Como já disse, a falta de tempo obriga-me a ir buscar coisas antigas – estou a publicar poemas que já saíram noutro blogue sob a designação genérica de “Poemas com história”. Na realidade, todos foram escritos em circunstâncias peculiares ou foram a resposta a situações concretas – daí a história que a todos antecede. A de “Canto da cela 10” é assim:
Em Janeiro de 1965, envolvido na grande vaga de prisões que afectou estudantes e intelectuais das duas organizações clandestinas existentes – o Partido Comunista e a Frente de Acção Popular – fui preso e, antes de ir para a sede da polícia política onde, durante muitos dias, fui interrogado da forma que se sabe ou imagina, estive uns dias na cela nº 10 do Aljube, num daqueles desumanos cárceres a que se chamava os «curros», celas estreitas e insalubres onde a luz filtrada através das grades e atravessando o corredor, era a única coisa agradável que acontecia.
Quando, três meses depois, fui libertado, a recordação daqueles dias num «curro» do Aljube (que nem foram os piores…), ditou-me este texto que depois publiquei em A Voz e o Sangue (1968-2ª ed.). A publicação deste livro seria a causa próxima para uma outra prisão, mais prolongada.
De notar, e não me canso de insistir neste tópico, que a Liberdade que invoco não é esta que vivemos – muito feita de «liberdades» - mas sim aquela que, há mais de 40 anos, eu e muitos sonhávamos alcançar. Foi por ela que lutámos e pela qual fomos presos, espancados e torturados. Foi por ela e não por isto. Ao meu poema junto a magnífica canção do Fausto.
Este esquife de pedra e de aço em que viajo,
onde navego as horas e as constelações do ódio,
é uma cela imóvel plantada no coração do medo.
Um manto de argamassa e ferro cobre a minha voz.
Não mais a mordaça invisível da falsa liberdade
que ante o Sol floresce impudicamente: agora
a voz abafada por sucessivas grades e paredes,
submersa sob este céu de estuque, sem estrelas;
agora, esta feia gaiola pintada de desespero,
em cujo dorso vai cravada a aranha possessiva
da lâmpada gradeada sempre acesa sobre a porta,
feroz sentinela da noite eterna. E, todavia,
para lá das grades, do corredor, do carcereiro,
a minha face adivinha o hálito fresco da madrugada
e eu navego a madrugada sobre o meu bailique,
sobre este corcel rescendente a suor e a sangue.
Durante as refeições abrem a porta e eu vejo
uma estreita fatia da janela do corredor:
são cinco grades de sé e três de céu
e estes são os melhores momentos do dia.
De pé, como a sopa do estado e olho a catedral –
- tive sorte – fiquei em frente a uma bela rosácea
(o quotidiano de um preso constrói-se
de factos humildes e pequenos).
Na parede cinzenta tatuaram um camelo sem pernas,
Um perfil de mulher com longos cabelos,
Uma estrela, nomes e riscos, muitos riscos,
sulcos no tempo, dias rasgados a golpes de solidão
pelos muitos camaradas que já aqui estiveram
e deixaram a sua passagem impressa nas paredes,
no chão, nas mantas e no ar, neste odor,
escandindo angústia e dolorosa expectativa.
Já não olho a parede – conheço-a de cor –
gasto as horas passeando nestas estreitas tábuas,
quatro metros para lá, quatro metros para cá.
Lá fora
passam eléctricos e os pombos ruflam as asas.
………………………………………………………
À noite a prisão é um corpo pétreo, mas que pulsa,
As suas velhas empenas vibram sob os nossos dedos,
levam e trazem palavras fraternas.
Com o amor com que Ísis juntou o corpo de Osíris
disperso ao vento, junto letra a letra
uma mensagem que palpita aos meus ouvidos
- coragem companheiro – coragem companheiro.
Ah Companheiros,
nem a pedra e o aço conseguem esmagar as nossas vozes,
elas virão um dia como um rio impetuoso e forte
rasgar a noite em que as querem aprisionar,
destruir as grades da tirania, a opressão
e a crueldade – tudo isto derrubarão
na corrida para o seu oceano – a Liberdade.
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