Quinta-feira, 6 de Janeiro de 2011

O PROCESSO EDUCATIVO: ENSINO OU APRENDIZAGEM? - 4 - por Raúl Iturra

   

(Continuação)

 

 

5. A infância do professor.

 

 

É verdade que o professor é um inocente filho da conjuntura histórica que o formou. É verdade também que a imagem do professor, derivada da figura monástica ou goliarda, é resultado da sua possibilidade de explicar, de trabalhar com as categorias da razão. O processo de vida quotidiana que forma as crianças é vorazmente emotivo: por exemplo a chantagem derivada do mito cristão da morte de um homem que assume na sua vida o erro de todos os demais, excepto o seu, e que é a base teórica da nossa cultura ocidental; ou a hipótese de teoria cultural ocidental. O processo educativo de pais, parentes e vizinhos, é baseado na dulcificação do amor e da agressividade familiar, um facto que só podemos aceitar, pelo menos contextualizar para viver em paz. O professor trabalha com outras categorias, não fabricadas por ele, mas que lhe foram incutidas como teoria de afastamento para desenvolver mentes de lógica da prova. Não é que o professor não ame, o que deve fazer, é racionalizar a afectividade com que ensina. Assim, não chega ao processo de liberar os aprendizes da sujeição à sua palavra e conhecimento: primeiro, porque deve transmitir a teoria oficial de saber não relacionada com a experiência da classe social e de técnicas passíveis de entender pelos mais novos; segundo, porque todo o indivíduo que ele forma deve ser cidadão, isto é, moeda do mesmo valor. Mas, é verdade também, e isso é evidente no agir do professor, que ele é filho, principalmente, da sua infância. O professor também aprendeu a ser com os pais, parentes e vizinhos, e, a partir desse quotidiano, aprendeu então, como seus alunos hoje,  as categorias racionais do conhecimento.

 

 

Assim como na sociedade totémica de cada grupo entende a parte da natureza com a qual se identifica analogicamente, também na sociedade de classes a experiência de trabalho do grupo doméstico, e seus associados, explicam ao seu «rebento» a sua percepção da vida. Essa percepção da vida é difícil de mudar, como se pode apreciar em dois factos: nas metáforas com que os professores ensinam o programa preparado pelos eruditos; e na dificuldade evidente nos factos e nas estatísticas de insucesso escolar, de transmitir o conhecimento erudito à próxima geração. O professor poderia mudar o seu quotidiano reflectido no seu ensino, se ele próprio fosse um investigador que reproduz o que tenta entender na sua pesquisa. Mas, na sociedade de massas em que trabalha, o seu objecto de trabalho é definido como o de um artífice da escrita, leitura e cálculo, para o qual o conteúdo é um pretexto para desenvolver estilos literários como ditado, composição, ensaio, teste. A opção de quem movimenta o processo educativo é a de ensinar, porque não lhe é dada a oportunidade de experimentar, de pesquisar sobre o processo de dinamizar a aprendizagem. Assim, a infância do professor acaba por ser a teoria que marca essa única opção com a qual fica, um quotidiano que se impõe por saber as teorias que lhe são entregues. A análise de infância do professor, de toda a conjuntura em que nasceu, é a pista que nos faz falta para entender porque é que o processo educativo é mais marcadamente ensino e não aprendizagem.

 

Isto é, foge dos símbolos culturais que, explicitados na consciência do aluno, permitiriam a compreensão por parte dos aprendizes do racionalismo científico manipulado pelos eruditos. Se o professor não investiga da mesma maneira que os eruditos, as alternativas do processo educativo ficam fechadas e o processo educativo sujeito aos seus símbolos aprendidos no quotidiano que marca a percepção dos factos durante a sua carreira burocrática. O processo educativo, ensino e aprendizagem, tem a forte componente de ensino com os conteúdos eruditos decorados, percebidos pela experiência do ciclo de vida do indivíduo que é professor e que elabora uma pedagogia a partir da sua experiência do dia-a-dia das aulas, do afastamento cultural com a população que ensina e, paradoxalmente, da sua interpretação de pais e crianças trazida do seu próprio quotidiano pré-profissional.

