Augusta Clara de Matos“E se começássemos por aqui?” Assim terminava o último texto que escrevi, a propósito de toda a gente discutir economia e poucos se interessarem por política.
Esta frase fez-me vir à memória um episódio delicioso que se passou comigo naquele período naïf, logo após o 25 de Abril, em que todos queríamos fazer coisas, tomar parte na construção dum país livre. Ainda hoje me riu quando me lembro dele.
Episódio que foi, ao mesmo tempo, esclarecedor de outra coisa: nós, seres humanos, quando somos genuínos e sinceros, podemos não conseguir, só por isso, grandes empreendimentos mas, pelo menos, não construímos ídolos com pés de barro.
Como todos devem estar lembrados, a seguir à Revolução, foram publicados uns livrinhos da escritora e jornalista chilena Marta Harnecker de iniciação à teoria marxista. Eram uma espécie de pequenos manuais para principiantes que começavam por explicar o que era a política.
Nessa altura eu ainda não estava organizada partidariamente mas, como sempre fez parte da minha personalidade tomar iniciativas sem precisar que mas sugiram, tive uma ideia e decidi avançar com ela (anos mais tarde, um colega que se dedicava à astrologia informou-me que vira nos astros que eu era uma líder natural). Seja ou não seja, a verdade é que os caderninhos da Marta Harnecker desencadearam em mim uma avalanche de liderança.
Escrevi um convite a todas as pessoas do meu departamento convidando-as a virem, à hora do almoço, ler e discutir em conjunto os tão oportunos caderninhos. E a verdade é que as pessoas apareceram e começámos a abordar os conceitos da forma mais simples como “O que é a política?...É a vida de todos nós, etc., etc.” e uma das horas de intervalo para o almoço foi durante uns quantos dias um proveitoso fórum de discussão política em que, gente que nunca se tinha interessado pelo assunto participou activamente. Foi um período curto, sem ambições, mas muito interessante.
Embalada pelo interesse daquele pequeno grupo, senti-me estimulada a passar a outro nível mais alargado de discussão . E a líder natural, cheia de entusiasmo mas ingénua até mais não, escreveu outro convite, com o mesmo objectivo, a todo o pessoal da instituição agrupado em diversos departamentos espalhados pela cidade de Lisboa.
Como eu nessa altura era delegada sindical do meu (mais tarde haveria de ser também representante sindical da instituição no exterior), ia todas as semanas à reunião do conjunto dos delegados, a comissão sindical.
Numa dessas reuniões alguém, sentado numa ponta da mesa diametralmente oposta àquela em que eu me encontrava, perguntou se eu é que era a fulana de tal que tinha enviado um convite para uns debates porque queria falar comigo no fim da reunião. Para minha grande surpresa, esse colega, que viria a ser presidente do meu sindicato, informou-me que ele e outras pessoas, que tinham recebido o meu convite, estavam interessados em participar nas nossas reuniões da hora do almoço.
Imagine-se a minha satisfação. Eu que queria pôr toda a gente a discutir, agora aqueles, e as pessoas que trariam, manifestavam vontade de vir engrossar o grupo. Que diabo, éramos todos colegas, estávamos a travar uma luta conjunta por objectivos comuns…Que viessem, pois claro, que outra coisa havia eu de dizer, ainda para mais num período tão feliz e solidário como aquele que vivíamos?
Mas o final da história foi lamentável e a minha liderança ressentiu-se bastante com isso.
Aquelas reuniões agradáveis, aquele ambiente feliz em que procurávamos, em conjunto, perceber o que se tinha passado noutros países, antes da Revolução dos Cravos ter acontecido, e colher ensinamentos úteis para futuro, transformaram-se em lições de mestre-escola, rígidas e dogmáticas que começaram a desinteressar as pessoas e estas, pouco a pouco, foram desaparecendo, tal como a minha ingenuidade.
O meu colega, futuro dirigente sindical, ficou muito meu amigo mas nunca mais nos entendemos politicamente.
Errata:"rio" em vez de "riu"
De adão cruz a 29 de Novembro de 2010
Quanto entusiasmo, quanta sinceridade, quanta entrega e quanta ingenuidade, nesses tempos. Os tempos vivem-se, não são transplantáveis. Não estou arrependido. Um beijinho
Augusta Clara, isso que o teu colega te fez é velho como o mundo, vindo de quem veio. Só estão interessados em conversar se for como eles querem, se forem eles a mandar. Muitos se afastaram por causa desse tendencia de controle.Deixa lá, estás bem acompanhada.
Era a esta história a que eu me referia no comentário de ontem (feito no post errado). Inconvenientes de ler os textos antes de serem publicados. TRansfiro, pois, para aqui o elogio de onte - é um episódio engraçado e todos nós, nesses tempos em que os mágicos (chico-espertos) acordaram, vivemos situações semelhantes. parabéns Augusta Clara.
De maria monteiro a 29 de Novembro de 2010
Quantas caminhadas, quantos debates, quantos sonhos se construíram nessa época. O importante é que não se deve ser cego, surdo e mudo perante os acontecimentos. O mais fácil é bater com a porta e partir ou então enfrentar palavras contra palavras com a devida lucidez de saber ouvir mas não desistir dos próprios pontos de vista. Eu não sou muito diferente daquilo que fui no “tempo do sonho”. Só mesmo os anos passaram mas o sonho continua... Resisto. Debato tanto os males da minha igreja como desço a Avenida ao som da internacional e ...sempre confiante num mundo melhor.
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