Quarta-feira, 5 de Janeiro de 2011

Carta aberta a Durão Barroso - 3 - por Júlio Marques Mota

(Continuação)

 

Dizem-nos ter “modernizado” a função pública

 

E multiplicaram-se os institutos, com as remunerações fora das carreiras da função pública, multiplicam-se as comissões de regulação que na desregulação em que se funciona não sabemos o que se regula então, a começar pela Alta Autoridade da Concorrência. Multiplicaram-se os organismos públicos com remunerações fora das carreiras da função pública. Multiplicaram-se os contratos individuais de trabalho, destrói-se a lógica das carreiras na Administração Pública, vive-se e trabalha-se fundamentalmente para se ser avaliado, como os professores no ensino secundário e a partir de agora os do ensino superior também, e muitas vezes sob critérios estabelecidos de forma avulsa por dirigentes nomeados politicamente. Externalizam-se serviços, privatizando-os no plano dos factos; recorre-se cada vez mais aos serviços privados até para a elaboração de legislação fundamental, sendo disso um bom exemplo a Sérvulo Correia e Associados a quem o recurso à elaboração de pareceres e de assessoria jurídica é frequente. Parecem igualmente evidentes as conexões entre os grandes consultórios de advogados e o poder político, que os alimentam com tarefas do foro jurídico que poderiam ser do domínio da função pública, havendo até quem insinue que algumas das transposições de directivas para o direito português lhes terão sido bem pagas. Seria bom ter-se a dimensão exacta, em valor e em substância, quanto às despesas gastas pela Administração Pública com consultorias privadas e com escritórios de referência, não muitos. São bem ilustrativas as despesas gastas na mesma linha no BPN enquanto banco nacionalizado, a dar crédito à notícia publicada pelos meios de comunicação nacionais. Compromissos anteriormente havidos, anteriormente estabelecidos, compromissos mantidos, neste caso pelo que podemos inferir de quem conhecemos, nada mais que isso certamente.

 

 

O que aqui se deve sublinhar mas não deixa de poder ser considerado, para lá dos muitos exemplos possíveis, é o facto de que a máquina da Função Pública está a ficar tecnicamente desprovida de técnicos de elevada qualificação profissional, mas se assim é, é também este segmento profissional do mercado de trabalho que desaparece e desaparece assim um nicho onde era garantida a equidade à entrada e desaparece para alargar o sector privado. Não haverá certamente qualquer concurso público para advogado na Sérvulo Correia e Associados, na PLMJ, na Serra Lopes, Costa Martins & Associados ou outros. Naturalmente, por ser privado e por os custos de selecção hoje serem elevados, elevadíssimos, até porque os filhos dos pobres são muitos e é nestes que normalmente se selecciona, é nestes que naturalmente, se exclui. Mas porque os serviços vão para o sector privado, por essa razão, para a Função Pública é que deixa de haver, também naturalmente concurso. Naturalmente, portanto, é a lógica do modelo social em movimento, é a lógica de um outro ascensor social. Igualmente e na mesma linha de minimização do Estado, recorre-se a empresas multinacionais, logicamente pagando bem, para fazerem relatórios para a estruturação dos serviços e para fazerem auditorias. Esvaziam-se os quadros da função pública de gente altamente qualificada, e diz-se que é “modernizar”, como se na função pública tudo é ineficiência enquanto no sector privado tudo seja eficiência.

 

No caso presente, “modernizar” é também reduzir efectivos; é, pois, colocar gente no desemprego e, desta vez, com a maioria dos trabalhadores a ficar agora suspensa de contrato individual de trabalho que passa a ser bem desejado; com esta “modernidade” é a precariedade que se instala onde outrora havia a estabilidade e chamem-lhe modernidade ou flexibilidade, dê-lhe o Governo o adjectivo que quiser, mas assim é do medo que se instala na própria Administração Pública que estamos a falar, do medo que se instala nas vidas quotidianas, que se interioriza e que por isso mesmo não é demonstrável. Numa sociedade em precariedade crescente, por definição, é o medo que se instala, medo de quem tem emprego e tem medo de o perder, medo de quem não o tem e tem medo de reduzir as possibilidades de o vir a ter. Dados simples, de uma equação simples. Erro político intencional em que caiu Manuela Ferreira Leite, ao querer criticar a política de então do actual primeiro-ministro José Sócrates, ao falar da sociedade do medo sem acrescentar mais nada. Ela não estava a  tratar a questão de forma séria porque falar a sério contra o medo seria falar deste no quadro dos efeitos sobre as pessoas resultantes das políticas seguidas e ela, se ganhasse, iria seguir exactamente as mesmas políticas, o mesmo modelo, até porque as principais Instituições que as geram e as caucionam, que lhes dão o substrato ideológico são as ultraliberais instituições que ninguém critica, a OCDE e as da União Europeia.

