Sexta-feira, 7 de Janeiro de 2011

Cidade Maravilhosa – 4– por Sílvio Castro

(Continuação)

A “Cidade Maravilhosa”, além do seu natural e quotidiano ritmo de vida expressiva, agora convive igualmente com esse acentuado clima de contestação política. A contestação é tão forte que então ninguém conseguia ver claramente o que poderia acontecer com a eleição presidencial de 1955.

Para mim, que devo iniciar minha carreira de ensino, o começo de 1955 se apresenta difícil; difícil encontrar um lugar amplo de trabalho; difícil estabelecer-me com alguma certeza em um determinado posto. Foi então que, de repente, surgiu o primeiro desses postos. Mas, para confirmar as muitas situações de excepção em que me encontrava no início de uma carreira ainda desconhecida, recebo o convite para ensinar Filosofia para as turmas de 2º. e 3º. Anos do 2º. Grau do Colégio Feminino La-Fayette.

No início do ano-letivo de 1955, numa manhã radiosa de luz de fevereiro, entro compassadamente na minha primeira sala de aula. Aberta a porta da sala e nela penetrando, caminho por entre duas fileiras de moças, estudantes do 3º. Ano. De pé, recebendo respeitosamente o professor de Filosofia estão trinta bonitas e surpresas faces que não acreditam no que os seus olhos vêem: um professor de filosofia com pouco mais anos do que os dezessete, dezoito delas. Consciente do que está sucedendo, completo o meu longo caminhar entre as duas fileiras de belezas, chego à minha cátedra, me acomodo e convido a todas elas de sentarem-se. Começa a lição de Filosofia. Aquela que preanuncia todo um ano de trabalho para o indefeso professor que neste momento se vê devorado por trinta olhares ávidos.

 

Começa então a minha aprendizagem e verdadeira tomada de consciência da condição de docente. Como num estado de suspensão continuada essas lições me ensinam mais do que todo o meu curso universitário me conseguira ensinar. Sei, e a cada lição, que me estou renovando e amadurecendo diante daquelas surpreendidas alunas do La-Fayette, que entre elas lutam calorosamente para ver qual a que teria a campacidade  de seduzir-me no menor tempo possível. Um dia, quando o meu curso já atingira dois-terços de suas previsões quanto a matéria a ser comunicada, matéria que eu procurava equilibrar entre as noções de História da Filosofia e incurções no âmbito da Psicologia do Comportamento, uma manhã depois de uma exercitação sobre os tipos de comportamento, vejo uma graciosa mão levantada. Era Maria de Lourdes, talvez a mais bonita das trinta bonitas alunas daquela classe:

 

“Professor, eu tenho alguns difíceis problemas de comportamento. Como sabemos que o senhor tem um escritório no Centro da Cidade, eu poderia lá ir num dia que o senhor marcasse?“

 

Com particulares dificuldades, mas que sempre mantive dentro de mim, consegui que Maria de Lourdes não tivesse a oportunidade de encontrar-me no meu escritório. O ano acabou e todas as alunas dos Cursos de 2º. Grau do Colégio La-Fayette conseguiram superar com boas médias os seus empenhos escolásticos.

 

Mas as excepções não acabam aqui. No meio do ano letivo 1956 recebo um convite muito particular vindo da Direção do Colégio Felisberto de Meneses: um professor de Filosofia se retirara O porque consistia no fato que não conseguira dominar os ânimos particulares de uma sua classe do turno da noite. Assim, numa noite do doce inverno carioca entro na sala de aula rebelde. Os alunos, porque era uma turma só de homens, me olham surpresos. E eu os surpreendo lentamente. Recompondo a matéria do antigo professor, as junto a continuadas considerações gerais de filosofia que podem parecer mais uma troca de idéias do que de lições. Os alunos rebeldes se revelam a cada lição sempre mais e mais interessados e partecipantes. E assim chegamos ao final do ano, sem maiores danos.

 

Vivo em 1955 outro episódio formativo. Recebo do setor especializado do Ministério da Educação e Cultura um convite para realizar um curso de Habilitação de professores de História, tendo como destinação Vitória, Estado do Espírito Santo. Esses cursos tinham a função de legalizar, através de um curso intensivo de um mês, com imediatos exames de verificação da aprendizagem, professores estaduais que não possuiam o título legal da licenciatura. Em geral tratavam-se de professores de longa experiência, com a variante de algumas presenças jovens. O grande problema com que então me confrontava não era em verdade o curso mensal, que transcorria sem surpresas, mas os exames posteriores. Isto porque se os professores não conseguiam superar os ditos exames, perdiam o direito de trabalhar. Tomado por uma responsabilidade tão grave, eu encontrava serenidade interior somente nos banhos de mar que cada dia, depois da aulas, eu fazia nas águas inéditas para mim da praia de areias monazíticas de Guarapari.  Depois, tudo correu bem em Vitória; mais para o jovem professor que ainda devia completar seus vinte e quatro anos, do que para os professores definitivamente aprovados.

