Quarta-feira, 5 de Janeiro de 2011

Direcção de Augusta Clara de Matos

 Boas e Más Memórias 

 

 

Cartas a Um Jovem Poeta – I

 

 

Rainer Maria Rilke

 

 

Meu caro Senhor:

 

Acabo de receber a sua carta. Não quero dei­xar de lhe agradecer a grande e preciosa con­fiança que esta representa, mas pouco mais posso fazer. Não analisarei a maneira dos seus versos, porque sempre fui alheio a qualquer preocupação crítica. Para penetrar uma obra de arte, nada, aliás, pior do que as palavras da crítica, que apenas conduzem a mal-entendidos mais ou menos felizes. Nem tudo se pode apreender ou dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que acontece é inex­primível e se passa numa região que a palavra jamais atingiu. E nada mais difícil de exprimir do que as obras de arte — seres vivos e secre­tos cuja vida imortal acompanha a nossa vida efémera.

 

Dito isto, apenas posso acrescentar que os seus versos não revelam uma maneira sua. Contêm, é certo, gérmens de personalidade, mas ainda tímidos e escondidos. Senti-o, so­bretudo, no seu último poema: A Minha Alma. Neste poema, qualquer coisa de pessoal pro­cura encontrar solução e forma. E em toda a bela poesia A Leopardi se sente uma espécie de parentesco com este príncipe, este solitário. Contudo, os seus poemas não têm existência própria, independência, nem mesmo o último, nem mesmo o que é dedicado a Leopardi. Na sua carta encontrei a explicação de certas insu­ficiências que já notara ao lê-lo, mas a que não me fora possível dar nome. Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-mo a mim — depois de o ter perguntado a vários. Manda-os para as revistas. Compara-os a outros poemas e alarma-se quando certas redacções afastam os seus ensaios poéticos. Doravante (visto que me permite aconselhá-lo), peço-lhe que renun­cie a tudo isso. O seu olhar está voltado para fora: eis o que não deve tornar a acontecer. Ninguém pode aconselhá-lo nem ajudá-lo — ninguém! Há só um caminho: entre em si pró­prio e procure a necessidade que o faz escrever. Veja se esta necessidade tem raízes no mais profundo do seu coração. Confesse-se a fundo: «Morreria se não me fosse permitido escrever?» Isto, sobretudo: na hora mais silenciosa da noite, faça a si mesmo esta pergunta: — «Sou realmente obrigado a escrever?» — Examine-se a fundo até encontrar a mais profunda respos­ta. Se esta resposta for afirmativa, se puder fazer face a uma tão grave interrogação com um forte e simples «Devo», então construa a sua vida segundo esta necessidade. A sua vida, mesmo na sua hora mais indiferente, mais va­zia, deve tornar-se sinal e testemunho de tal impulso. Então, aproxime-se da natureza. Ex­perimente dizer, como se fosse o primeiro ho­mem, o que vê, o que vive, o que ama, o que perde. Não escreva poemas de amor. Evite, de princípio, os temas demasiado correntes; são os mais difíceis. Nos assuntos em que tradições seguras, por vezes brilhantes, se apresentam em grande número, o poeta só pode fazer obra pessoal na plena maturação da sua força. Fuja dos grandes assuntos e aproveite os que o dia-a-dia lhe oferece. Diga as suas tristezas e os seus desejos, os pensamentos que o afloram, a sua fé na beleza. Diga tudo isto com uma sinceridade íntima, calma e humilde. Utilize, para se exprimir, as coisas que o rodeiam, as ima­gens dos seus sonhos, os objectos das suas recordações. Se o quotidiano lhe parecer po­bre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser bastante poeta para conseguir apropriar-se das suas riquezas. Para o criador nada é pobre, não há sítios pobres, indiferentes. Mesmo numa prisão cujas paredes abafassem todos os ruídos do mundo, não lhe restaria sempre a sua infância, essa preciosa, essa magnífica ri­queza, esse tesouro de recordações? Oriente neste sentido o seu espírito. Tente fazer voltar à superfície as impressões submersas desse vasto passado. A sua personalidade fortificar-se-á, a sua solidão povoar-se-á, tornando-se, nas horas incertas do dia, uma espécie de habi­tação fechada aos ruídos exteriores. E se lhe vierem versos deste regresso a si próprio, deste mergulho no seu mundo, não pensará em per­guntar se são bons ou não, não procurará con­seguir que revistas e jornais se interessem pe­los seus trabalhos, porque gozará deles como de uma posse natural, como de um dos seus modos de vida e de expressão. Uma obra de arte é boa quando nasce de uma necessidade: é a natureza da sua origem que a julga. Por isso, meu caro senhor, apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades onde a sua vida bro­ta. Só lá encontrará a resposta à pergunta: — «Devo criar?». Desta resposta recolha o som sem forçar o sentido. Talvez chegue então à conclu­são de que a Arte o chama. Nesse caso, aceite o seu destino e tome-o, com o seu peso e a sua grandeza, sem jamais exigir uma recompensa que possa vir do exterior. O criador deve ser todo um universo para si próprio, tudo encon­trar em si próprio e nessa parcela da Natureza com que se identificou. Pode acontecer que, depois desta descida em si mesmo, ao «solitá­rio» de si mesmo, tenha de renunciar a ser poe­ta. (Basta, a meu ver, sentir que se pode viver sem escrever para que não seja permitido es­crever). Mas, mesmo neste caso, a introspec­ção que lhe peço não terá sido vã. A sua vida dever-lhe-á sempre, quanto mais não seja, ca­minhos próprios. Que esses caminhos sejam bons, felizes e longos é o que lhe desejo como não sei dizer-lhe.