 

Dizem-nos ter “modernizado” o sistema de ensino superior

 

Flexibilizaram-se os contratos de trabalho, precarizou-se a segurança no trabalho, colocou-se, por essa via, os professores a considerarem a sua carreira como uma espécie de campeonato de futebol onde o importante é marcar pontos contra os outros e impedir que no-los marquem a cada um de nós, onde estão sujeitos a avaliação contínua como se as sucessivas provas públicas deixassem de ter qualquer significado, onde se passa a fazer não o que se deve verdadeiramente fazer mas sim aquilo que o avaliador é capaz de exigir e compreender, de quantificar e, normalmente, trata-se de coisas diferentes. Possivelmente, a partir de agora, cada professor poderá estar mais interessado em compor a montra onde se irão colocar os dados que vão ser quantificados, avaliados, medidos, do que propriamente em preocupar-se com a função para a qual é pago: ensinar. E esta última função passa-se sobretudo na sala de aulas, no que está aquém dela, no que está para além dela mas onde esta é sempre o centro. Aqui, não há métrica que valha mas a lógica neoliberal exige o impossível que é que seja quantificável o que incomensurável e é assim, pela simples razão de que o que lhe interessa não é a qualidade mas a quantidade. Primado absoluto da quantidade sobre a qualidade, primado absoluto da precariedade a que os docentes vão estar submetidos sobre a estabilidade que a estes deveria ser oferecida, primado absoluto, portanto, do número, neste caso das vias que levam à redução dos custos. O que passa a ser preciso é considerar a carreira e a vida como uma escada de acesso a um trapézio muito alto e de onde não se pode cair ou não se deve, já que a queda pode ser mortal. Por essa via, é a profissão que sai minimizada e os estudantes, esses, passam para segundo ou terceiro plano, desejando-se apenas que não nos atrapalhem na subida das escadas da vida de cada um de nós, professores. Adicionalmente, reduz-se a dimensão dos cursos, multiplica-se o número destes, vejam-se só os números de cursos em engenharia espalhados por esse país, multiplicam-se os mestrados e inventa-se a transversalidade para os diversos mestrados, em que um licenciado em direito ou em agronomia ou noutro curso qualquer, onde praticamente não teve economia, pode tirar um mestrado na área de gestão ou de economia e num tempo bem curto.

 

Em suma, “modernizar” o ensino superior pode vir a poder-se considerar como um custoso processo de autonomização e de conservação da ignorância dos estudantes que, em vez de verem a ignorância por si vencida, esta é a função da Universidade, passam é a ser possuidores de uma ignorância mantida ou acrescida, derivada da erosão do tempo em que não se estuda ou em que se passa por cima de quase tudo o que é estudo, com a velocidade de quem tem medo de perder um outro comboio, o de ir procurar e conseguir emprego antes dos outros, os seus colegas concorrentes. Mas, tudo isto faz parte da “modernidade” de que nos falam até à exaustão os nossos políticos.

 

A proposta da Comissão Europeia para aumentar a austeridade: uma arma contra a Europa

 

Senhor Presidente, é nesta redução do papel dos Estados, mesmo em tempo de crise, que melhor se vê a obsessão neoliberal da União Europeia e que lhe tira, por isso mesmo, a visão de futuro. Haverá pela sua Instituição alguma visão do futuro para a Europa? Não a vejo, não a leio, não a sinto. De resto, com os Estados-membros a serem atacados pelos mercados de capitais, com os Estados-membros a serem empurrados para uma situação de quadratura do círculo, infernal, que faz a Comissão a que preside? Em vez de apoiar os Estados em dificuldades, e estamos com dois anos de crise para que algo de institucionalmente pudesse ter sido mudado na arquitectura da União Europeia, endurece ainda mais os constrangimentos de crise. Num recente trabalho com colegas meus, escreveu-se:

 

