doença simbólica da falta de debate.
Uma segunda doença, pequeno. Essa da falta de cruzar palavras que nos dêem a entender que, no mundo, somos todos iguais, mas nem sempre equivalentes. Não porque tu saibas mais e outro menos, mas porque tu tens poder e o outro não consegue ter. Doença de mando, eu diria. Doença social que apaga o corpo. Doença social que tira das palavras a sua forma de espada de combate. Para lutar com ideias. Para esgrimir conceitos. Para se ajudar com palavras.
Esta doença é a pior que nos pode cair por cima. Tanto falaram os Enciclopedistas, esses seres pragmáticos dos Séculos XVII e XVIII, para definirem uma igualdade sã, no meio do debate e do voto, duma reunião de pessoas a habitarem o mesmo sítio: a República governar-se pelas palavras comparadas. Doença que ainda existe, Enciclopedistas que ficaram no meio da denominada erudição dos que têm conhecimento e definem os símbolos sem reparar, como fazem Berta Nunes e Silva Pereira, que há outros conceitos definidos pelos que vivem dentro do pragmático experimentar quotidiano, fora da auto proclamada erudição, capazes de darem nomes aos assuntos da forma que a memória do seu grupo entende. E que nós não conseguimos entender sem a traduzir para a nossa própria compreensão do entendimento pragmático, do dia-a-dia, da vida que, dizem, é dado através da Antropologia.
Uma primeira doença, a do símbolo. Uma segunda, a falta de debate, o silêncio de quem pensa ter sempre razão. Porém, guarda uma terceira dentro de si, a incompreensão. A incompreensão dos que se fecham nas suas ideias a pensarem que têm sempre razão, sem ouvir, para entender e trocar galhardetes, armas de entendimento. Sem preencher os vazios do modo particular de entender uma verdade. Esta, a terceira doença, oculta na primeira, a dos símbolos e derivada da segunda, a da incompreensão - a verdade é sempre verdadeira para quem a pensa. Desculpa, meu filho, definir o conceito com a mesma palavra. Não tenho outra alternativa. A verdade parece ser a ideia do que nos faz bem, ou a ideia, conforme a pensemos, daquilo que pretendemos e desejamos, por sim ou por não, que nos faça bem. Porém, a verdade é ambivalente: duma parte, a satisfação entre o desejo do que se quer conseguir para o nosso bem-estar e alegria; doutra, a consciência social do bem estar de todo um grupo que procura a sua felicidade.
Eis uma quarta doença escondida no social dos conceitos, o utilitarismo da nossa vida. Ao nascermos, somos entregues a um grupo já existente e classificado em hierarquias, genealogias, a distinguir entre parentes vizinhos e amigos, compadres e inimigos, lobbies para apoiar, lobbies para afundar. Classificações feitas através da memória histórica, da económica e da social, que entrega ao grupo todo o indivíduo por meio dos ritos de passagem que separam o permitido do proibido, o incentivado do tabu ou proibido, diferente conforme o lobby, diferente conforme a tradicional distinção feita entre meninos e meninas, homem e mulher, jovem e velho, amigo ou inimigo, da minha ou da outra ideologia.
Distinção socializada e feita pública nos ritos de passagem, quer nos povos muçulmanos, quer nos povos cristãos, quer ainda nos animistas, como os Nalu que estudou Amélia Frazão na Guiné-Bissau, ou os Xavante de Ângela Nunes no Brasil, ou os Mapuche Rauco do Luís Silva Pereira. Ou dos meus Mapuche Picunche, lá nesse Chile da dedicatória. Ou entre nós, em bairros e aldeias, onde o utilitarismo que anima as coisas e as imagens, dá vida aos objectos que representam agires por nós desejados e politicamente apoiados pela autoridade que, das almas dos objectos, tira lucro. Utilitarismo na procura do bem que a natureza nos possa dar, nos possa oferecer, se soubermos procurá-lo para satisfazer o nosso prazer ético ou estético. É dizer, filho, na harmonia da beleza dum movimento; ou na solidariedade dos que se juntam para viverem sem serem feridos pelos que têm a força. Essa que já referi num outro texto. Fugir da força, ou saber confrontá-la, é parte da cura da doença social. Doença social que é cronológica na História dos povos, que dura o tempo que durou em Portugal, na Espanha, que dura no Chile. Doença do prazer de ter e existir em todos os grupos. Porém, todos os grupos procuram definir um comportamento de ganho, de felicidade, de utilidade na sua interacção.
Como Malinowski, já citado, diz em 1923 no seu Crime e Costume na Sociedade Primitiva: há uma lei que organiza o comportamento, à qual todos se subordinam. Essa lei é o costume dum povo, que nós denominamos cultura. E que o referido Freud no seu Totem e Tabu, já citado, define como uma doença infantil por se transferir o que se sente a uma imagem para deitá-lo fora de nós. Sentimento que ele denominou neurótico, por acontecer na nossa civilização. Doença que refere outra vez em A civilização e os seus descontentamentos, (1930) 2005, quando indica como essa lei, que escoa por cima de nós, desgostando-nós e combatemos.
Combatemos com amor pelo grupo, combatemos pelo medo ao incesto, pelo interiorizar dos tabus que a cultura nos impinge e que nós sabemos aceitar. Ideia da doença útil que Lévi -Strauss tão claramente combate e debate no seu Totemismo Hoje, brilhante argumento feito em 1962, a defender essa quinta doença social oculta: a falta de solidariedade que o utilitarismo traz; a falta de respeito para o desenvolvimento da inteligência construída em ideias adscritas às em imagens no seu agir animista ritual. Que identifica em torno da imagem, a figura interactiva dum povo. Que descreve o que esse povo faz e deve fazer. Imagens diferentes conforme a utilidade procurada pelo lobby. E pelo objectivo da sua hierarquia social como indivíduo dentro do grupo do lobby. Imagens que representam o que nós pensamos e queremos, que desenvolvem o nosso imaginário enquanto tecemos a história que anima essa imagem pelos nossos criada ou, as vezes, por nós. Essa, que os próprios povos cristãos politicamente permitidos, constroem e veneram, enquanto criam orgulho e identidade social.
Donde, uma sexta doença social é o desapreço aos que respeitam e veneram, aos que ajoelham e oram, aos que pedem com ideias para não terem que produzir e se armar de escravos. Ou, ainda, matam os da outra imagem: essa doença não solidária do utilitarismo que eu respeito e acredito, se tu mandas pelas armas, mas grito e espanco, se provo, perante o mundo, a tua maldade. Como no Chile tem acontecido. Como foi em Espanha, como foi em Portugal, no Kosovo, no Randa, em Timor. Como na Tanzânia curou esse discípulo de Malinowski, Julius Nyerere.
Filho, a cultura tem esse mal-estar pelas doenças do nunca acabar de entender o que cada grupo quer e faz ou quer e o não deixam pensar. Doença que nasce da concorrência entre seres que querem ganhar para eles o bem utilitário que os faça sentir bem. De quem é a doença? Do corpo. Qual o corpo? O corpo social. Porquê? Porque quer ver-nos a pensar e agir duma mesma maneira. Donde, a inveja é mais uma sétima doença, de entre as milhares de doenças, ao serem sociais, que se esconde no falar hierárquico dos que exibem a mentira de serem iguais e acabam por tentar andar com as roupas novas e o derradeiro modelo de carro a correr pelas estradas feitas para passear. É dura a vida, pequeno! E como pode contagiar! Qual, será então, a nossa doença?
(Continua)
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