Manuela Degerine
Capítulo LXXVIII Vigésima etapa: de S. Roque a Valença O sol agora brilha – sentimos até calor. Não um calor tórrido, certo, embora bastante quente para, com o movimento, já transpirarmos. Atravessamos o rio Coura por uma ponte romana. Vemos nos rios, ribeiros e levadas uma água límpida na qual refrescaríamos os pés, se não usássemos botas tão complicadas... Botas que aliás continuam indispensáveis, tal como as varas de eucalipto, por o caminho se encontrar, com frequência, submerso ou enlameado. Antes de nós aqui passarmos, muitos fizeram o mesmo: há até lugares onde, durante alguns metros, surgiu um caminho bis, um pouco mais seco, que passa por terreno privado. Voltamos a encontrar um resto de via romana. Chegamos a S. Bento da Porta Aberta. Desconfiando do roteiro, pergunto a um homem, sentado numa esplanada, onde me encontro – ele confirma: São Bento da Porta Aberta. Que depressa deixamos para trás. Passamos mais um riacho, atravessamos outra mata. Eu ontem sentia-me cansada, depois conversei demais, deitei-me muito tarde – não dormi o suficiente. Sinto agora este cansaço acumulado: avanço mais devagar do que é costume. O meu companheiro de viagem, com um metro e oitenta de altura e, por isso, menos incomodado com a mochila, é na verdade muito paciente. Em Pedreira, subimos a rua, quando avisto, a meio da encosta, um camponês dos tais: raro e direito.
Apesar do cansaço, digo ao meu parceiro: - Aceleremos... Quero falar com aquele gentleman farmer. Este regressa de uma propriedade onde foi cortar erva para as ovelhas. Faço-lhe, a certa altura, uma pergunta parva e citadina. - O senhor bebe o leite?... Oiço uma gargalhada. - Leite de ovelha?... Isso é lá no Alentejo! Aqui bebem leite de vaca. Mas eu bebo vinho. Volta a falar dos animais; dão muito trabalho. Conclui, contudo: - Os que não trabalham parece que ainda vão mais cedo... Fita-me com um olhar travesso. - Que idade me dá? Lanço-me num raciocínio complicado. Parece ter menos de setenta, mas por não abusar do sofá, do tractor e do hipermercado como os outros, as lusitanas figuras de Bruegel, que são todavia muito mais jovens. - Setenta e cinco. Ele ri-se, radiante. - Oitenta e dois! Explico que disse setenta e cinco apesar de, olhando para ele, tão rijo e direito, lhe dar ainda menos. Inquiro como se chama a ferramenta que leva ao ombro. - Um gadanho. Na pintura e escultura da Idade Média, a Morte traz o mesmo instrumento, com o qual ceifa as vidas humanas. Este homem serve-se do gadanho para garantir a subsistência dos animais: é senhor da vida. Já vamos mais adiante, num caminho pedregoso, quando me arrependo de não haver perguntado o nome do meu interlocutor e nem sequer ter tirado uma fotografia. Decido que, a partir de agora, constituirei um arquivo com fotografias dos belos idosos que, no campo ou na cidade, for encontrando. E... até outra, separada da primeira, claro, com adeptos do tractor e do Preço Certo... São figuras do excesso. Encontro mais beleza num camponês barrigudo, rubicundo e cheio de vida do que nas ocas figuras publicitárias.