Carlos LouresRecorri ao dicionário do meu saudoso amigo José Pedro Machado e, mais uma vez, não me deixou ficar mal. A consulta foi à palavra Consumir. A entrada diz: «v. tr. (do lat. Consumere). Gastar, destruir, extinguir, corroer até completa destruição. Enfraquecer, abater.» E continua com muitas outras acepções terminando com «Enganar, iludir». Pelo meio, tem as acepções mais comuns - «Dar extracção, procurar géneros alimentícios, artigos fabricados, etc.\\ Despender, gastar» e outras menos comuns «Matar, assassinar. Devorar em silêncio. E entra no foro da liturgia católica: «Desfazer a hóstia na boca. Receber (o sacerdote), na missa, o corpo e o sangue de Cristo, sob as espécies do pão e do vinho consagrados.» Está aqui a entrada quase toda, não escamoteei acepções importantes. Não esqueçamos, porém, que a primeira acepção, é sempre a mais relevante - «gastar, destruir, extinguir, corroer…» Corroer até à completa destruição - uma boa definição do que é o consumo quando elevado à categoria de projecto de vida.
Vou contar-vos uma história. Um homem, cujo nome é relativamente, conhecido e com o qual privei profissionalmente durante algum tempo, perseguido pela polícia política na sequência do 18 de Janeiro de 1934, a chamada Revolta da Marinha Grande, fugiu para Espanha em cuja Guerra Civil combateu integrado no Exército Republicano (pois casara com uma valenciana). Derrotada a República, esteve num campo de refugiados em França de onde foi evacuado para a União Soviética. Aí viveu e trabalhou até quase ao fim dos anos 60, altura em que foi para Cuba. Por volta de 1970, com mais de cinquenta anos, tendo garantido que não se envolveria em movimentos políticos, foi autorizado a voltar a Portugal com a família.
O barco de onde veio de Havana aportou a Valência. Habituado ao rígido racionamento que vigorava, quer na URSS, quer em Cuba, quando entrou pela primeira vez num supermercado, foi por diversas vezes perguntar a uma empregada se podia comprar duas pastas de dentes, depois se podia levar duas ou três latas de feijão, quatro pacotes de lâminas de barbear… até que agastada a rapariga lhe disse: - Desde que pague, pode levar o supermercado inteiro - O meu amigo chorou de emoção. Não lhe era fácil conceber tanta abundância à sua disposição. Nesta facilidade de comprar, reside o grande fascínio do consumo – mesmo que não tenhamos dinheiro vivo, podemos sempre utilizar cartões de crédito… Compra-se por impulso, o gesto de tirar os produtos das prateleiras e de os pôr no carrinho é gratuito. Só na caixa nos apercebemos do dinheiro que gastámos. Tem-se a falsa sensação de que as coisas não custam dinheiro.
Há relativamente poucos anos, vivíamos numa economia de poupança – as roupas usavam-se enquanto duravam, os géneros alimentícios não tinham prazo de validade, sendo esta determinada pelo bom ou mau aspecto que apresentavam, as pastas dentífricas eram gastas até ao fim (havia uns artefactos, primeiro em madeira e depois em plástico, para as espremer), se saíamos de uma sala, apagávamos as luzes… Era uma economia e uma cultura de penúria, mesmo para as famílias «remediadas», aquilo a que agora se chama classe média. Hoje, vê-se pessoas com graves problemas económicos, mas incapazes de economizar. Não sabem. Nem relacionam o facto de deixarem todas as luzes acesas, de se desfazerem de roupas em bom estado (mas que «já se não usam»), com as dificuldades por que passam e com o facto de a meio do mês já não terem dinheiro e começarem a viver com a conta-ordenado e com o crédito dos cartões levados até ao limite. Nem com o número de chamadas que fazem com o telemóvel, muitas delas (para não dizer a maioria) dispensáveis. Troca-se de carro, embora aquele que se larga possa ser melhor do que o que se adquire. E por aí fora. Consome-se.
Um dos motivos para o aumento do número de divórcios é o facto de ao período (por vezes, prolongado) de namoro, em que os pais continuam a resolver os problemas básicos, se sucede a chamada «vida real» - contas para pagar, coisas para comprar – assuntos «mesquinhos» do dia-a-dia, que dão lugar a discussões mesquinhas e, sobretudo, ao choque de vontades pouco treinadas para serem contrariadas, porque desde o berço foram habituados a não aceitar o não como resposta. E não é uma palavra para ser usada, como qualquer outra. O confronto de vontades, gera discussões, desilusões e a estas seguem-se muitas vezes os divórcios. Habituadas como estão agora as pessoas aos produtos descartáveis, deitam fora uma relação e começam outra. A geração dos anos 60, a minha, tem responsabilidades nesta disfunção. Criámos os filhos seguindo o princípio de que era proibido proibir. Uma educação, que quase se traduziu numa ausência de educação, criou estes cidadãos que, generalizando (o que é perigoso) podemos dizer que é uma geração que não luta pelas coisas, não luta inclusive pelo amor – gasta o amor como se fosse um produto descartável.
O consumo também consome o amor.
Inteiramente verdade.Eu afago a consciência levando montes de roupa aqui à Associação dos sem Abrigo, mas metade da roupa nunca a vesti.Agora descobri que tenho um carro há 8 anos que está novo.Quantos troquei com um ano ou dois de uso? A sociedade do desperdício e da injusta distribuição, que até os sentimentos destrói.
De CLARA CASTILHO a 4 de Agosto de 2010
É isso mesmo! E por se querer tanto, pedem-se empréstimos e não se possui verdadeiramente nada - é tudo do banco se pararem de pagar, com o triplo do valor, ou coisa parecida. É patético ter que ensinar a gerir dinheiro. Ainda sou do tempo em que se separava por envelopes o ordenado do mês, a ver o que sobrava...mas a verdade é que não se ultrapassava o que se tinha - salvo os casos excepcionais em que se tinha de pedir emprestado - à família ou amigos. E a que nos apressávamos a pagar. Manter uma ligação requer de facto esforço. O que nem sempre se está disposto. TER ou SER
Apesar de ainda tentar-me entender com os meus 55 anos, vou tenho felizmente amigos na faixa dos 30, outros mais velhos e outros ainda mais novos. E os jovens são maravilhosos! Poupam na energia, cuidam do ambiente - economizam. Se são pais (os homens) partilham as tarefas com as companheiras. São a segunda ou terceira geração proveniente dos excessos. Fantásticos os excessos, que ainda hoje cuidam de serem trabalhados. Que bom poder dizer que não a uma relação que não nos preenche e não termos medo de sermos mal vistas pela sociedade. Não é a separação o espelho de uma ausencia de vontade de construção. Quantas relações estavam mortas e sobrevivia-se por conta das aparências? Eu gosto dos jovens de hoje. Eu gostei dos jovens da minha geração. Por trás de cada um de nós, existe uma pessoa sempre com uma enorme vontade de acerto.
Nem eu condenei os jovens, Ethel; os jovens de hoje e os de há dez mil anos são iguaizinhos (tal como os velhos). O que condenei foi a mentalidade que o sistema capitalista instaurou, baseada no consumo. A natureza humana é o que é - as mentalidades é que vão mudando. Nem sempre para melhor.
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