Sexta-feira, 3 de Setembro de 2010

Rodrigues Lapa, galego de Anadia


Manuel Rodrigues Lapa, na sua casa de Anadia, com um amigo barbudo (o professor galego Dr Domingos Prieto); eu sou o "jovem" da direita (começos dos 80, não posso precisar a data exacta):
Carlos Durão


O título deste artigo poderá parecer exagerado a leitores que não saibam da paixão (ele próprio a qualificou de “vício”, aí sim talvez exagero) do mestre Manuel Rodrigues Lapa pela língua da Galiza: uma e outra vez demostrada, com persistência, com amor, com teimosia galega até, ao longo de muitos anos. Ele sentia como seus os problemas da língua ao norte da Raia, a sua prostração, os ataques do espanholismo, e certeiramente previa muitos dos desvios daqueles que se diziam “galeguistas”, como também os perigos do colaboracionismo linguístico (e não só) e os raquíticos frutos que depois deu.

Existem duas citas da firme posição deste valente homem a respeito da Galiza: “Sempre considerei a Galiza, essa terra maravilhosa, desgraçada e incompreendida, como sendo a minha própria terra; e historicamente e geograficamente assim é, pois estou dentro dos limites da velha Galécia, que chegava pelo sul ao rio Mondego”(1) . “Pergunto daqui ao meu querido amigo Ramón Piñeiro, que na dedicatória do seu Cancioeiro da Poesia Céltiga [sic] (1952) me considerou “o mais ilustre galego de aquém-Minho”, o seguinte: -Se eu tenho orgulho em ser galego desta Galiza de aquém-Minho, e não é a primeira vez que o manifesto (sou de Anadia, nos limites da Galiza anterga [sic] (2), por que razões ele, homem de Lugo, que pertencia à metrópole de Braga, não há-de ter orgulho em ser português? Dizendo melhor: por que não havemos todos de ter muita honra em ser galego-portugueses?” (3)

Por isso foi, e é, querido na Galiza por pessoas, entre as mais novas, para quem a Raia não é fronteira linguística. E por isso foi, e é, odiado na Galiza por pessoas, entre mais velhas, para quem a Raia não só é fronteira linguística mas também política: o limite de quatro províncias do Estado Espanhol (EE), a que chamam “Galicia”.

Cedo começou Rodrigues Lapa a dar mostras desse seu amor digamos magistral. Já nos anos 30, do século passado, as páginas da revista galega NÓS ecoavam as suas iniciativas sobre um acordo luso-galaico para uma reforma ortográfica, considerada indispensável pelos redactores da revista. Só um exemplo do que ele opinava naquela altura: “O acordo filológico entre as duas regiões seria coisa facílima, não precisando sequer da intervenção oficial: bastava um entendimento entre o Centro de Estudos Filológicos e o Seminário de Estudos Galegos”. (4)

Veio (ou “vieram-na”) depois a guerra civil espanhola, que esmagou todo projecto possível, pela via simples de matar os seus promotores, e até os que mais não tinham que atitude aberta e ideias livres. (Aqui cumpre anotar que não é verdade que a mal chamada “guerra civil” [na realidade insurreição fascista contra a ordem constitucional republicana] tivesse poupado a Galiza; é verdade que as grandes frentes de batalha [nas que valentemente combateram galegos, como R. Carvalho Calero e E. Líster, por só citar dous] estiveram noutras partes do EE; mas na Galiza as frentes foram mais insidiosas que as militares: as terríveis vinganças pessoais e interesseiras; as repressões das pessoas independentes na política ou na cultura; os fuzilamentos sumaríssimos ou os simples “passeios” da porta da casa à valeta mais próxima, para ali deixar o cadáver à vista e infundir terror; a caça à guerrilha nos montes galegos; enfim a sanha do fascismo bruto [galego também: é preciso dizê-lo], que durou e perdurou na “longa noite de pedra” que cantara Celso Emílio).

