Quinta-feira, 16 de Dezembro de 2010

A Arte (5) - uma visão pessoal


Adão Cruz

Socializando um pouco o nosso pensamento, podemos dizer que existe um divórcio cada vez maior entre a vida da sociedade e a vida da Arte. Não há uma formação humanista autêntica da sociedade. A ausência de tempo e espaço para a cultura, a falta de sensibilidade poética, a falta de vivência da verdadeira liberdade, a escravidão dos horários de trabalho, as dificuldades e incompreensões da vida levam a esquecer que a sensibilidade de um povo é a sua força e um perigo para os poderosos. O público menos culto e menos tocado pelos conceitos da estética moderna e contemporânea procura num quadro uma imagem da realidade e vai julgá-lo tanto mais hábil e perfeito quanto mais ele se aproximar do modelo.

O que representa este quadro? O que quer isto dizer? Considera assim a obra tanto mais imperfeita quanto mais se afasta do real, suspeitando sempre que esse afastamento resulta de uma incapacidade do autor para o atingir. Mas por outro lado tem a noção de que há algo que lhe escapa, algo que não percebe e o faz confessar sistematicamente não ser entendido no assunto. Apesar de já na Arte antiga haver um esforço para superar o real e edificar, para além da aparência, leis que residissem mais no pensamento do que nas coisas, e apesar do grande salto da Arte Moderna e da Arte Contemporânea, o conceito de imitação ainda permanece nas camadas menos esclarecidas e menos habituadas à expressão artística. Todavia, sem nos precipitarmos no sectarismo de que a representação do real é incompatível com a Arte, vamos tentar entender que a Arte se situa numa região que não é possível confundir com a realidade aparente.

Os materiais em si são inertes. Mas ganham vida ao mais pequeno movimento. A cor, a textura, as formas mais simples, os sinais, podem adquirir, ao mais pequeno domínio, uma expressividade independente. Toda a gente sabe que a criação não depende só dos materiais mas da forma como se usam, a qual decorre das capacidades artísticas do autor e da sua cultura e sensibilidade, bem como das circunstâncias e do estado psicológico da sociedade em que se insere.

