Quinta-feira, 6 de Janeiro de 2011

Direcção de Augusta Clara de Matos

 


«SENSO»: A PAIXÃO EM VENEZA

  

João Bénard da Costa

 

Afinidades entre o cinema e a ópera — duas artes do tempo, duas artes «parasitárias», duas «artes de acréscimo», ou as duas artes que tendem para a «obra de arte total», sonhada por Wagner — sido pressentidas, notadas ou sublinhadas por muitos e desde há muito.

 

Ultimamente, tem-se generalizado outra e mais equívoca forma de aproximação. Quem fala da «morte do cinema» terá tanta razão ou pouca como quem fala da «morte da ópera». É verdade que, no caso desta última, nada de radicalmente novo aconteceu desde a estreia de Capriccio de Richard Strauss em 1942 ou, magnanimamente, desde a de The Turn ofthe Screw de Benjamin Britten, em 1954. Mas também é verdade que nunca, como hoje, tão vastas audiências viram e ouviram ópera e, mesmo por um balúrdio, é difícil conseguir um lugar para as temporadas dos principais teatros líricos do mundo ou para os grandes festivais. Nunca a ópera foi tão cara, nunca se pagou tanto aos seus intérpretes e nunca as lotações estiveram tão esgotadas. Normalmente — com excepções que apenas confirmam a regra — para se escutar e olhar um repertório escrito há mais de cem anos.

 

Há quem diga que o mesmo está a acontecer — ou vai acontecer - ao cinema. Talvez este nunca mais tenha os seus Verdi ou Wagner, talvez o lote de novos grandes filmes seja escasso, mas, num futuro não muito distante, as salas encher-se-ão para rever periodicamente o que foi realizado na idade heróica dele.

 

A hipótese parece-me aventurosa e pouco fundada, mas o simples facto de ser ponderada demonstra mais uma das analogias entre os dois «reinos»: quem o diz reconhece a ambos — cinema e ópera — uma aproximável localização em paragens limiares e liminares, onde partilham a luz e as sombras, a celebração da vida e a súplica da morte, a encenação da nostalgia e o apelo a uma recôndita harmonia.

 

Apesar disto — ou por causa disto —, de cada vez que o cinema tomou a ópera como texto, os resultados não foram brilhantes. Por um lado, são raríssimos os exemplos de óperas escritas propositada­mente para o cinema. Que eu saiba há apenas três. The Robber's Symphony, ópera e realização do alemão Friedrich Feher em Inglater­ra, 1936; Give Us This Night, ópera do alemão Erich Wolfgang Korngold e realização do americano Alexander Hall, em Hollywood, 1944; e Os Canibais, realização e ópera dos portugueses Manoel de Oliveira e João Paes, em Portugal, 1988. Por outro lado, são igualmente ra­ríssimos os exemplos conseguidos de transposição para o cinema de uma ópera. Julgo que somente Die Verkaufte Braut (A Noiva Vendida, de Max Ophuls, 1932), The Tales of Hoffman (Powell e Pressburger. 1951), Bluebeard's Castle (Michael Powell, 1964), Trollflõjten (A Flau­ta Mágica, de Ingmar Bergman, 1974), Moses und Aaron (Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, 1974) ou Parsifal (Hans-Jíirgen Syberberg. 1982) merecem ser retidas como excepção.

 

Mas o filme-ópera, a ópera feita cinema ou o cinema feito ópera, não é nenhuma das obras citadas. É o Senso de Luchino Visconti (1954). Por isso — sobretudo, por isso —, é um dos filmes da minha vida.

 

Na ópera (Teatro La Fenice, de Veneza) começa o filme, situa­do na Primavera e no Verão de 1866, durante os últimos meses de ocupação austríaca do Veneto, pouco antes do Risorgimento lá che­gar. Estamos no palco e ouve-se e vê-se o final do acto III de Il Trovatore de Verdi.

 

Ainda corre o genérico, quando Leonora e Manrico, na varanda de Castellor, cantam «l'onde de' suoni mistici», «gioie di casto amor-, primeiro sinal para as paixões paroxísticas que vão explodir durante o filme. Pouco depois — sempre no genérico — Ruiz vem avisar Manrico de que se preparam para lhe queimar a mãe. Este arranca-se dos braços de Leonora e vem até à boca da cena cantar o celebérrimo «Di quella pira». Precisamente nesse momento, a câmara, até aí fixa sobre o palco da ópera, acompanha-o no seu movimento e, do ponto de vista dele, descobre-nos o teatro, da plateia à geral, em amplos movi­mentos concêntricos. São eles que, no fim do acto e coincidindo com os aplausos, conduzem essa representação a outra representação: a ma­nifestação política das galerias contra o ocupante austríaco.