Nos anos 50, é Rodrigues Lapa quem ecoa, ele próprio no exílio no Brasil, as propostas do também exilado galego Ernesto Guerra da Cal, encaminhadas a “fazer uma reunião entre portugueses, brasileiros e galegos, para lançar as bases de uma reforma ortográfica”(5) . E, do ponto de vista filológico, lembra: “Uma das grandes dificuldades para quem se ocupa dos trovadores é e continua a ser a determinação dos seus lugares de origem, da sua pátria, digamos, no fraseado de hoje, que não correspondia ao de então. É, em muitos casos, uma tarefa vã; e isso mesmo tem um significado lisonjeiro, porque revalida a ideia de uma perfeita identidade entre as duas Galizas, a de além e a daquém Minho”. (6)

Ele é, em fim, um vulto fulcral na orientação do reintegracionismo linguístico galego-português. Não o único, é óbvio, por mais que os seus detratores se empenhem absurdamente (ou maliciosamente) em o acusar de imperialismo linguístico (alguns académicos da Real Academia Galega assim o disseram); mas certamente fundamental, e claramente orientador e encorajador ao longo de todo o difícil processo, no que estamos.

Foi assim como ele veio a redigir e publicar o seu soado artigo "A recuperação literária do galego"(7) , que foi considerado como uma ingerência na Galiza pelos servidores do EE, mas que não foi mais do que a sua resposta a uma carta aberta do citado Ramón Piñeiro na revista “Colóquio/Letras”, e já anunciada à redação do Boletim do Grupo de Trabalho Galego de Londres(8). Nele resume assim a sua clara posição: “Nada mais resta senão admitir que, sendo o português literário actual a forma que teria o galego se o não tivessem desviado do seu caminho próprio, este aceite uma língua que lhe é brindada numa salva de prata”.

São ideias que sintetizam as por ele já de sempre sustidas: “Falta ao galego de hoje a consciência de que galego e português foram e são ainda a mesma língua, apesar das diferenças que a uma delas imprimiu o contacto com outra língua, culta e dominadora. [...] Por isso, quaisquer que sejam as vicissitudes que o destino e a cobardia dos homens reservem ao idioma galego, uma coisa temos como certa: esse doce linguajar não morrerá, pois se ouve e se lê em Portugal, onde é uma língua de cultura [...] De qualquer maneira, estamos a braços com um dilema, que exige uma opção crucial: ou o galego se perde, submergido pelo castelhano; ou se salva, apoiando-se na força duma língua em ascensão como é o português”(9).

O nosso homem não foi ouvido, e não admira: a máquina do denominado isolacionismo linguístico, sempre fortemente apoiada e financiada pelo EE, ganhou essa pírrica batalha, e instalou (se bem timidamente), na administração autonómica e no ensino, o que o perspicaz Rodrigues Lapa não duvidou em qualificar de “castrapo”: “o galego de hoje é um composto de formas arcaicas e populares do galego-português com mistura aberrante de castelhanismos de toda a espécie. A este idioma desgraçadamente poluído dá-se o nome de ‘castrapo’”(10).

O resultado é tristemente fácil de se ver: gerações inteiras desertam desse galego “que não serve para nada”, como é o dito corrente. Há outras causas da desfeita (como nós dizemos à derrota ou ruína): mas essa é fundamental, porque está no alicerce mesmo da consideração da língua própria: como um idioma regional, co-oficial na “Galicia”, considerado como “también español” pela Constituição do EE, e tolerado desde que permaneça em estado de hibernação que “não cria problemas”(11) e do que se podem aproveitar todo tipo de políticos e intelectuais, com dinheiros públicos; ou então como a língua nacional da Galiza, que também é internacional, assim considerada hoje por academias de Portugal e do Brasil, e já desde as negociações dos Acordos Ortográficos (do 86 e do 90), nas que participou extra-oficialmente como observadora, mas com pleno direito. Esse é também um sucesso que devemos, em não pequena medida, ao nosso grande Dom Manuel (como às vezes foi carinhosamente chamado entre nós).