A realidade exerce o seu fascínio e é, como vimos atrás, uma pedra fundamental na criação da obra de Arte.
Presunçoso seria lançar sobre ela um anátema. Não se deve procurar exclui-la mas mantê-la dentro das suas proporções e do seu papel. Até porque a realidade nunca está na pintura, ela encontra-se sempre na mente do observador. Se fosse possível isolar numa obra de Arte apenas a realidade que os olhos mostram, ela seria muito pobre. A par da realidade, a pintura existe com as suas leis próprias. Uma superfície sobre a qual está disposta a matéria pictórica, composta de linhas e cores reunidas de determinada forma dentro de uma consistência visível, mas para além da qual há todo um mundo psicológico, todo um universo de emoções, sentimentos e harmonias, dos quais essas linhas e cores são o sinal perceptível. Mesmo nas expressões mais figurativas, o nosso pensamento deve ser capaz de transpor a vidraça do realismo que cobre o quadro, a fim de não nos impedir de penetrar na sua essência, se existir, claro! Não sou ingénuo ao ponto de considerar que tudo é Arte, como dizem alguns. Por estas e outras razões, considero salutar que, sempre que possível, a obra de Arte não tenha título. A descodificação de uma obra de Arte, ainda que parcial, pode ser um fenómeno redutor que empobrece a obra. Pode mesmo anular a sua própria hermenêutica, isto é, a força indutora das capacidades interpretativas. Qualquer explicação verbal terá de ser extremamente cautelosa pois pode substituir-se à obra, paralisar a sua essência ou cegar o espectador. Este deve enriquecer e iluminar a sua vida através do saber ver, do saber ouvir e sentir, e não se limitar à análise dos processos formais, simples elementos da construção desse mesmo sentir. O espectador deve deixar-se levar pelo que ecoa dentro dele, sem pretender colar-se ao que deve ser, ou àquilo que nos disseram que é ou que lá existe. A obra pode ser o que somos e muito pouco do que lá está. É por isso que não aceito de bom grado que se disseque uma obra de Arte em termos interpretativos, por vezes vincadamente objectivos, como fazem alguns críticos, historiadores e cicerones de museu. Que o façam em termos técnicos, históricos, museológicos vá que não vá, mas em termos sentimentais, em termos interpretativos, tantas vezes sob a forma de gastos e banais artificialismos de catálogo, massificando as formas de ver e de interpretar, em vez de tentarem estimular a individualização das formas de sentir, custa-me a aceitar. Ninguém vê com os nossos olhos, ninguém sente com o nosso íntimo, ninguém pensa com o nosso pensamento.
publicado por Carlos Loures às 23:55
link | favorito
4 comentários:
De augusta.clara a 17 de Dezembro de 2010
Vim ler este texto e agora vou dormir melhor. Mas só de me lembrar que já dei nomes aos teus quadros...
De Luis Moreira a 17 de Dezembro de 2010
Encontra-se na mente do observador, nem mais Adão! cada um de nós deixa crescer sentimentos e emoções diferentes de pessoa para pessoa perante a mesma obra de arte.
De zé de ninguém a 17 de Dezembro de 2010
qual deles o mais fantástico. Gosto muito destes textos
De plácidoagitador a 18 de Dezembro de 2010
Nunca ninguém descreveu de forma mais simples, concisa e genial o percurso da obra de arte, entre o seu criador e cada um dos seus destinatários, como o faz Fernando Pessoa em "Autopsicografia". Pelo que tenho lido de esforçados discursos analíticos sobre o poema, focados nas "dores" do poeta e do leitor, no "esclarecimento do universo poético de FP" e outras respeitabilíssimas "aproximações", tenho consciência de que a minha análise pode surgir como um tanto extra-terrestre... Mas ainda ninguém me conseguiu demover dela. Habitualmente, quando deparo com mais um desses discursos, alguns basto eruditos e palavrosos, a minha reacção é próxima da náusea. Creio que quase toda a gente (com um reduzido número de excepções) se esquece da complexidade do pensamento de Pessoa e da sua intenção, sempre presente, de "construção" intelectual, cujo domínio, por parte do poeta, é quase inumano. Daí, dessa descoberta, relativamente recente, de uma dimensão intelectual e criadora raríssimas vezes atingida em toda a história do pensamento humano, o interesse crescente pela obra pessoana, que alastra pelo mundo, indiferente à sua provecta idade: hoje em dia, FP está presente em praticamente todas as áreas de produção artística, sendo pelo menos curiosa a densidade dessa representação na área musical, sobretudo quando não se trata de "musicar" um texto, mas sim de transpor o seu pensamento "em música", sem recorrer à palavra, ou utilizando apenas citações mínimas, como sinais de trânsito, que orientam mas não constrangem.
Na minha perspectiva, nestas três quadras tão "singelas", FP usa a sua "especialidade" de expressão artística já como uma representação da criação artística em geral, o que se projecta no "leitor", que ouso assimilar ao "destinatário" de qualquer tipo de produção criativa. Há mais textos em que FP aborda a questão, por caminhos que acabam por se cruzar e, por vezes, (aparentemente) contradizer, como no poema que termina: "Sentir? Sinta quem lê" (estou a citar de cor...), que considero, antes, como complementar, ao insistir na vertente essencialmente intelectual, racional, da criação artística, afastando, num tom deliberadamente sarcástico e ríspido, a "sensibilidade", do lado da génese da obra artística.
Não prometo (porque já falhei várias vezes) que tenha coragem "anímica" para tratar mais longamente deste tema... Mas, de harmonia com Pessoa, penso que a criação e fruição artísticas não são redutíveis a uma mera comunicação de (e entre) "sensibilidades".
Paulo Rato

Comentar post

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links