Manuela DegerineCapítulo LVIDécima quinta etapa: no Porto
O comandante do quartel já partiu, os bombeiros mostram-se reticentes. Insisto que telefonei de Grijó e perguntei se podíamos ali pernoitar; o comandante autorizou. Replicam-me que essas peregrinas já chegaram. Teimo que talvez chegasse uma: a outra sou seu. Uma rapariga assume por fim a responsabilidade de me acolher. Logo surge outro obstáculo: pedem-me a credencial de peregrina.
- Venho desde Lisboa a tentar obter uma: em Lisboa não conheciam, em Fátima não conheciam, em todos os lugares por onde passei não conheciam...
Sem credencial não me aceitam. Onde posso, a esta hora, encontrar uma? São seis e meia. Aconselham que corra à Sé. Poiso a mochila e despacho-me. Como se não tivesse caminhado o suficiente... (Contudo, sem mochila, é outro andar: nada que se confunda.) Entro de rompante num edifício, sou acolhida pelo porteiro, o qual me explica com gentileza: vendem a credencial no interior da Sé. Enfim!
Entro, peço a credencial, um homem, com gestos lentos, abre a gaveta, oiço exclamar:
- Manuela!
Maria salta na minha direcção. Abraça-me, eufórica. Apanhou um autocarro, chegou há duas horas, tomou um bom duche e já passeou pela cidade: sente-se em plena forma. Lamenta ter perdido a travessia do Douro. Replico que não é grande perda: podemos agora atravessá-lo.
A luz do fim da tarde torna o rio e as margens particularmente belos. Maria quer prosseguir o passeio. Eu vejo-me mais que morta... E vim trinta vezes ao Porto, uma cidade da qual também gosto: hei-de voltar outras tantas. Por isso agora como algo, pouco importa o quê, sigo para os bombeiros, tomo um duche – e deito-me. Neste momento não há nada que eu deseje tanto como isto: requiescere in pace. (Não eternamente: até amanhã basta.)
Os bombeiros guardam a credencial e conduzem-me a uma mezanine que, pelo que percebo, também serve de camarata. Contígua à garagem: o ar, a luz, o espaço são muito reduzidos. Pela primeira vez: terei que dormir com tampões nos ouvidos. Eu estou aqui de passagem porém – eles, que aqui trabalham todos os dias e todas as noites, não usufruem de um necessário conforto e não obstante, também aqui, o muito ou o pouco de que dispõem, partilham-no com os peregrinos. Os bombeiros são heróis que tornam Portugal maior.
Tomo duche, lavo roupa (penduro a camisola e as meias no beliche; visto as cuecas molhadas), preparo a sandes do pequeno almoço, arrumo, desarrumo as bagagens, trato dos pés que, contrariamente ao que pensava, não apresentam novas bolhas; e as precedentes não parecem em pior estado.
Faço o balanço do dia. Apesar do cansaço, valeu a pena. Para além da percepção que agora tenho do espaço, por exemplo, dos arredores do Porto, os quais, de outra maneira, não teria jamais atravessado, houve vários momentos que – cada um, só por si – mereciam o esforço da caminhada. Quais? Perguntará o leitor céptico. Pois... O senhor Socras, que ainda me diverte, o casal em S. João de Ver, que ainda me comove. E os muros de lages verticais, a estrada romana, na direcção de Rechousa, a vista do Porto como uma Terra Prometida... (Nunca mais fixarei o casario com tal intensidade.)
Chega uma rapariga alemã. Inicia amanhã o trajecto para Santiago. Como é o primeiro dia, projecta uma etapa curta: uns quinze quilómetros. Falamos das minhas bolhas, ela mostra-me as pomadas, os adesivos, os compeedes, os desinfectantes, os cremes de massagem... Confirmo que não falta nada. Dito isto, deseja-me boa noite, põe tampões nos ouvidos e adormece. Eu ainda arrumo e desarrumo um pouco as bagagens; entretanto Maria também chega. Desesperada: dói-lhe muito a perna.
Fitamo-nos, inquietas. Será uma Tendinite?... Para nós a Tendinite tem maiúscula. Murmuramos a palavra quase com superstição: pronunciá-la é colocar o referente na categoria do possível.
A bolha é a realidade mas a Tendinite é o terror dos viandantes. Com a realidade da bolha, auxiliados por betadines e compeedes, os nossos pajens fiéis, podemos lutar e até vencer; porém: como se combate uma Tendinite? Se até os campeões olímpicos temem este dragão, qual o nosso pavor, simples andarilhos de Santiago?... A tendinite implica o regresso a casa dos caminheiros andantes.
Mas talvez Maria esteja apenas cansada. Percorreu várias vezes o Camino Francés, nunca sofreu tendinites portanto – embora a Via Lusitana seja, de alguns pontos de vista, mais difícil, exigindo distintas aptidões – não há razão para agora temer uma tendinite. Combinamos que, no dia seguinte, se não estiver melhor, faz uma etapa mais curta e depois, para se encontrar comigo, apanha um autocarro. (E, até lá: telefona.)
Não obstante o ar, poluído por gases dos motores, não obstante o barulho na garagem, não obstante a inquietação, que também me afecta – durmo bem. Quando, às seis horas, o despertador toca, Maria declara não ter adormecido: dói-lhe a perna cada vez mais. Confirmamos que é melhor eu partir e ela, consoante a evolução da perna, encontrar-se-á – ou não – comigo mais tarde.
Visto, uma vez mais, a camisola e as meias molhadas, arrumo depressa a mochila, recupero a credencial. Convém despachar-me… O próximo albergue tem quatro lugares: importa por conseguinte chegar cedo. Preparei ontem uma sandes de queijo, prefiro comê-la enquanto vou avançando.
Maria toma o pequeno-almoço com a rapariga alemã. Começarão juntas a caminhada porém, se lhe parecer necessário, apanha um autocarro, volta para o Porto e vai ao médico.
Abraçamo-nos.
- Tem cuidado!
- Trata da perna!
Começo o percurso para Vilarinho.