Ele sentiu-se então defraudado pelos seus amigos do grupo Galaxia, como escrevia a outros amigos: “Com a teimosia, levada ao paroxismo, o Galego sofre hoje de outro mal, o complexo da singularidade; e isso leva-o a recusar o retorno à tradição comum”(12) . Não viu cumpridos os seus anseios. Hoje está, com Guerra da Cal, com Carvalho Calero, com Bóveda e Castelão, entre os nossos bons e generosos. Mas uma nova geração agoma, sem medo, e descontrói o mal construído, e desoculta o propositadamente oculto, assentando nas bases que ele em parte delineou. Sejam dele as derradeiras palavras:

“a singularidade só se compreende dentro de um largo espírito de comunhão, que a reforça e engrandece. O culto injustificado e abusivo da diferença, respeitável em si mesmo, só pode conduzir à desgraça. Foi o que aconteceu ao filho pródigo; e é também o que pode acontecer ao galego, em termos de língua e de cultura”(13).
______________

1-Estudos galego-portugueses, Sá da Costa Editora, Lisboa, 1979, prefácio
-“anterga”: antergo/entergo/entrego=velho, antigo (lat. integru); é “galeguismo” propositadamente empregue por Rodrigues Lapa, para mostrar a sua coerência, como tb muitos outros, hoje recolhidos em diversos dicionários da Lusofonia
3-“Otero Pedrayo e o problema da língua”, revista Grial, no 55, 1977, p. 44
4-revista Seara Nova, Lapa, no 425, 1935, pp. 261-262
5-Carta de R. Lapa a F.F. del Riego desde o Rio, 15 novembro 1958, em Cartas a Francisco Fernández del Riego sobre a cultura galega, de Manuel Rodrigues Lapa, 2001, Ed. Galaxia
6-Escolma de Poesía Galega, vol. I, p. 9, Galaxia, 1952, Limiar
7-revista Colóquio/Letras, Lisboa, no 13, 1973, pp. 5-14
8-correspondência particular a C. Durão, 17 novembro 1972
9-Boletim do Grupo de Trabalho Galego de Londres, no 8, abril 1972, p. 2
10-“Princípios básicos para a criação de uma língua literária comum”, em Tradición, actualidade e futuro do galego. Actas do Coloquio de Tréveris, Xunta de Galicia, Santiago, 1982, pp. 235-236
11-é frase de Manuel Fraga Iribarne, um tempo Presidente da “Xunta de Galicia”
12-comunicação pessoal a C. Durão, 24 março 1981
13-alocução na Exposição do Livro Galego, na Universidade de Aveiro, 16 julho 1982, publicada em “Algo de novo sobre o problema do galego”, revista Grial, no 74, 1981, p. 500


publicado por Carlos Loures às 09:00
link | favorito
7 comentários:
De Isabel Rei Sanmartim a 3 de Setembro de 2010
Que maravilha e quanta sensibilidade. Muitos parabéns ao autor pelo artigo. E quanta saudade de mais portugueses a defenderem a Galiza com essa força do Professor Lapa. Precisamos tanto disso...
De José Tubio a 3 de Setembro de 2010
Grandíssimo artigo Carlos. Devia fazer parte dos livros de texto escolares porque é parte (importante!) da nossa história.

Ps. Pois é Isabel: muita saudade.
De adão cruz a 3 de Setembro de 2010
Um bom trabalho que muito nos ensina
De Luis Moreira a 3 de Setembro de 2010
Muito bom texto.Serviço Público!
De Anónimo a 4 de Setembro de 2010
Parabéns! Vale a pena preparar um livro sobre o Professor e a Galiza. Já existem artigos sobre o tema, mas livro? Em papel e na rede. E este artigo bem merece fazer parte desse livro.
António Gil/
De Pedro Bravo a 5 de Setembro de 2010
Razão tinham os clássicos ao identificarem o bom, o belo e o verdadeiro.
De Concha Rousia a 6 de Setembro de 2010
...emocionantemente belo este abraço de memórias nossas... Levo para o FB. Parabéns, Carlos!

Comentar post

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links