Com este texto de Manuel Simões, reabrimos este dossiê evento, uma iniciativa lançada por Sílvio Castro. De lembrar que a tréplica de Carlos Loures a Sílvio Castro sobre as origens da Literatura Brasileira será apresentada nesta segunda fase.
A literatura moçambicana é essencialmente um fenómeno do século XX, se considerarmos que a primeira manifestação colectiva de carácter literário partiu do núcleo cultural da então “Casa dos Estudantes do Império”, criada em Lisboa, com a publicação de uma antologia poética, “Poesia em Moçambique”, em 1951. Antes desta data houve evidentemente tentativas, ainda que tímidas, de dar expressão literária ao real moçambicano e, nessa perspectiva, pode aludir-se a Campos de Oliveira, poeta de origem e vivência moçambicana (nascido na ilha de Moçambique em 1847), o qual, pelo menos com o poema “O Pescador de Moçambique” insere um discurso de protesto no espaço colonial e cuja motivação anda à volta da diferença racial :” Eu nasci em Moçambique,/ de pais humildes provim,/ a cor negra que eles tinham/ é a cor que tenho em mim”.
Este problema volta a aparecer nos escritos de princípio do século XX, sendo um bom exemplo Rui de Noronha, que colabora já nos anos 30 no jornal “O Brado Africano”, de Lourenço Marques, com alguns textos onde emerge a “dor de ser preto” ligada ao “sentimento de africanidade”, um traço distintivo que começou a aparecer, com alguma insistência, na produção indígena até ao emergir de Noémia de Sousa que, no dizer de Manuel Ferreira, “ultrapassa de uma e por todas as vezes, o precursor Rui de Noronha. É dela o poema “Sangue negro”, modelo de muitos discursos posteriores, e não só em Moçambique: “Ó minha África misteriosa, natural/ minha virgem violentada!/ Minha Mãe!”.
Também a publicação “Itinerário” (1941-1955) deu voz ao tema do negro num contexto social em conflito, o que conflui na tomada de consciência do intelectual dividido pelo sangue, pela cultura (sem esquecer os fenómenos típicos de aculturação) e por uma geografia afectiva que acabariam por modelar a consciência nacional e a própria luta de libertação contra os espinhos pungentes representados pelos mecanismos da colonização.
No âmbito específico da poesia, a revista “Msaho” (Lourenço Marques, 1952) - título emblemático porque ligado à cultura de um grupo étnico moçambicano (os “chopes”) -, representa a tomada de pulsação da nova era, não isenta, porém, de contradições internas num tempo histórico adverso aos possíveis discursos transgressivos. Deste modo os textos de “Msaho” são paradigmáticos do que foi, ainda por duas décadas, uma constante da poesia moçambicana, isto é, um produto literário híbrido que se manifesta através de duas linhas contrapostas: uma de raiz europeia ou europeizante, a outra com marcas evidentes de matriz moçambicana.
Com efeito, as publicações sucessivas até à independência de 1975 mostram uma ambiguidade de fundo, um discurso sinuoso que parece depender de hesitações, de progressos e recuos e das condições sócio-políticas vigentes na então colónia portuguesa. A título de exemplo, basta referir os cadernos “Caliban” (1971), dirigidos por dois poetas, um europeu (J.P. Grabato Dias, aliás António Quadros) e o outro africano (Rui Knofli), cadernos que, embora exibindo um título simbólico, manifestam a confluência da dupla linha de tendência, isto é, ocupando um espaço onde a poesia moçambicana se confronta com experiências literárias europeias. Ali aparecem nomes já afirmados de poetas da área moçambicana, embora sem uma consciência nacional, como os do citado Rui Knofli e Rui Nogar, ao lado de José Craveirinha e de Fonseca Amaral, o último dos quais, em conjunto com Noémia de Sousa e Orlando Mendes, deve ser considerado o pioneiro da moderna poesia moçambicana.
Deste modo se foi formando um tecido heterogéneo que se fixava cada vez mais em referentes especificamente africanos, não sem frequentar modelos e formas de outras geografias literárias, privilegiando decerto os poetas estrangeiros da negritude (e Nicolás Guillén será um dos autores afro-americanos de maior influência).
Neste contexto, pode dizer-se que José Craveirinha é um dos poucos autores africanos de língua portuguesa cuja gramática poética não manifesta, mesmo antes da independência política, a constante bipolaridade europeu/africano. Nascido em 28 de Maio de 1922 em Lourenço Marques, filho de pai branco (português) e de mãe negra, a sua moçambicanidade é, desde o início, a marca de um discurso plenamente assumido como exaltação da terra-mãe. Com efeito, desde “Xigubo” (1964) – título que já projecta luz conotativa sobre o tecido poético, visto que, em língua xi-ronga, significa “dança de exaltação guerreira” -, passando por “Karingana ua karingana” (1974) até “Cela 1” (1980), o amor visceral pela terra e a sua íntima identificação com o homem negro são temas nucleares de Craveirinha.
Acrescente-se que a sua posição relativamente à Europa e à sua dupla qualidade branco/negro é declarada pelo próprio poeta numa síntese felicíssima que constitui uma sua famosa poesia (“Ao meu belo pai ex-emigrante”) e onde a moçambicanidade prevalece. Sem repudiar a ascendência cultural herdada do pai (“Juro que em mim ficaram laivos/ do luso-arábico Aljezur da tua infância”), a sua escolha é , porém, inequivocável: “mas amar por amor só amo/ e somente posso e devo amar/ esta minha bela e única nação do Mundo” (“Karingana ua karingana”).
Falou-se aqui apenas da poesia moçambicana porque foi o género literário quase exclusivo que se produziu naquela geografia. Contrariamente ao que aconteceu noutras colónias (Angola ou Cabo Verde), a narrativa foi quase inexistente. O primeiro narrador moçambicano de qualidade, João Dias, morre muito jovem em Portugal, onde frequentava a Universidade, tendo a sua obra, “Godido e outros contos” sido publicada postumamente, em 1952, pela Casa dos Estudantes do Império de Lisboa. E só doze anos mais tarde a literatura moçambicana produziu um novo narrador negro de grande talento, com a publicação de “Nós matámos o cão tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana. Já depois da independência revela-se então o grande romancista Mia Couto, com “Vozes Anoitecidas” (1986) e “Cronicando” (1987), a que se seguiu uma série de obras que o impuseram como autor de dimensão verdadeiramente internacional.
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