 

Ópera só voltará a aparecer em Senso alguns minutos depois, quando, acalmados os ânimos e presos alguns manifestantes, come­ça o acto IV. Durante esse intervalo, conhecemos os protagonistas: a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) e o seu velho marido (Heinz Moog); o marquês Roberto Ussoni (Massimo Girotti), primo da condessa, seu platónico protegido e chefe dos patriotas italianos (por ele e contra o marido, escolhera a condessa o abraço revolucio­nário); o jovem e belo tenente Franz Mahler (Farley Granger) que insulta os italianos, se recusa cobardemente a aceitar o repto de Us­soni para um duelo e, depois, o denuncia à polícia.

 

 Quando começa o acto IV de Il Trovatore, Livia Serpieri chama o tenente ao seu camarote para o tentar convencer a deixar Roberto em paz. Mas, durante o breve diálogo com o oficial «de quem fala­vam todas as senhoras de Veneza», estabeleceu-se entre eles outra es­pécie de corrente. No palco, lá muito, muito ao fundo, ao pé da torre onde Manrico está preso, Leonora, disfarçada, canta que «In quest oscura notte rawolta / Presso a te son io. E tu nol sai!». Nem nós, nem os protagonistas do filme lhe damos muita atenção. O pri­meiro plano já pertence a Livia e Franz. É para nós e para eles que uma «oscura notte ravvolta» vai começar.

 

Nunca mais se ouve ópera no filme. Mas a ópera, o drama per musica, vai começar quando Livia abandona o teatro e, sobretudo, quando volta a encontrar o tenente, a um canto da Piazza di San Marco, onde fora despedir-se do primo, condenado a um ano de exílio. E quando Franz Mahler se oferece para a acompanhar pelas ruas de Veneza (oferta recusada, recusa não aceite) principia a ouvir-se a verdadeira música desta ópera: a Sétima Sinfonia de Bruckner (o adagio e o scherzo). E começam os «duetos», de Franz e Livia, ou as “árias” de cada um deles. Não são cantadas. Mas não há termos mais adequados para o que murmuram («tu parli talmente piano», diz três vezes Franz a Livia) ou para o que gritam (os uivos de Livia, no final, clamando por Franz, depois de o ter mandado para o pelotão de fuzilamento, em Verona). E sempre o que os personagens dizem em cantado é sustentado a Bruckner, e sempre as vozes são tão insepará­veis dessa música como na ópera o são. Depois de se ter visto Senso, nunca mais se pode ouvir a Sétima de Bruckner sem «sentir» que lhe falta essa dimensão de vozes. Depois de se ter visto Senso, é impossível pensar nas suas imagens sem «ouvir» Bruckner.

 

Por isso, e num dos mais curiosos paradoxos a que a história da relação cinema-ópera deu lugar, a descendência de Senso não é cinematográfica, mas operática. Se se quiser pensar numa posteridade para este filme, ela não está em nenhum outro (nem sequer em Morte a Venezia, onde Visconti tentou com a Quinta Sinfonia de Mahler um efeito semelhante e muito mais célebre), mas nas ence­nações de 1955 ou de 1956 com que o mesmo Visconti revolucio­nou todos os caminhos da encenação operática neste século. A es­pantosa criação de Alida Valli, no papel da condessa Livia Serpieri, só teve sequência nas da Mulher para quem Visconti fez essas ence­nações: Maria Callas. Em Senso, a voz e a imagem de Alida Valli preparam os caminhos para a voz e para a imagem da Callas.

 

     

As ruas de Veneza (quem nunca viu Senso nunca viu Veneza), os celeiros de Lonedo (quem nunca viu Senso nunca viu Palladio), as praças de Verona (quem nunca viu Senso nunca viu Sanmicheli) foram, em 1954, os palcos excessivos, exacerbados e exorbitados para a mais fantomática presença da mais fantomática das vozes.

 

 

 

 

 

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(in Os Filmes da Minha Vida. Os Meus Filmes da Vida, Assírio & Alvim)

 

 


 

 

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publicado por Carlos Loures às 14:00
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3 comentários:
De Luis Moreira a 6 de Janeiro de 2011
Este jardim está muito perfumado. A Augusta Clara está de parabéns.
De Ethel Feldman a 6 de Janeiro de 2011
Está sim! agora concordamos, Luis. Um abraço por partes, divide com a Augusta Clara. :-)
De augusta clara a 6 de Janeiro de 2011
Meus amigos, são muito simpáticos mas não fui eu que fiz nada disto. Quem me dera ter sido!

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