“Vejamos pois a lógica de uma proposta da Comissão Europeia aprovada a 18 de Outubro, que deverá ainda ter o acordo dos Chefes de Estado e de Governo. Como assinala Sterdyniak, “o risco é grande de que a proposta aí seja aprovada, uma vez que os países mais pequenos não quererão ser alvo das iras dos mercados financeiros”, dependentes que estão dos mercados obrigacionistas e dos seus leilões de títulos. A Espanha, por exemplo, tem um défice público de 11,1% do PIB em 2009 e tem que recorrer no próximo ano ao mercado de capitais para levantar 192 mil milhões de euros dos quais 150 mil milhões para refinanciamento. Qual a sua margem de manobra face ao quadro institucional que as Instituições europeias deixaram criar? Possivelmente, estará a fazer um plano B ainda mais restritivo para acalmar as iras dos mercados e para lhes garantir que em 2011 será capaz de colocar o défice público em cerca de 6%. Na sequência da proposta feita pela Comissão Europeia e aprovada pelo Conselho de Ministros da Economia e das Finanças, o Ecofin, admitamos um país, com um ratio da dívida pública relativamente ao PIB de 90%. Pelas regras agora aprovadas o país terá que reduzir um vinte avos por ano a diferença existente entre este ratio e o ratio de 60% de referência do Pacto de Estabilidade e Crescimento; esta mesma diferença, ou seja, 30%, a dividir por 20, leva pois, a que se reduza o ratio da dívida em 1,5% ao ano. Neste caso, este ratio da dívida não poderá ultrapassar 88,5%. Seja então uma taxa de inflação de 2% e uma taxa de crescimento de 1%, neste contexto de crise. O ratio da dívida automaticamente reduz-se para o valor dado para 90% a dividir por (1+0,2+0,1), ou seja, reduz-se para 87,38%. Como o ratio da dívida não pode ultrapassar os 88,5% e como a dívida real desce apenas para 87,38% então o défice público não poderá ultrapassar a diferença (88,5 - 87,38), ou seja, o ratio do défice não poderá ultrapassar 1,12% e assim se vai embora até a triste regra dos 3%. Como se ilustra, esta é a situação que a Comissão Europeia quer agora impor com a proposta recentemente aprovada que é elucidativa da sua submissão aos mercados financeiros e às agências de rating privadas.

 

A mensagem parece ser clara e lamentavelmente faz-nos lembrar Leonardo Schiascia. Para este, a Sicília é como uma maçã de aspecto saudável, mas estragada, corroída, no seu interior pelo verme, neste caso a Máfia, e a mensagem de extrema austeridade que resulta das posições da Comissão Europeia em tempos de forte crise fazem-nos pensar que para esta os Estados, através dos seus Governos, são um pouco como o verme da maçã de Schiascia, são o verme da sociedade, que é necessário tratar e para destruir este seu suposto verme é com a maçã que se está a acabar. Cura-se a suposta, mas só suposta, doença, matando o doente, cai o Governo. Nem os Governos admitem esta equivalência como é evidente, nem a solução nunca pode ser esta, a solução passa por tratar a macieira, caso contrário, as novas maçãs virão igualmente tocadas, estragadas por vezes, o que no nosso caso significa: mudem-se os governos e teremos governos iguais ou piores, mude-se alguma coisa para tudo ficar na mesma, como nos dizia Lampedusa e porquê assim? Porque o que está verdadeiramente estragado é a macieira onde, aí sim, está de facto escondido pela beleza da árvore que é alimentada pelo trabalho dos nossos intelectuais neoliberais, e por vezes bem pagos pelos serviços, aí sim, está o verme que realmente está a ferir, a corroer, de morte a união monetária europeia, enquanto espaço integrado: a actual arquitectura em que assentam as sociedades europeias, em que assenta a própria União Europeia, o modelo neoliberal cujos resultados estão bem à vista.

 