 

6. Outras culturas.

Permita-me o leitor dar uma pequena volta por outras terras, essas que os antropólogos estudam fora do continente europeu, para comparar e relativizar o território português. Entre os povos que nós chamamos primitivos, e que são nossos contemporâneos, o conhecimento de como se relacionar com os outros, e o lugar que cada um ocupa na estrutura social, está determinado antes de um indivíduo nascer. O primeiro conhecimento que se incute a cada nova geração é o das hierarquias sociais, que começa logo pelas históricas, quer dizer, desta terra até às dos ancestrais que desde algum lugar fora da matéria observam e intervêm nos destinos dos vivos. Todo o indivíduo Tallensi, no Ghana, como Meyer Fortes estudou (1949), sabe que o seu destino não depende da sua vontade, mas da arbitrariedade da divindade que passou a ser seu antepassado. Assim como todo Tallensi sabe que em caso de guerra (Fortes, 1940), não pode matar nem ferir pessoas do deu próprio sangue que, por  causa da lei exógama que governa a troca matrimonial, se encontrem entre o clã com que se batalha. Os meninos Baruya, da Nova Guiné (Godelier, 1982), sabem que um dia serão separados das suas mães para irem viver com homens na casa reservada a eles; o sobrinho do chefe Kiriwina, na Melanésia (Malinowski, 1922 e 1928), está advertido desde sempre que não pode brincar sexualmente com as mulheres jovens de seu tio, sob pena de ser expulso e perder a chefia, a terra e as suas relações. Enfim, uma mulher Maori, na Nova Zelândia (Firth, 1929), quando sai da casa dos pais para ir casar a outra casa, sabe antecipadamente, por causa da cultura ou usos e costumes reiterados, que seu filho voltará um dia ao lar original a reclamar a herança da mãe e trabalhá-la. Este é o segundo conhecimento que se ensina a cada membro da tribo ou clã, de que há uma estrutura dentro da qual decorre o processo de vida, e que sair dela é o risco de não ser aceite no meio dos outros. Sem dúvida que tudo isto acontece dentro de signos e símbolos que permitem o entendimento das regras do convívio, assim como sob as ideias religiosas que estabelecem que se assim não agirem serão punidos até pelos outros seres humanos. Não há diferença entre estes comportamentos e os nossos, enquanto processo, embora existam enquanto conteúdo.

 

A diferença não é de primitivo contemporâneo para civilizado contemporâneo: a diferença é, simplesmente, entre prática e prática dos povos conforme a sua experiência histórica. A questão que se coloca é como é que se chega a conhecer, quais as maneiras, conteúdos e processos que permitem que a memória social seja incutida e respeitada pelos membros dos grupos. É verdade que o saber se transmite, mas que saber é transmitido, por que procedimento, é o que interessa analisar. A resposta geral é que é a cultura – isto é, as formas de pensar a vida material e de interacção -, a tradição, os valores, a autoridade, a instituição que ensina. Eu penso que, sobretudo, por existir a possibilidade de discordar, o que existe é um conjunto de conceitos partilhados por todos os grupos sociais de uma mesma cultura, que se impõem como aprendizagem a cada pessoa e que forma o processo educativo ao qual se adere, porque do entendimento individual e social depende a sua subsistência, coordenada com os outros, a felicidade e a permanência entre os seus.

 

7. Querer aprender.

Não há qualquer dúvida que toda a criança quer aprender, hipótese derivada depois de ter observado o processo educativo durante vários anos, e em culturas diversas. Até por que ganha com isso a aprovação dos seus adultos. Mas, mais importante que isso, porque ao aprender entende o que se passa em torno de si. O processo educativo é, em consequência, mais amplo do que é o ensino em instituições especializadas. A primeira aprendizagem que procura a criança é a de distinguir pessoas. É evidente que, desde o seu nascimento, uma criança tem uma aproximação emotiva, pelo menos à pessoa que a cria e alimenta. O que eu quero referir aqui é a aprendizagem genealógica, entre pessoas com as quais se tem relações de subordinação, direitos e obrigações, e aqueles que é preciso evitar. A distinção genealógica leva à distinção entre os parentes e os que o não são, tais como vizinhos e amigos, adultos e pares, jovens e velhos, homens e mulheres. Daí, segue-se, apenas numa ordem convencional através do crescimento, a distinção do que cada um deles faz, qual o seu trabalho, o que parece ser o que a criança quer imitar.

 

