Quinta-feira, 6 de Janeiro de 2011

Cidade Maravilhosa – 3 – Sílvio Castro

(Continuação)

 

 

Retrato  ¾  de  um  jovem  professor  de  filosofia  na  “Cidade Maravilhosa”

Tudo começa concretamente antes do início verdadeiro. E começa em ritmo de valsa, no  grande baile de gala no Clube Municipal pela turma de bachareis da Faculdade de   Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal, do ano 1954. Impecável, mas quase tonto no meu magnífico smoking, danço em viravoltas com Nadyr, muito bela no seu vestido longo. Tenho grande receio de pisar na grande roda do vestido de gala de Nadyr, o que fatalmente acontece depois da meia-noite e de tantos rodopios.

 

Aquela era a festa pelo fim de uma atividade formativa, desejada desde sempre por mim, e que me ocupara quase completamente nos últimos quatro anos. Meu curso de Filosofia foi um decorrer de fortes descobertas. Principalmente nos três anos do bacharelado, quando me confrontei com o desconhecido desejado, guiado por professores de alta professionalidade e cultura. Entre eles, destaco o professor de História da Filosofia, Tarcísio Padilha, pouco mais velho do que o seu aluno, mas que já demonstrava a profundidade de saber e de interesses que o iriam acompanhar nos anos; o professor de Lógica, Júlio Barata, espírito universal, de grande versatilidade cultural, que me desvendava os mistérios de um setor do conhecimento filosófico a que eu dava particular atenção, e que muito me ajudou nos meus estudos jurídicos, começados um ano depois do início daquele de Filosofia. Júlio Barata ocupava igualmente o ensino de Literatura Latina na nossa Faculdade. Quase sempre eu seguia também as suas aulas de literatura, assim como o fazia para com aquelas de Afrânio Coutinho, de Teoria Literária. Uma vez, escutando eu uma das lições sempre brilhantes do Prof. Júlio Barata, e tendo eu interropido o docente para lhe fazer uma pergunta, diante da amplidão, segundo ele, da mesma pergunta, o Professor Barata me disse diante de toda a turma: “Sílvio, porque é que você segue o curso de Filosofia e não o de Literatura?“ Respondi-lhe, talvez com a presunção de todo o jovem de 22 anos: “Porque literatura eu já sei.” A aparente irresponsabilidade da resposta podia ser amenizada porque eu queria dizer, em verdade, que da literatura eu já me sentia de posse do significado mais amplo, enquanto que tudo me faltava da filosofia.

O jovem professor de filosofia começa realmente a existir em 1955, ano da licenciatura definitiva. Seguindo o ritmo sempre vertiginoso da Rio de Janeiro daqueles dias de geral agitação nacional, num tempo herdeiro da contestação política consequente do dramático episódio do suicídio do Presidente Getúlio Vargas aos 24 de agosto de 1954, entro no ensino sob o signo das exceções, em todos os sentidos. Não sei ainda que professor sou e que professor poderei chegar a ser, mas me confronto imediatamente com o difícil mercado de trabalho em que se embate todos os jovens docentes de todos os tempos, em particular para aqueles de então. Ensinar filosofia é partir em inferioridade de oportunidades diante da maioria das outras matérias, porque as suas horas oficiais são do grupo das matérias limitadas. Felizmente a licenciatura de Filosofia permite igualmente o magistério de História. Daquela Geral, mas com privilégio para a História do Brasil. Porém, não terminam aí as exceções. Acrecente-se às poucas horas disponíveis oficialmente no programa do ensino o fato de viver o Brasil num regime predominantemente de escolas particulares para o ensino secundário. Este mesmo regime, ao contrário daquelas estatais, permite às escolas o pagamento do docente a forfait, por horas de lições dadas, sem obrigação de um claro contrato mensal de trabalho estável. Desta maneira, os desníveis de pagamento são inevitáveis, tocando principalmente os interesses dos docentes mais jovens e iniciantes. Este sistema de horários cria um grande problema para os professores, aquele da passagem de colégio a colégio numa grande cidade como o Rio de Janeiro. O que comportava e comporta uma perda de duas, três horas de locomoção diária, por seis dias na semana. Isto naturalmente para aqueles professores que têm a sorte surpreendente de poder trabalhar em muitas sedes. Este mesmo sistema das escolas particulares faz aparecer outro grande problema, aquele relacionado com os horários das mesmas. Em choque com as conquistas sindicais, essas escolas funcionam em vários turnos, começando às 8 da manhã e concluindo às 23 horas, com docentes que ocupam todos os turnos.

 

A única alternativa a este sistema predominante são as escolas públicas. Mas para chegar até elas precisa-se esperar a abertura de concursos especiais. Naturalmente, eu, professor imberbe de filosofia, mas igualmente feliz pela possibilidade de ensinar também  história, pouco posso sonhar neste inicial 1955 com um concurso para a escola pública. Devo lutar pelos poucos lugares que se me oferecem naquelas particulares. Em verdade, logo enfrento o sonho e me inscrevo num concurso para uma cátedra de História Geral e do Brasil das escolas secundários do Distrito Federal. Sabia que me tocava partir com poucas chances de sucesso diante das dezenas e dezenas de candidatos, em geral professores de grande experiência e, de consequência, ricos de títulos, uma das partes do concurso, além daquela dos exames propriamente ditos. Eu partia com o mínimo de pontos em títulos, podendo apresentar somente os meus atestados de bacharel e licenciado em Filosofia. Depois, para compensar tantos desfalques da idade, me entrego por meses a uma estudo sem fim de história. Para isso frenquentavo por mais de 6 horas por dia a esplêndida biblioteca do Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, localizada em belo prédio estilo neo-manuelino da rua Luís de Camões, entre o Largo de São Francisco e a Praça Tiradentes, pleno centro da cidade, criado pela colônia portuguesa do Rio, no qual me deixava levar pelos sonhos diários diante de suas monumentais estantes cobertas de milhares e milhares de livros, estantes que ocupavam um largo espaço e de grande altura. Ali era tudo um solene silêncio, somente sublinhado pelos sussuros dos passos cautos dos leitores em procura de suas mesas e no subir dos mesmos leitores por muitos metros nos três andares das magníficas estantes, no afano das buscas dos livros mais longínquos.

O concurso começa com a prova escrita de História Geral. Para esta o tema sorteado foi “Jogos e divertimentos da Roma antiga.” Decorridos todos os exames, o concurso termina com a aprovação de somente 10 candidatos, entre os quais, surpreendentemente me encontrava também eu, colocado no quinto lugar. O presidente da Comissão de exames, o prof. Pedro Calmon, ao proclamar os resultados, se congratula alegremente com o jovem candidato colocado no quinto lugar. Começa então o tempo das nomeações, com a esperanças de todos os dez classificados que essas se verificassem antes do fim do prazo de prescrição dos direitos legais dos aprovados, direitos limitados em dois anos. Inicialmente são chamados os três primeiros colocados. Depois, mais nada.

 

Tudo isso acontece num Rio de Janeiro fervente desde a morte de Getúlio, episódio que provocou a revolta geral da opinião brasileira nos mais diversos setores da vida do País, principalmente entre os estudante universitários que então vivem uma experiência que a Europa iria conhecer somente um decênio mais tarde, com o Movimento de 1968. Porém aquele brasileiro se distinguia fortemente do futuro movimento dos estudantes europeus, pois ele era marcante e quase exclusivamente uma movimento de protestos políticos.

(Continua)

 

 

publicado por Carlos Loures às 20:00

editado por Luis Moreira às 20:32
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