Senhor Presidente, deixe-me lembrar-lhe uma posição de John Law, a recordar o que é o respeito pela condição humana, pelo trabalho, pelo trabalhador: “se colocamos a trabalhar cinquenta homens a quem se paga 25 xelins por dia e se o produto do seu trabalho vale apenas 15 xelins, o valor da riqueza do país não deixou de aumentar neste montante”, sendo certo que os empresários que os empregaram perderam por trabalhador 10 xelins. Encontramos a mesma preocupação em William Petty ou em Colbert, por exemplo, que até contas faziam do rendimento que a Nação perdia por causa do desemprego e procuravam soluções, uma preocupação que vem de longe, de muito longe, tem séculos, e que aqui e agora não encontramos ao nível da União Europeia. Lógica pública da coisa privada, os desempregados, o excedente a nível nacional produzido e pela nação obtido, lógica privada da coisa pública, seria uma política pública errada porque cada empresário privado perderia 10 xelins. Dois campos com lógicas que têm que ser vistas também como diferentes é a lição espantosa a tirar do exemplo de John Law, o sector público deve como regulador prevalecer sobre o privado e sobre a sua lógica sempre que esta entre em contradição com o interesse nacional e neste está como objectivo central a minimização do desemprego, é a lógica de Law, mas a Comissão a que preside, parece entender a mesma mensagem em sentido inverso, o interesse privado deve ser privilegiado o que no exemplo de John Law dava cinquenta desempregados a mais ou a menos, conforme o ponto de vista escolhido. Uma questão de opção, a Comissão Europeia está de um lado, o dos empresários, o do lucro, a Europa começa a sentir que deve estar do outro, o do emprego, o da riqueza nacional. A moral dos tempos, simplesmente, de um lado a preocupação pelo que pode ser empregável e agora a preocupação do que pode ser descartável. Kevin Bales e os descartáveis, Kevin Bales tem razão. Na óptica da Comissão e dos cortes dos apoios sociais que esta agora está a exigir mesmo que indirectamente, estes só deveriam trabalhar se ganhassem em termos líquidos na ordem dos 10 xelins ou menos, para garantir a sustentabilidade da dívida pública, da situação financeira da Segurança Social e assegurar os lucros dos empregadores, mas a estes níveis de remuneração entram no número dos indigentes e passam a fazer parte do número dos completamente descartáveis, fora do mercados de trabalho, portanto.

 

Voltemos à questão dos défices públicos e da dívida pública. Como pode então ser conseguida a melhoria do défice público primário, para se estar de acordo com a Comissão Europeia? Pela redução das despesas públicas começa a ser muito difícil. Pelo lado das receitas públicas? A redução do défice público primário pode ser conseguida pelo aumento dos impostos, as receitas, mas seria obtida a partir de quem? Os trabalhadores por conta de outrem? Não, estes já estão no limite da carga fiscal admissível. As empresas? Não, pois tributar ainda mais as empresas também não pode ser, até porque a Comissão Europeia continua a defender a concorrência fiscal entre os Estados-membros, e de que a Irlanda é um belo exemplo, e as nossas empresas ficariam em clara desvantagem. A política na União Europeia tem sido sistematicamente expressa pela minimização salarial para os trabalhadores e optimização fiscal para os grandes capitais, com tudo o resto a ser uma massa fluida, instável, degradável, a das pequenas empresas. Portanto, como a imposição fiscal já não resulta, assim se pensa nas Instituições Europeias, deixou-se que os mercados financeiros criassem a situação presente que leva directamente, porque também se deixa e se impõe, aos cortes salariais, aos cortes sobre todas as remunerações de quem trabalha ou trabalhou por conta de outrem, e sem apelo nem agravo, sem que se possam chamar de impostos. Os outros agentes, como num outro contexto nos ensina Kalecky, os grandes detentores de capitais, seja na economia real seja na financeira ganham sempre o que gastam, enquanto os restantes, os que trabalham por contra de outrem e os ganhos têm bem contados, têm sempre tributados, como sabemos, estes gastam sempre o que ganham, e ganham pouco.

 

(Continua)

publicado por Carlos Loures às 21:00

editado por Luis Moreira às 15:43
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1 comentário:
De Luis Moreira a 5 de Janeiro de 2011
Sem dúvida que foi criado um estado paralelo com gente de confiança política e, como diz, os quadros capazes arrumados num canto com o chamado "outosourcing" pago a peso de ouro aos consultores privados. Se bem me lembro estavam consignados no orçamento 400 milhões de euros só para consultoria, isto mostra bem como o Estado pode ser um factor de desigualdade e de injustiça, desvirtuando concursos públicos com argumentos vergonhosos, com o único intuito de favorecer os amigos e as empresas que depois financiam os partidos e dão guarida a ex-governantes.

Mas tudo isto dito, não se deixa de querer mais estado! A conclusão está na lógica das premissas? Claro que não! O estado é assim porque está em todo o lado, pode tudo, a tudo é permitido, irresponsavelmente.

Se o estado crescer à custa do esmagamento da sociedade civil (como é inevitável ) então o que há a fazer é dar força à iniciativa dos cidadãos.

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