Em qualquer cultura, o que se quer aprender é altamente diferenciado: primeiramente, porque se o grupo é altamente hierarquizado, isto é, com pouca mobilidade, a criança será e é orientada para o trabalho da pessoa que depois vai substituir; se a sociedade é menos hierarquizada, e apesar de entender principalmente o que fazem os adultos com os quais convive, prática que tem grande influência na sua memória, uma criança pode ser orientada para conhecimentos diferentes daqueles do lar. Seja como for, na aprendizagem existe sempre o limite do que o grupo sabe, conhece e pratica, o que a nível universal resulta de sociedades e povos pescadores, pastores, caçadores, industriais e outros. É na medida da compreensão do que aí é feito, que quem está a aprender ganha ou não o respeito dos restantes. Respeito que é um estímulo para querer aprender: todo o pequeno ser que mostra conhecimento e entendimento, recebe também a aprovação dos demais. Na vida quotidiana, o processo educativo é funcional à incorporação dos mais novos nos afazeres do grupo, uma incorporação interessada por parte dos adultos que estão empenhados em ter permanentemente mão-de-obra e outras inteligências que colaborem com eles. O facto de percorrer os sítios e lugares onde tudo acontece é já parte do processo. Para levar as crianças a outras actividades, é preciso contrariar as primeiras tentativas de imitar os adultos com mais importância. E é isto o que se faz nos processos de iniciação, quer entre os povos primitivos quer nos rituais dos povos denominados civilizados. Em ambos os sistemas existem, ou estão organizados, grupos de especialistas que empurram o seu candidato para este desencadear do processo mais primário de querer aprender. Saber é fazer parte dos que têm o conhecimento. Saber o quê é ser parte útil à função social da continuidade histórica. O problema de querer saber apresenta-se quando no grupo aparecem formas diferenciadas de técnicas para ensinar, e a arte de contrariar não fica nas mãos do grupo, mas nas mãos do poder que destina a sua actividade a só preparar essa política de contrariar.

 

8. Poder saber.

 

Significa ser capaz de entender a contradição da sociedade em que vive, apresentada à infância como seu destino. Se me permitem ainda os leitores outra passagem pelos grupos primitivos, gostava de lembrar o caso da chefia Maori da Nova Zelândia (Firth, 1929). O chefe domina o conhecimento da natureza, das hierarquias, da distribuição do território, da origem, da guerra e da reprodução. Normalmente, ele é o filho mais velho do chefe anterior e é treinado para estes conhecimentos, mas se não consegue afastar-se das suas habilidades predilectas para entender aquela universalidade é logo destituído e substituído pelo irmão mais velho do chefe anterior. Quer dizer, tem que mostrar as capacidades que o povo espera de um condutor de povos para assegurar a sua estabilidade no cargo: a lei Maori não prevê um prazo para o seu governo. Prevê, antes, uma capacidade. Mas prevê também um treino para chefia e uma companhia e ajuda de especialistas para desempenhar o trabalho. Na vida primitiva, como na vida rural europeia, o conhecimento, embora especializado, emerge do conjunto de experiências que as tribos ou aldeias têm, e é do mesmo tipo de lógica para o conjunto: analógico, religioso e metafórico. Na sociedade ocidental, a referida contradição às aptidões pessoais, especialmente no que diz respeito às formas industrializadas de vida, provêm de ideias diferentes acerca do destino social. A divisão final do trabalho não é feita por aptidões para qual a infância é longamente preparada: a divisão é feita para as necessidades de distribuição de pessoal pelas actividades que a produção industrial precisa. Não existe uma sequência entre as bases cognitivas das crianças e o saber que é incutido para o funcionamento social. A diferença está em que um povo, como o Maori, é um conjunto de pessoas distribuídas em tribos que exercem funções miticamente atribuídas pelos diversos domínios da natureza; enquanto a sociedade industrial é uma heterogeneidade de funções díspares que requer habilidades que a própria indústria decide – seja na produção, circulação, distribuição ou consumo dos bens. A sociedade Maori tem hierarquias;

 

o Ocidental industrial tem classes – que vieram intervir na prolongada vida rural. Poder saber, em consequência, passa por uma preparação específica e especial que a sociedade industrial determina de acordo com parâmetros diferentes dos conhecimentos analógicos, religiosos e metafóricos com que também a infância ocidental se defronta nos seus primeiros anos – quer na cidade, quer no campo. Poder saber não é a consequência de processos imitativos de adultos significantes ou de formas previstas hierarquicamente de contrariar as preferências ou aptidões pessoais. É, antes, resultado de uma lógica externa ao grupo de política educativa, que retira o aprendiz do seu meio, dos seus estímulos culturais, para o transferir para uma estrutura onde todo o conhecimento é elaborado na base da experimentação para o desenvolvimento do saber técnico. Como a criança Maori, a criança da sociedade industrial passa pelo ensino mítico, familiar e metafórico. Mas a diferença é logo afastada deste para ficar ligado ao ensino baseado em conceitos que contrariam toda a experiência da primeira infância: de querer saber. O processo educativo desloca o poder do saber, ao colocar as crianças entre o provável ou possível e o provado acerto. Acaba por não se poder saber porque a contradição entre a emoção e a razão é tão forte que limita o entendimento.

 

(Continua)

publicado por Carlos Loures às 15:00
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