Sexta-feira, 7 de Janeiro de 2011

Canto da cela 10 - por Carlos Loures

 

 

Como já disse, a falta de tempo obriga-me a ir buscar coisas antigas – estou a publicar poemas que já saíram noutro blogue sob a designação genérica de “Poemas com história”. Na realidade, todos foram escritos em circunstâncias peculiares ou foram a resposta a situações concretas – daí a história que a todos antecede. A de “Canto da cela 10” é assim:

Em Janeiro de 1965, envolvido na grande vaga de prisões que afectou estudantes e intelectuais das duas organizações clandestinas existentes – o Partido Comunista e a Frente de Acção Popular – fui preso e, antes de ir para a sede da polícia política onde, durante muitos dias, fui interrogado da forma que se sabe ou imagina, estive uns dias na cela nº 10 do Aljube, num daqueles desumanos cárceres a que se chamava os «curros», celas estreitas e insalubres onde a luz filtrada através das grades e atravessando o corredor, era a única coisa agradável que acontecia.

Quando, três meses depois, fui libertado, a recordação daqueles dias num «curro» do Aljube (que nem foram os piores…), ditou-me este texto que depois publiquei em A Voz e o Sangue (1968-2ª ed.). A publicação deste livro seria a causa próxima para uma outra prisão, mais prolongada.

 

De notar, e não me canso de insistir neste tópico, que a Liberdade que invoco não é esta que vivemos – muito feita de «liberdades» - mas sim aquela que, há mais de 40 anos, eu e muitos sonhávamos  alcançar. Foi por ela que  lutámos e pela qual fomos presos, espancados e torturados. Foi por ela e não por isto. Ao meu poema junto a magnífica canção do Fausto.

Este esquife de pedra e de aço em que viajo,

onde navego as horas e as constelações do ódio,

é uma cela imóvel plantada no coração do medo.

Um manto de argamassa e ferro cobre a minha voz.

Não mais a mordaça invisível da falsa liberdade

que ante o Sol floresce impudicamente: agora

a voz abafada por sucessivas grades e paredes,

submersa sob este céu de estuque, sem estrelas;

agora, esta feia gaiola pintada de desespero,

em cujo dorso vai cravada a aranha possessiva

da lâmpada gradeada sempre acesa sobre a porta,

feroz sentinela da noite eterna. E, todavia,

para lá das grades, do corredor, do carcereiro,

a minha face adivinha o hálito fresco da madrugada

e eu navego a madrugada sobre o meu bailique,

sobre este corcel rescendente a suor e a sangue.

Durante as refeições abrem a porta e eu vejo

uma estreita fatia da janela do corredor:

são cinco grades de sé e três de céu

e estes são os melhores momentos do dia.

De pé, como a sopa do estado e olho a catedral –

- tive sorte – fiquei em frente a uma bela rosácea

(o quotidiano de um preso constrói-se

de factos humildes e pequenos).

Na parede cinzenta tatuaram um camelo sem pernas,

Um perfil de mulher com longos cabelos,

Uma estrela, nomes e riscos, muitos riscos,

sulcos no tempo, dias rasgados a golpes de solidão

pelos muitos camaradas que já aqui estiveram

e deixaram a sua passagem impressa nas paredes,

no chão, nas mantas e no ar, neste odor,

escandindo angústia e dolorosa expectativa.

Já não olho a parede – conheço-a de cor –

gasto  as horas passeando nestas estreitas tábuas,

quatro metros para lá, quatro metros para cá.

Lá fora

passam eléctricos e os pombos ruflam as asas.

………………………………………………………

À noite a prisão é um corpo pétreo, mas que pulsa,

As suas velhas empenas vibram sob os nossos dedos,

levam e trazem palavras fraternas.

Com o amor com que Ísis juntou o corpo de Osíris

disperso ao vento, junto letra a letra

uma mensagem que palpita aos meus ouvidos

- coragem companheiro – coragem companheiro.

Ah Companheiros,

nem a pedra e o aço conseguem esmagar as nossas vozes,

elas virão um dia como um rio impetuoso e forte

rasgar a noite em que as querem aprisionar,

destruir as grades da tirania, a opressão

e a crueldade – tudo isto derrubarão

na corrida para o seu oceano – a Liberdade.

 

 

publicado por Carlos Loures às 12:00

editado por Luis Moreira em 06/01/2011 às 20:51
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2 comentários:
De adão ctuz a 7 de Janeiro de 2011
Exactamente, Carlos. A liberdade pela qual lutaste e outros lutaram era aquela com que sonhavam e não "isto". Um abraço
De augusta clara a 7 de Janeiro de 2011
Muito belo e comovente poema. Continua...a não teres tempo para escrever.

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