 

No ano seguinte repeti a experiência no Rio Grande do Sul, na cidade de Sant’Angelo. Neste 1956 já me sentia um pouco mais amadurecido diante da empresa que o MEC me oferecia. O mês em Sant’Angelo transcorreu tranquilo. Pude então entrar em contacto com um território brasileiro que me era desconhecido. Em companhia de Mary Gay, a filha do comandante do Regimento da Cidade, eu percorria no seu jipe, quase todas as semanas, as lonjuras dos pampas e gozava a grandeza das Ruínas das Missões Jesuíticas. No final do Curso, todos os professores tiveram serena aprovação em suas provas.

 

A  partir de 1957 a minha atividade docente se acentua, alargando-se em outros Colégios e Cursos de Vestibular. De particular importância me se revelavam as aulas do Curso da noite do Colégio Brasil, em Niterói, isto porque para chegar até a Alameda onde se encontrava o Colégio, eu viajava numa ida-e-volta deliciosa nas barcas da Cantareira que, singrando as águas da esplendorosa Baia da Guanabara, me levavam a Niterói e me traziam sempre de volta para a “Cidade Maravilhosa”. E então apreendí a verificar e gozar a beleza sem fim do Rio de Janeiro visto das águas. Tudo isso eu muitas vezes comunicava aos meus alunos niteroienses, em geral mais tranquilos do que aqueles cariocas.

 

A minha atividade no Colégio Brasil me ensejou uma outra conquista, desde há muito desejada: o salto na direção do ensino universitário. E, mais claramente, daquele de Literatura Brasileira. Nos anos de 1958 e 1959 realizo finalmente este meu sonho. Por contrato entro na Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF). Porém, nesses anos não obtenho ainda o almejado curso de Literatura Brasileira, por falta de vaga. Deveria esperar. Faço-o exercitando o magistério de uma disciplina que eu sentia bastante distante dos meus interesses, Estatística Educacional. Como sempre amei a sociologia, nessas passageiras aulas eu aplicava sempre o método sociológico para explicar aos atentos alunos do Curso de Didática os muitos meandros da matéria que deveriam aprender comigo que a quase ignoravo...

 

O interesse pelo magistério da Literatura Brasileira, parte integrante do meu crescente ritmo de atividades literárias, além dos cursos de literatura que eu dava no Instituto Ghirlandaio, do crítico de arte Carlos Cavalcanti, em plena Copacabana, esse interese literário me levou a criar um meu próprio Curso para os candidatos às Faculdades Humanísticas: Nasce assim o utópico e fugaz Curso Paidéia, de literatura, arte e cultura geral.

Mas, nada é inútil. Morto o Curso Paidéia, no mesmo ano de 1959 crio uma publicação literária que deveria colocar em prática todos os meus ideais relacionados com o ensino de literatura e com a literatura brasileira. Tendo como sócio Waldir Ribeiro do Val, crio o Anuário da Literatura Brasileira e, com este, a Editora do Anuário da Literatura Brasileira. Tendo o seu primeiro número saído em 1960, o Anuário conquista um grande sucesso nacional, com transbordamento para áreas correspondentes no Exterior.

 

Com a realização do Anuário, em particular com a meticulosidade de sua metodologia de trabalho e capacidade de documentação derivada de surpreendente atividade ligada à pesquisa literária, a minha natureza de professor de filosofia lentamente se transforma em seu derivado lógico, o docente de literatura.

 

Quando no dia 15 de novembro de 1962, a convite do Itamaraty, Ministério dos Negócios e Relações Exteriores, aonde eu trabalhara por todo o 1961 escrevendo a parte “Cultura” do Livro Brasil, uma verdadeira enciclopédia brasileira sintética, pego um jato da Panair que partirá do Rio diretamente para Roma, para criar em Veneza, na Universidade Ca’ Foscari, cursos de língua portuguesa e de literaturas de língua portuguesa, que logo em seguida, por convite pessoal, extendo exaustivamente à Universidade de Pádua, o jovem professor de filosofia e história, partido em 1955, vê o seu retrato ¾ ampliado numa dimensão que naquele momento ulisseo lhe era impossível quantificar.

 

(Continua)

publicado por Carlos Loures às 20:00

editado por Luis Moreira às 12:01
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