Quinta-feira, 29 de Julho de 2010

Recordando Costa Ferreira


António Gomes Marques

Conheci Costa Ferreira em 1961, ano esse que foi também o da fundação do Teatro Moderno de Lisboa, de que foi um dos societários. Desde então o diálogo foi permanente, diminuindo pouco a pouco nos seus últimos cinco anos de vida por a doença não permitir que fosse de outro modo. Apesar de tudo, ainda lhe ouvimos algumas palavras alguns dias antes de ter expirado. Morreu a invocar os seus pais e rodeado do casal que mais o acarinhou nos últimos 40 anos, a Otília e o Manuel. Eram 16 horas do dia 29 de Julho de 1997, completando-se, agora, 13 anos sobre o seu falecimento. Não temos qualquer dúvida de que, se não fossem os cuidados da Otília e do Manuel, o António Joaquim da Costa Ferreira nos teria deixado bem mais cedo. No dia 10 de Junho desse ano havia completado 79 anos.

O lema da vida de Costa Ferreira pode resumir-se numa afirmação de seu pai, o General Costa Ferreira, que o dramaturgo, encenador e actor transcreve nas suas memórias, Uma Casa com Janelas para Dentro: «...não tenho a pretensão de endireitar o mundo, mas sim o firme propósito de não me deixar entortar..».

Volto a reler as cartas que, regularmente, me escrevia para Moçambique, onde cumpria o serviço militar obrigatório na guerra colonial. A Frelimo, em dado momento, havia-se aproximado da localidade onde me encontrava e, do facto, dei conhecimento ao Costa Ferreira, logo ele concluindo, naturalmente, que a minha segurança poderia correr perigo, temendo também o meu amigo que eu não soubesse defender-me contra os que lutavam pela libertação do seu país. Atente-se no que Costa Ferreira me escreveu, na sua carta datada de 22/2/970:

«Eu só senti pessoalmente o perigo físico uma noite em Paris e há cerca dum ano aqui em Lisboa no tremendo tremor de terra. Traumatizado, nas noites que se seguiram tinha para adormecer que fazer a aceitação da minha impotência. O seu caso é outro: v. tem de se aceitar como elemento irresponsável dum mecanismo social que o transcende e como peça dum mecanismo funcionar mecanicamente para se defender, matando se for preciso. Em Paris esqueci-me de dizer que fugi, não como uma lebre, o que seria vaidade, mas como um urso que também é capaz de correr bastante. Aí é diferente, você e a sua arma fazem um conjunto que não vale a pena criticar e que tem de ser eficiente para que a peça não se estrague. Não será nunca v., ser pensante e responsável, quem mata, mas o mecanismo no qual v. está integrado. Perante essas circunstâncias tem o dever para consigo próprio de se defender. Mentalmente aceite a situação imaginando as consequências todas, mesmo as humanamente mais repugnantes. A consciencialização dentro dum raciocínio materialista é sempre o caminho certo. Estou convencido que você como indivíduo no meio social em que é obrigado a viver só pode inteligentemente ter esta atitude.»

A transcrição foi longa mas bem demonstrativa da formação filosófica e política de Costa Ferreira, sustentáculo da coragem de que sempre deu provas nas mais variadas situações.

Desde a mais tenra idade, Costa Ferreira tinha a paixão do teatro. Viria, no entanto, a licenciar-se em Junho de 1943 em Ciências Histórico-Jurídicas por amor de seus Pais, tranquilizando-os assim. A sua paixão poderia agora realizar-se com mais facilidade, a sua felicidade poderia agora tornar-se possível dado que não traria tanta preocupação àqueles que mais amava, sendo este outro dos ensinamentos que a vida exemplar de Costa Ferreira nos dá - nunca construir a nossa felicidade à custa da infelicidade dos outros.

Após alguns anos como advogado e sempre ligado ao teatro, quer como crítico quer como actor, no teatro de amadores e no teatro experimental, quer também como autor, Costa Ferreira toma a decisão de abandonar a promissora e proveitosa carreira de advogado, com proventos equivalentes na altura ao vencimento de um Ministro, e ingressa no teatro profissional.

