Voltemos a Alice Miller: “ Isaac, essa pessoa[1], tinha sido convertido em coisa[2]. Apenas cabe o medo (...)!” Mas, medo do quê? Medo de ter passado a ser um objecto para o pai reverenciar a sua divindade por cima do amor paterno. O amor paterno é avaliado pelo filho com confiança, calma e serenidade. A filiação é a paz e a confiança, a calma e a alegria, na maior parte das vezes.[3]. Especialmente ao ser filho de um pai de muitos, de diversas tribos, como o Profeta, que sabia orientar povos de milhares de pessoas. Isaac confiava nele como todos os membros das várias tribos hebraicas que governava, especialmente por ser filho consanguíneo da sua primeira mulher, Sara.
Quando uma criança confia tanto no pai, acaba por lhe ter medo, nomeadamente, ao ser preterido face ao amor demonstrado pelo pai para com a sua divindade. É o que Alice Miller pretende explicar com a passagem da Bíblia que cita no seu livro[4]. É a partir desse dia, que Isaac aprende a ter medo: está desprotegido, o pai é a família, é o filho mais velho, mas o pai prefere mandar que ser pai “unigénito” do “unigénito” filho. Parece-me que a história é analisada por Alice Miller, como exemplo do que o pai pode fazer ao instalar-se no poder e usar a sua família para trabalhar. A história bíblica pode ajudar-nos a entender a análise de Alice Miller[5]. História interessante, por tornar a acontecer. Há muita informação metafórica na Bíblia, para explicar o comportamento dos seres humanos conforme a lei. A de Isaac, o filho não sacrificado, é outra. Ele sofre o sacrifício dos filhos, da forma narrada no Génesis[6]. Alice Miller ensina-nos a história ao invés: um filho pode ficar desprotegido, mas os pais velhos também e serem enganados. Da história de um povo único da descendência de Abraão, passa à história de um povo desunido. Uma premonição do que acontece hoje em dia nas terras hebraicas e da Palestina. A história da Bíblia, livro compartilhado por cristãos, hebreus e islâmicos, parece ser uma metáfora desse povo unido e único, para passar a ser uma divisão de ideias, confissões e lutas pelo território e os bens básicos, para ser mercadoria. Não apenas mercadoria, bem como linhas comerciais: a luta de quem vende o quê e a quem. São estas as ideias que me ocorrem quando Alice Miller, no seu comentário final da pintura de Rembrandt, afirma: apenas cabe o medo, eu acrescentaria, medo do pai na etapa cronológica da vida jovem dos descendentes, medo dos ancestrais, na sua idade maior, desvalidos e com as peripécias do que acontece a um adulto maior, que acredita firmemente nos seus descendentes. Filhos desprotegidos do saber, pais desprotegidos de forças para criar, lutar e continuar a viver. É o medo que cabe na cronologia humana de ida e volta. O que Alice Miller, luterana, não diz é que os factos narrados na Bíblia são uma lição em palavras escritas sobre o comportamento social. Não é possível esquecer a necessidade, orientação da vida em interacção social, de qualquer ser humano. Sem lei, como centenas de anos mais tarde acrescentaria Émile Durkheim nos seus textos, o povo fica sem esperança, com profundo sentimento de anomia[7], e as mortes acontecem. Mortes por abandono, por imitação, por estados de loucura que rodeiam as pessoas. Como demonstra Durkheim, o suicídio acaba por ser o resultado de doenças patológicas na sequência de estados de loucura (veja-se a anterior nota de rodapé). Há suicídios cometidos pela falta de crianças, mas não por abuso de crianças, que é o assunto que nos interessa nesta etapa do texto[8].