 

Que poderei acrescentar? Creio ter abordado o essencial. No fundo, apenas fiz questão de aconselhá-lo a evoluir segundo a sua lei, gra­vemente, seguramente. Não lhe seria possível perturbar mais violentamente a sua evolução do que dirigindo o seu olhar para fora, do que esperando de fora as respostas que só o seu sentimento mais íntimo, na hora mais silencio­sa, poderá talvez dar-lhe.

 

Gostei de encontrar na sua carta o nome do professor Horacek. Dediquei a este sábio um grande respeito e um reconhecimento que já duram há anos. Quer dizer-lhe isto da minha parte? É uma grande bondade dele, que muito aprecio, lembrar-se ainda de mim.

 

Devolvo-lhe os versos que tão amavelmente me confiou e mais uma vez lhe agradeço a cordialidade e a amplitude da sua confiança.

 

Nesta resposta sincera, escrita o melhor que soube, procurei ser um pouco mais digno des­sa confiança do que o é, na realidade, este homem que não conhece.

 

A minha dedicação e a minha simpatia.

 

RAINER MARIA RILKE

 

Paris, 17 de Fevereiro de 1903

 

 

publicado por Carlos Loures às 14:00
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7 comentários:
De Sara a 5 de Janeiro de 2011
Parabéns pelo destaque :)
De Luis Moreira a 5 de Janeiro de 2011
Obrigado, Isaa, volte sempre!
De Luis Moreira a 5 de Janeiro de 2011
Belíssimo, este jardim é de delícias e de preciosidades. Onde te escondias tu, Augusta Clara? Onde guardas estes perfumes que não podem ser fechados, que maravilhas mais tens a partilhar connosco? Tens um jardim de surpresas, com fadas e duendes, com cantinhos preciosos que só tu conheces, detecta-los pela flagrância, capacidade de que só é capaz quem os ama.
De omeueudepapel a 5 de Janeiro de 2011
Parabéns pelo destaque. Um bj
De Luis Moreira a 5 de Janeiro de 2011
Obrigado, Fátima, volte sempre.
De Ethel Feldman a 5 de Janeiro de 2011
Este livro acompanha-me! Quando me deito, quando acordo, quando adormeço. Este texto me envolve e abraça em cada suspiro. Cartas a um Jovem Poeta, inspira quem sabe ler. Augusta, pela lembrança te abraço. Pela partilha, deixo em ti um sorriso que promete adormecer um dia, feliz. Obrigada.
De augusta clara a 5 de Janeiro de 2011
Só cheguei agora e que feliz fiquei por vos ter feito felizes. Um abraço a todos.

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