No teatro profissional, o carácter de Costa Ferreira vai naturalmente impor-se. Prosseguia a sua luta em busca da verdade contra os que da verdade se arrogam detentores.

Ao falar de Costa Ferreira não podemos dissociar o homem do criador. O seu comportamento ético é uma constante presença, quer se pense no cidadão ou no criador. Como criador podemos ver que o teatro está sempre presente, embora a sua incursão no campo da ficção novelística, «Uma Família e Duas Repúblicas», não deva ser esquecida e, com notável destaque, na crónica romanceada, «Uma Vida em Cinco Dias», o melhor livro que em Portugal se publicou sobre o Maio de 68, e no campo das memórias com «Uma Casa com Janelas para Dentro», que nenhum historiador que sobre o nosso século XX se debruce poderá, em nossa opinião, ignorar - obra-prima lhe chamou Carlos Porto. Foi dos autores mais representados na década de 50, período áureo do Teatro Português. É bom recordar a feroz censura que se exercia sem qualquer disfarce. Assim, para se chegar ao público, razão de ser do teatro, havia que usar de muita imaginação, mais ainda se se queria continuar independente e do lado dos que contra a ditadura continuavam a lutar. Costa Ferreira de modo algum poderia deixar de ser coerente consigo próprio. A crítica que dos mesmos ideais comungava compreendeu; críticos houve, no entanto, ligados ao regime que tentaram lançar a confusão dizendo bem. Podemos dizer que era uma forma inteligente de actuar.

Jorge de Sena, o tão brilhante e tão injustamente tratado escritor, estava entre os críticos de teatro mais exigentes e, há que dizê-lo, dos que melhor serviu o Teatro Português e o Teatro em Portugal. Mas não há bela sem senão. A amizade que o ligava a Costa Ferreira terá levado Jorge de Sena a ser mais exigente e mais exigente também por lhe reconhecer grande talento. Este facto, ligado à percepção que C. Ferreira tinha de quererem transformá-lo num dos intelectuais protegidos pelo SNI, levou-o a escrever «Os Desesperados» e «O Quarto», naturalmente proibidas pela censura e que as companhias portuguesas continuam lamentavelmente a ignorar, apresentando-nos, muitas vezes, textos sem qualidade. E para quando a reposição de «Trapo de Luxo»?

Do Costa Ferreira encenador, lembremos o que lhe disse Bernardo Santareno: «Você é sobretudo claridade». Mas essa claridade, como ele próprio disse, «era a tal janela aberta para dentro, por onde deve entrar toda a luz necessária para que as personagens se aproximem de nós e os conceitos se distanciem em noções concretas, objectivas, úteis.»

A Costa Ferreira foram prestadas algumas homenagens públicas que muito o sensibilizaram. Mas a melhor homenagem que se lhe pode prestar é representá-lo, como o fez o CDIAG, da Amascultura, levando à cena, em 1992, «Onde Está a Música?», numa encenação de Rui Mendes.

Esperemos agora a publicação das suas obras pela Imprensa Nacional, sem esquecer a notável peça de teatro, baseada numa novela de José Saramago e adaptada em parceria com este: «O Fim da Paciência», peça esta que se mantém escandalosamente inédita.


(texto de 1997 agora actualizado)

Na fotografia acima: Costa Ferreira e Armando Cortez, numa cena de «O Tinteiro», farsa de Carlos Muñiz, pelo Teatro Moderno de Lisboa, em 1961
publicado por Carlos Loures às 21:00
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2 comentários:
De Adriano a 30 de Julho de 2010
Boa António!

Lembrar o actor é lembrar o seu brilho, o seu palco e espaço e, trazer de volta, a sua lembrança.

Adriano
De Luis Moreira a 30 de Julho de 2010
Testemunho importante de um actor que como tantos outros cairá no esquecimento

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